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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Falsos irmãos e amigos ineptos

Por Allan Kardec

Como demonstramos no artigo precedente, nada poderia prevalecer contra o destino providencial do Espiritismo. Do mesmo modo que ninguém pode impedir a queda daquilo que pelas leis divinas deve cair, ─ homens, povos ou coisas ─ nada pode travar a marcha daquilo que tem de avançar.

Em relação ao Espiritismo, esta verdade ressalta dos fatos realizados e, muito mais ainda, de outro ponto capital. Se o Espiritismo fosse uma simples teoria, um sistema, poderia ser combatido por outro sistema, mas ele repousa numa lei da Natureza, assim como o movimento da Terra.

A existência dos Espíritos é inerente à espécie humana. Não é possível evitar que existam, como não se pode impedir a sua manifestação, do mesmo modo que não se impede o homem de caminhar. Para tanto eles não precisam de licença e se riem de toda proibição, pois não se deve perder de vista que, além das manifestações mediúnicas propriamente ditas, há manifestações naturais e espontâneas, que se produziram em todos os tempos e que se produzem diariamente numa porção de gente que jamais ouviu falar de Espíritos.

Quem, pois, poderia opor-se ao desenvolvimento de uma lei da Natureza? Sendo obra de Deus, insurgir-se contra essa lei é revoltar-se contra Deus.

Estas considerações explicam a inutilidade dos ataques dirigidos contra o Espiritismo. O que tem os espíritas a fazer em presença dessas agressões é continuar pacificamente seus trabalhos, sem basófia, com a calma e a confiança dadas pela certeza de atingir o objetivo.

Contudo, se nada pode parar a marcha geral, há circunstâncias que podem determinar entraves parciais, como uma pequena barragem pode desacelerar o curso de um rio, sem impedi-lo de correr. Entre essas circunstâncias estão os movimentos inconsiderados de certos adeptos mais zelosos que prudentes, que não calculam bem o alcance de seus atos ou de suas palavras. Assim, produzem sobre as pessoas não iniciadas na doutrina uma impressão desfavorável, muito mais própria a afastá-las que as diatribes dos adversários.

Sem dúvida, o Espiritismo está muito difundido, mas estaria ainda mais se todos os adeptos tivessem sempre escutado os conselhos da prudência e guardado uma sábia reserva. Sem dúvida é preciso levar-lhes em conta a intenção, mas é certo que mais de um tem justificado o provérbio: “Melhor um inimigo declarado que um amigo inepto.”

O pior disto é fornecer armas aos adversários, que sabem explorar habilmente uma falha. Nunca seria demais recomendar aos espíritas refletir maduramente antes de agir. Em tais casos manda a prudência não se bastar à opinião pessoal. Hoje, que de todos os lados se formam grupos ou sociedades, nada mais simples que se reunir antes de agir. Não tendo em vista senão o bem da causa, o verdadeiro espírita sabe fazer abnegação do amor próprio. Crer em sua infalibilidade, recusar o conselho da maioria e persistir num caminho que se revela mau e comprometedor, não é atitude do verdadeiro espírita. Seria dar prova de orgulho, senão de obsessão.

Entre as inabilidades colocam-se em primeira linha as publicações intempestivas ou excêntricas, por serem fatos de maior repercussão. Nenhum espírita ignora que os Espíritos estão longe de possuir a ciência suprema, pois muitos dentre eles sabem menos que certos homens e também, como certos homens, têm a pretensão de saber tudo. Sobre todas as coisas têm sua opinião pessoal, que pode estar certa ou errada. Ora, ainda como os homens, os que têm ideias mais falsas são os mais cabeçudos. Esses falsos sábios falam de tudo, armam sistemas, criam utopias ou ditam as coisas mais excêntricas e sentem-se felizes quando encontram intérpretes complacentes e crédulos que aceitam as suas elucubrações de olhos fechados. Tais publicações têm inconvenientes muito graves, porque o próprio médium, enganado, seduzido muitas vezes por um nome apócrifo, as dá como coisas sérias das quais a crítica se apodera para denegrir o Espiritismo, ao passo que, com menos presunção, bastaria ter-se aconselhado com os colegas para ser esclarecido. É muito raro que, neste caso, o médium não ceda às injunções de um Espírito que, ainda como certos homens, quer ser publicado a qualquer preço. Com mais experiência ele saberia que os Espíritos verdadeiramente superiores aconselham, mas nem se impõem nem adulam jamais e que toda prescrição imperiosa é um sinal suspeito.

Quando o Espiritismo estiver completamente assente e conhecido, as publicações dessa natureza não terão mais inconvenientes que os maus tratados de ciência em nossos dias. Mas no começo — repetimo-lo – elas têm um lado muito prejudicial. Assim, em se tratando de publicidade, toda circunspecção é pouca e não se calcularia com bastante cuidado o efeito que talvez produzisse sobre o leitor. Em resumo, é um grave erro crer-se obrigado a publicar tudo quanto ditam os Espíritos, porque, se os há bons e esclarecidos, também os há maus e ignorantes. Importa fazer uma escolha muito rigorosa de suas comunicações e afastar tudo quanto for inútil, insignificante, falso ou de natureza a produzir má impressão. E necessário semear, sem dúvida, mas semear boa semente e em tempo oportuno.

Passemos a assunto ainda mais grave, os falsos irmãos. Os adversários do Espiritismo, alguns pelo menos, porquanto existem os de boa-fé, eles não são, como se sabe, absolutamente escrupulosos quanto à escolha dos meios. Para eles tudo vale na guerra, e quando não se pode tomar a cidadela de assalto, mina-se-lhe as bases. Na falta de boas razões, que são as armas leais, vemo-los diariamente despejar mentiras e calúnias sobre o Espiritismo. A calúnia é odiosa, eles bem o sabem, e a mentira pode ser desmentida. Assim, procuram fatos para justificar-se. Mas como achar fatos comprometedores entre gente séria, senão os produzindo por si mesmos ou pelos afiliados? O perigo não está no ataque aberto, nem nas perseguições, nem mesmo nas calúnias, como vimos. Está nos artifícios ocultos empregados para desacreditar e arruinar o Espiritismo por si mesmo. Consegui-lo-ão? É o que vamos examinar.

Já chamamos a atenção para essa manobra no relatório de nossa viagem de 1862, porque, em nossa caminhada, recebemos três beijos de Judas, com os quais não nos enganamos, posto não nos tivéssemos manifestado. Aliás, tínhamos sido prevenidos antes de nossa partida, bem como das armadilhas que nos seriam preparadas. Mas ficamos de olho, certo de que um dia mostrariam as unhas, porque é tão difícil a um falso espírita imitar sempre um verdadeiro espírita, quanto a um mau Espírito simular um Espírito superior. Nem um nem outro pode sustentar seu papel por muito tempo.

De várias localidades nos indicam homens e senhoras de antecedentes e ligações suspeitas, cujo zelo aparente pelo Espiritismo apenas inspira medíocre confiança, e não nos surpreendemos de entre eles encontrar os três Judas de que falamos: eles existem nas baixas e nas altas camadas. Da parte deles muitas vezes é mais que zelo: é entusiasmo, uma admiração fanática. Em sua opinião, seu devotamento vai até o sacrifício de seus interesses e, não obstante, não atraem simpatias: um fluido malsão parece envolvê-los; sua presença nas reuniões lança um manto de gelo. Acrescente-se que os meios de subsistência de alguns é um proble­ma, sobretudo no interior, onde todo mundo se conhece.

O que caracteriza principalmente esses pretensos adeptos é a tendência para fazer o Espiritismo sair dos caminhos da prudência e da moderação por seu ardente desejo do triunfo da verdade; a estimular as publicações excêntricas; a extasiar-se de admiração ante as comunicações apócrifas mais ridículas que eles têm o cui­dado de espalhar; a provocar, nas reuniões, assuntos comprometedores sobre política e religião, sempre para a vitória da verdade que não pode ficar sob o velador. Seus elogios aos homens e às coisas são incensórios de arrebentar: são os ferrabrás do Espiritismo. Outros são mais adocicados e hipócritas. Com olhar oblíquo e palavras melosas sopram a discórdia enquanto pregam a união. Colocam em discussão, com habilidade, questões irritantes ou ferinas, assuntos de natureza a provocar dissidências. Excitam uma inveja de preponderância entre os vários grupos e ficariam encantados se os vissem a se apedrejarem e, em favor de algumas diferenças de opinião sobre questões formais ou de fundo, geral­mente provocadas, erguerem bandeira contra bandeira.

Alguns, ao que dizem, fazem enorme aquisição de livros espíritas, de que os livreiros mal se apercebem, e uma propaganda intensa. Mas, por efeito do acaso, a escolha de seus adeptos é infeliz. Uma fatalidade os leva a procurar de preferência gente exaltada, de ideias obtusas, ou que já deram sinais de aberração. Depois, ao estourar um caso que deploram gritando por toda parte, constata-se que essa gente se ocupava do Espiritismo, do qual, a maior parte do tempo, não entenderam uma palavra. Aos livros espíritas que esses zelosos apóstolos distribuem generosamente, com frequência adicionam, não críticas, pois seria inabilidade, mas livros de magia e feitiçaria ou escritos políticos pouco ortodoxos, ou ignóbeis diatribes contra a religião, a fim de que, surgindo um caso, fortuito ou não, numa verificação se possa confundir tudo.

Como é mais cômodo ter as coisas na mão, para ter compadres dóceis, o que não se encontra em toda parte, alguns organizam ou fazem organizar reuniões onde se ocupam de preferência daquilo que precisamente o Espiritismo desaconselha, e onde há o cuidado de atrair estranhos que nem sempre são amigos. Ali o sagrado e o profano estão indignamente confundidos; os mais venerados nomes são misturados às mais ridículas práticas de magia negra, acompanhadas de sinais e termos cabalísticos, talismãs, tripés sibilinos e outros acessórios. Alguns adicionam, como complemento, e por vezes com objetivo de lucro, a cartomancia, a quiromancia, a borra de café, o sonambulismo pago etc. Espíritos complacentes, que aí encontram intérpretes não menos complacentes, predizem o futuro, leem a buena-dicha, descobrem tesouros ocultos e tios na América e, caso necessário, indicam o curso da bolsa e os números premiados na loteria. Depois, um belo dia, a justiça intervém, ou a gente lê nos jornais a descrição de uma sessão espírita à qual o autor assistiu e conta o que viu; o que viu com seus próprios olhos.

Tentareis trazer toda essa gente a ideias mais sãs? Seria trabalho perdido, e compreende-se por quê: A razão e o lado sério da doutrina não lhes interessa; é o que mais os aflige. Dizer-lhes que prejudicam a causa e que dão armas aos inimigos é agradá-los. Seu objetivo é desacreditá-la, com ares de defendê-la. Instrumentos, não temem comprometer os outros, levando-os a enfrentar os rigores da lei, nem a si mesmos, pois sabem arranjar uma compensação.

Nem sempre seu papel é idêntico: varia conforme sua posição social, suas aptidões, a natureza de suas relações e o elemento que os faz agir, mas o objetivo é sempre o mesmo. Nem todos empregam meios tão grosseiros, mas que nem por isto são menos pérfidos. Lede certas publicações que se dizem simpáticas à ideia, e mesmo aparentemente em defesa da idéia; examinai todos os pensamentos e vede se por vezes ao lado de uma aprovação posta à guisa de cobertura e de etiqueta, não descobris, como que lançado ao acaso, um pensamento insidioso, uma insinuação de sentido dúbio, um fato relatado de modo ambíguo e que pode ser interpretado desfavoravelmente. Entre estes, uns são menos velados e, sob o manto do Espiritismo, têm em vista suscitar divisões entre adeptos.

Por certo nos perguntarão se todas as torpezas de que acabamos de falar são invariavelmente manobras ocultas ou uma comédia com fim interesseiro, e se também não podem ser um movimento espontâneo. Numa palavra, se todos os espíritas são homens de bom-senso e incapazes de se enganar.

Pretender que todos os espíritas sejam infalíveis seria tão absurdo quanto a pretensão dos nossos adversários ao privilégio exclusivo da razão. Mas se alguns se enganam, é que se confundem quanto ao sentido e a finalidade da doutrina. Neste caso, sua opinião não pode fazer lei e é ilógico ou desleal, conforme a intenção, tomar a ideia individual pela ideia geral e explorar a exceção. Seria o mesmo que tomar as aberrações de alguns sábios como regra de ciência. A esses diremos: Se quiserdes saber de que lado está a presunção de verdade, estudai os princípios admitidos pela imensa maioria, se ainda não for pela unanimidade absoluta dos espíritas do mundo inteiro.

Os crentes de boa-fé, pois, podem enganar-se, e não julgamos crime se não pensarem como nós. Se, entre as torpezas acima referidas, algumas fossem apenas opinião pessoal, só poderíamos ver nisso desvios isolados, lamentáveis, mas seria injusto fazer recair a responsabilidade sobre a doutrina que os repudia claramente. Mas se dizemos que podem ser o resultado de manobras interessadas, é que nosso quadro é feito sobre modelos. Ora, como é a única coisa que o Espiritismo tem realmente a temer no momento, convidamos todos os adeptos sinceros a se porem em guarda, evitando as ciladas que lhes poderiam armar. Para tanto não seria demasiada a circunspecção na escolha de elementos a introduzir nas reuniões, nem a cuidadosa repulsa a todas as sugestões que tendessem a desnaturar o caráter essencialmente moral. Mantendo a ordem, a dignidade e a gravidade que convém a homens sérios, ocupados com uma coisa séria, fecharão o acesso aos mal-intencionados, que se retirarão quando reconhecerem que aí nada têm a fazer. Pelos mesmos motivos, devem declinar de toda solidariedade com as reuniões formadas fora das condições prescritas pela sã razão e pelos verdadeiros princípios da doutrina, se eles não puderem conduzi-los ao bom caminho.

Como se vê, há certamente uma grande diferença entre falsos irmãos e amigos ineptos, mas, sem o querer, o resultado pode ser o mesmo: desacreditar a doutrina. A nuança que os separa frequentemente está apenas na intenção, o que, por vezes, permitiria a confusão, e, vendo-os servir aos interesses do partido contrário, supor que por este foram conquistados. A circunspecção é, pois, sobretudo neste momento, mais necessária que nunca, pois não devemos esquecer que palavras, ações e escritos inconsiderados são explorados, e que os adversários se encantam por poderem dizer que isto vem dos Espíritos.

Neste estado de coisas, compreende-se que armas a especulação, em razão dos abusos aos quais ela pode dar lugar, pode oferecer aos detratores para apoiar a acusação de charlatanice. Isto, pois, em certos casos, pode ser uma cilada da qual se deve desconfiar. Ora, como não há charlatanice filantrópica, a abnegação e o desinteresse absolutos dos médiuns tiram dos detratores um de seus mais poderosos meios de denegrir, cortando cerce toda discussão a respeito desse assunto.

Levar a desconfiança ao excesso seria um erro grave, sem dúvida, mas em tempo de guerra, e quando se conhece a tática do inimigo, a prudência torna-se uma necessidade que não exclui nem a moderação nem a observação das conveniências, das quais nunca nos devemos separar.

Por outro lado, não nos deveríamos enganar quanto ao caráter do verdadeiro espírita, pois há nele uma franqueza de atitudes que desafia qualquer suspeita, sobretudo quando corroborada pela prática dos princípios da doutrina. Mesmo que se erga bandeira contra bandeira, como tentam fazer nossos antagonistas, o futuro de cada uma está subordinado à soma de consolações e satisfações morais que elas trazem. Um sistema não pode prevalecer sobre outro se não for mais lógico, o que só a opinião pública pode julgar. Em todo caso, a violência, as injúrias e a acrimônia são maus antecedentes e uma recomendação ainda pior.

Resta examinar as consequências de tal estado de coisas. Essas manobras, sem dúvida, podem levar momentaneamente a algumas perturbações parciais, razão pela qual é necessário adiá-las tanto quanto possível, mas não prejudicariam o futuro, em primeiro lugar porque terão um tempo restrito, de vez que são uma manobra da oposição que cairá pela força das coisas; em segundo lugar porque, digam o que disserem e façam o que fizerem, jamais tirarão da doutrina seu caráter distintivo, sua filosofia racional e sua moral consoladora. Por mais que a torturem e deformem, por mais que façam falar os Espíritos à sua vontade ou recolham comunicações apócrifas para lançar contradições, não farão prevalecer um ensino isolado, mesmo que verdadeiro e não suposto, contra aquele que é dado por toda parte.

O Espiritismo se distingue de todas as outras filosofias porque não é concepção filosófica de um homem só, mas de um ensino que cada um pode receber em todos os cantos da Terra, e tal é a consagração que O Livro dos Espíritos recebeu. Escrito sem equívocos possíveis e ao alcance de todas as inteligências, esse livro será sempre a expressão clara e exata da doutrina e a transmitirá intacta aos que vierem depois de nós. As cóleras que ele excita são indícios do papel que tem de representar, e da dificuldade de lhe opor algo de mais sério. O que fez o rápido sucesso da Doutrina Espírita foram as consolações e as esperanças que ela dá. Todo sistema que, pela negação dos princípios fundamentais, tendesse a destruir a própria fonte dessas consolações, não poderia ser acolhido com indulgência.

É preciso não perder de vista que estamos, como já dissemos, em momento de transição, e que nenhuma transição se opera sem conflito. Não se admirem de ver agitarem-se as paixões em jogo, as ambições comprometidas, as pretensões frustradas, e cada um tentar retomar o que lhe escapa, aferrando-se ao passado. Pouco a pouco, tudo isso se extingue. A febre se acalma, os homens passam e as ideias novas ficam.

Espíritas, elevai-vos pelo pensa­mento. Lançai vosso olhar vinte anos para a frente, e o presente não mais vos inquietará.

Revista Espírita Março 1863

Luta entre o passado e o futuro

Por Allan Kardec

Uma verdadeira cruzada ocorre neste momento contra o Espiritismo, assim como isso nos foi anunciado; de diversos lados se nos assinalam escritos, discursos e mesmo atos de violência e de intolerância; todos os Espíritas devem se alegrar com isso, porque é a prova evidente de que o Espiritismo não é uma quimera. Fariam tanto barulho por uma mosca que voa?

O que excita, sobretudo, essa grande cólera é a prodigiosa rapidez com a qual a idéia nova se propaga, apesar de tudo o que se fez para detê-la. Também nossos adversários, forçados pela evidência de reconhecer que esse progresso invade as classes mais esclarecidas da sociedade e mesmo os homens de ciência, se reduziram a deplorar esse arrastamento fatal que conduz a sociedade inteira aos manicômios. A zombaria esgotou seu arsenal de piadas e de sarcasmos, e essa arma, que se diz tão terrível, não pôde colocar os galhofeiros de seu lado, prova de que não tem matéria para rir. Não é menos evidente que ela não tirou um único partidário à Doutrina, longe disso, uma vez que aumentaram a olhos vistos. A razão disso é bem simples: reconheceu-se prontamente tudo o que há de profundamente religioso nessa Doutrina que toca as cordas mais sensíveis do coração, que eleva a alma para o infinito, que faz reconhecer a Deus àqueles que o tinham desconhecido; ela arrancou tantos homens ao desespero, acalmou tantas dores, cicatrizou tantas feridas morais, que os tolos e os chatos gracejos derramados sobre ela inspiraram mais desgosto do que simpatia. Os zombadores em vão se incomodaram sem proveito para fazer rir às suas custas; há coisas das quais, instintivamente, sente-se que não se pode rir sem profanação.

No entanto, se algumas pessoas, não conhecendo a Doutrina senão pelos gracejos sem graça, puderam crer que não se tratava senão de um sonho oco, de elucubração de um cérebro danificado, o que se passa é bem feito para desenganá-los. Ouvindo tantas declamações iradas, devem dizer a si mesmo que é mais sério do que não pensavam.

A população pode se dividir em três classes: os crentes, os incrédulos e os indiferentes. Se o número dos crentes centuplicou depois de alguns anos, isso não pode ser senão às custas das duas outras categorias. Mas os Espíritos que dirigem o movimento acharam que as coisas não iam ainda bastante depressa. Há ainda, disseram a si mesmos, muitas pessoas que não ouviram falar do Espiritismo, sobretudo no campo; é tempo de que a Doutrina ali penetre; além disso, é preciso despertar os indiferentes adormecidos. A zombaria fez seu trabalho de propaganda involuntária, mas tirou todas as flechas de seu estojo, mas as setas que ela dispara ainda são menos cortantes; é um fogo muito pálido agora. É preciso alguma coisa mais vigorosa, que faça mais barulho do que o tinir dos folhetins, que repercuta mesmo nas solidões; é preciso que a última aldeia ouça falar do Espiritismo. Quando a artilharia voltar, cada um se perguntará: O que há? e quererá ver.

Quando fizemos a pequena brochura: O Espiritismo em sua mais simples expressão, perguntamos aos nossos guias espirituais que efeito ela produziria. Foi-nos respondido: Ela produzirá um efeito ao qual não esperas, quer dizer, teus adversários ficarão furiosos em ver uma publicação destinada, pelo seu extremo preço pouco elevado, a ser difundida em massa e penetrar por toda a parte. Anunciado te foi um grande desdobramento de hostilidades, tua brochura dele será o sinal. Não te preocupes com isso, conheces o fim. Eles se irritam em razão da dificuldade em refutar teus argumentos. Uma vez que assim é, dissemos, essa brochura, que deveria ser vendida por 25 centavos, será dada por duas moedas. O acontecimento justificou essas previsões, e disso nos felicitamos.

Tudo o que se passa, aliás, foi previsto e deveria ser para o bem da causa. Quando virdes alguma grande manifestação hostil, longe de vos amedrontar com ela, alegrai-vos, porque foi dito: o estrondo do raio será o sinal da aproximação dos tempos preditos. Orai então, meus irmãos; orai, sobretudo pelos vossos inimigos, porque serão tomados de uma verdadeira vertigem.

Mas nem tudo ainda se cumpriu; a chama da fogueira de Barcelona não subiu tão alto. Se ela se renova em alguma parte, guardai-vos de extingui-la, porque ela se elevará mais, semelhante a um farol, será vista de longe, e ficará na lembrança das idades. Deixai, pois, fazer e em nenhuma parte oponde a violência à violência; lembrai-vos de que o Cristo disse a Pedro para guardar sua espada na bainha. Não imiteis as seitas que se entredilaceraram em nome de um Deus de paz, que cada um chamava em ajuda aos seus furores. A verdade não se prova pelas perseguições, mas pelo raciocínio; as perseguições, em todos os tempos, foram a arma das más causas, e daqueles que tomam o triunfo da força bruta pelo da razão. A perseguição é um meio mau de persuasão; pode momentaneamente abater o mais fraco, convencê-lo, jamais; porque, mesmo na aflição em que o tiver mergulhado, exclamará, como Galileu em sua prisão: e pur si muove! Recorrer à perseguição é provar que se conta pouco com o poder de sua lógica. Não useis, pois, de represálias: à violência oponde a doçura e uma inalterável tranqüilidade; restitui aos vossos inimigos o bem pelo mal; por aí dareis um desmentido às suas calúnias, e forçá-los-eis a reconhecer que vossas crenças são melhores do que eles dizem.

A calúnia! direis; pode-se ver com sangue frio nossa Doutrina indignamente deturpada por mentiras? acusada de dizer o que não disse, de ensinar o contrário do que ela ensina, de produzir o mal ao passo que não produz senão o bem? A própria autoridade daqueles que têm uma tal linguagem não pode dobrar a opinião, retardar o progresso do Espiritismo?

Incontestavelmente está aí seu o objetivo; atingi-lo-ão? É uma outra questão, e não hesitamos em dizer que chegam a um resultado todo contrário: o de se desacreditarem e à sua causa. A calúnia, sem contradita, é uma arma perigosa e pérfida, mas tem dois gumes e fere sempre aquele que dela se serve. Recorrer à mentira para se defender é a mais forte prova de que não se tem boas razões para dar, porque, tendo-as, não se deixaria de fazê-las valer. Dizeis que uma coisa é má, se tal é vossa opinião; gritai-o sobre os telhados, se bom vos parece, cabe ao público julgar se estais no erro ou na verdade; mas deturpá-la para apoiar vosso sentimento, desnaturá-la, é indigno de todo homem que se respeita. Nos relatórios das obras dramáticas e literárias, vêem-se freqüentemente apreciações muito opostas; um crítico louva exageradamente o que um outro achincalha: é seu direito; mas o que se pensaria daquele que, para sustentar a sua censura faria o autor dizer o que não disse, lhe emprestaria maus versos para provar que sua poesia é detestável?

Ocorre assim com os detratores do Espiritismo: pelas suas calúnias mostram a fraqueza de sua própria causa e a desacreditam fazendo ver a que lamentáveis extremismos são obrigados a recorrer para sustentá-la. De que peso pode ser uma opinião fundada sobre erros manifestos? De duas coisas uma, ou esses erros são voluntários, e então se vê a má fé; ou são involuntários, e o autor prova sua inconseqüência falando do que não sabe; num e noutro caso perde todo direito à confiança.

O Espiritismo não é uma Doutrina que caminha na sombra; ele é conhecido, seus princípios são formulados de maneira clara, precisa, e sem ambigüidade. A calúnia, pois, não poderia atingi-lo; basta, para convencê-la de impostura, dizer: lede e vede. Sem dúvida, é útil desmascará-la; mas é preciso fazê-lo com calma, sem aspereza nem recriminação, limitando-se a opor, sem discursos supérfluos, o que é do que não é; deixai aos vossos adversários a cólera e as injúrias, guardai para vós o papel da força verdadeira: o da dignidade e da moderação.

De resto, não é preciso exagerar as conseqüências dessas calúnias, que levam consigo o antídoto de seu veneno, e são em definitivo mais vantajosas do que nocivas. Forçosamente, elas provocam o exame de homens sérios que querem julgar as coisas por si mesmos, e nisso são excitados em razão da importância que se lhe dá; ora, o Espiritismo, longe de temer o exame, provoca-o, e não se lamenta senão de uma coisa, é que tantas pessoas dele falam como os cegos das cores; mas graças aos cuidados que nossos adversários tomam em fazê-lo conhecer, esse inconveniente logo não existirá mais, e é tudo o que pedimos. A calúnia que ressalta desse exame engrandece-o em lugar de rebaixá-lo.

Espíritas, não lamenteis, pois, essas deturpações; não tirarão nenhuma das qualidades do Espiritismo; ao contrário, as farão ressaltar com mais estrondo pelo contraste, e se voltarão para a confusão dos caluniadores: essas mentiras, certamente, podem ter por efeito imediato enganar algumas pessoas, e mesmo desviá-las; mas o que é isso? O quê são alguns indivíduos perto das massas? Sabeis, vós mesmos, quanto o seu número é pouco considerável. Que influência isso pode ter sobre o futuro? Esse futuro vos está as segurado: os fatos realizados vos respondem por ele, e cada dia vos traz a prova da inutilidade dos ataques de nossos adversários. A doutrina do Cristo não foi caluniada, qualificada de subversiva e de ímpia? Ele mesmo não foi tratado como velhaco e como impostor? Perturbou-se com isso? Não, porque sabia que seus inimigos passariam e que a sua doutrina ficaria. Assim o será com o Espiritismo. Singular coincidência! Não é outro senão chamado à pura lei do Cristo, e é atacada com as mesmas armas! Mas seus detratores passarão; é uma necessidade à qual ninguém pode se subtrair. A geração atual se extingue todos os dias, e com ela vão os homens imbuídos dos preconceitos de um outro tempo; a que se ergue está nutrida de idéias novas, e sabeis, aliás, que se compõe de Espíritos mais avançados que devem fazer, enfim, a lei de Deus reinar sobre a Terra. Olhai, pois, as coisas de mais alto; não as vejais do ponto de vista restrito do presente, mais estendei vossos olhares para o futuro e dizei a vós mesmos: O futuro é nosso; que nos importa o presente! Que nos fazem as questões de pessoas! As pessoas passam, as instituições ficam. Pensai que estamos num momento de transição; que assistimos à luta entre o passado que se debate e se coloca para trás, e o futuro que nasce e se coloca para adiante. Quem levará a melhor? O passado é vicioso e caduco, - falamos das idéias, - ao passo que o futuro é jovem, e caminha para a conquista do progresso que está nas leis de Deus. Os homens do passado se vão com ele; os do futuro chegam; saibamos, pois, esperar com confiança e nos felicitemos por sermos os primeiros pioneiros encarregados de arrotear o terreno. Se temos o trabalho, teremos o salário. Trabalhemos, pois, não para uma propaganda colérica e irrefletida, mas com a paciência e a perseverança do trabalhador que sabe o tempo que lhe é preciso para chegar à colheita. Semeemos a idéia, mas não comprometamos a colheita por um ensinamento intempestivo e por nossa impaciência, antecedendo a estação própria para cada coisa. Cultivemos, sobretudo as plantas férteis que não pedem senão produzir; são bastante numerosas para ocupar todos os nossos instantes, sem usar nossas forças contra rochas irremovíveis que Deus se encarrega de abalar e destruir, quando chegar seu tempo, porque se tem a força de elevar as montanhas, tem a de abaixá-las. Tiremos a figura, e digamos simplesmente que há resistências que seria supérfluo procurar vencer, e que se obstinam mais por amor-próprio, ou por interesse, do que por convicção; seria perder seu tempo procurar traze-los a si; não cederão senão diante da força da opinião. Recrutemos os adeptos entre as pessoas de boa vontade, que não faltam; aumentemos a falange de todos aqueles que, cansados da dúvida e assustados com o nada materialista, não pedem senão crer, e logo o número deles será tal que os outros acabarão por se render à evidência. Esse resultado já se manifesta, e esperai, dentro em pouco, a ver em vossas fileiras aqueles que nela não esperáveis senão os últimos.

Revista Espírita Março 1863

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

As mediunidades de Kardec


Por Sergio Fernandes Aleixo

O codificador do espiritismo[1] leciona que os médiuns inspirados têm mais dificuldade de discernir o pensamento que lhes é sugerido daquele que lhes é próprio, ao oposto dos médiuns intuitivos, nos quais essa distinção se apresenta mais sensível, sendo os primeiros uma variedade dos segundos. Considera ainda o mestre espírita que, bem sugestionados por nossos anjos guardiães, espíritos protetores e familiares, sob esse aspecto, todos somos médiuns. Motivo, pois, não haveria para que Kardec não o fosse. E o era, por sinal, do Espírito da Verdade, seu guia, publicamente declarado.[2]

Reconheceu, além disso, ser assistido com ideias que lhe eram sugeridas pelos espíritos, ao mesmo tempo em que afirmou não ter “nenhuma das qualidades exteriores da mediunidade efetiva”.[3] Que quis dizer o mestre com isto? Eis a questão. Que não via, nem ouvia espíritos? Ou, por outra, que não lhe causavam frêmitos agindo sobre seu braço para fazê-lo escrever, nem lhe provocavam transes? Esta segunda alternativa é mais razoável para “qualidades exteriores” da mediunidade efetiva, visto que pode ser efetiva, ou seja, real, sem ser ostensiva, isto é, notada, manifesta à percepção de terceiros.

Certa feita, observado em meio a seu trabalho por um espírito que manteve diálogo mediúnico com um leitor da sua Revista, Kardec foi surpreendido a escrever, e estava rodeado por cerca de vinte espíritos, que “murmuravam acima de sua cabeça”. Segundo esse espírito, Kardec os “ouvia” tão bem que olhava para todos os lados para ver de onde vinha o “ruído”, chegando a erguer-se, abrir a janela e checar se não seria, por acaso, o vento ou a chuva. Comunicado sobre isso por correspondência posteriormente publicada na sua Revista, o mestre externou que o fato era absolutamente exato. Contudo, fica esclarecido que só dois ou três desses cerca de vinte espíritos sopravam diretamente ao codificador o que deveria escrever, e que o mestre julgava serem dele mesmo as ideias. Médium, pois, inspirado; quase audiente neste caso;[4] o que também se deduz da mensagem de 14 de setembro de 1863, em que a ação espiritual é relatada tão constante ao derredor do mestre, sobretudo a do Espírito da Verdade, que mesmo ele não a podia negar.[5]

Até aqui, não pode haver dúvidas nem discordâncias sobre a mediunidade de Kardec. Intuição, inspiração, semiaudiência. Mas pode-se ir além? E quanto a ver os espíritos? Bem... Kardec ensina que quase sempre os médiuns videntes exercem essa faculdade em estado sonambúlico, ou dele aproximado; que não raro ela é efeito de crise passageira e, nessa medida, apresenta, portanto, a qualidade exterior do transe. Segundo o mestre, porém, alguns médiuns videntes exercem sua faculdade em estado normal, perfeitamente acordados.[6] A priori, não há deste último tipo de exercício qualquer qualidade exterior; é efetivo, mas não ostensivo, a menos que se possa aferir a precisão das visões mediúnicas, por exemplo, nos casos de reconhecimento de falecidos por terceiros.

Ora, em O Livro dos Espíritos, 257, Kardec surpreende ao dizer que viu desencarnados atravessando o fogo sem que isso lhes causasse dor alguma. No original: “nous en avons vu passer à travers les flammes”: “já os vimos atravessar chamas”;[7] “vimo-los passar através das chamas”.[8] Para não conferir a seus textos conotação muito impositiva e pessoal, escritores podem tratar a si mesmos por nós em vez de eu. Chama-se plural de modéstia.[9] Uma constante, aliás, em Kardec; quase sempre se refere a si na 1.ª pessoa do plural; raramente na 1.ª pessoa do singular. Mesmo que se queira imaginar aí a expressão de experiência compartilhada por outros, ainda assim, o próprio Kardec estará incluído na ação verbal; doutro modo, escreveria algo como “foram vistos”, ou “têm sido vistos passar através das chamas”, e nunca: “nós os vimos, os temos visto”. Entenda-se: “Eu os vi, os tenho visto passar pelas chamas”.

Em O Livro dos Médiuns, 169, o mestre espírita reporta uma experiência, desta vez junto a muito bom médium vidente, que o acompanhou a uma ópera.[10] Ali mesmo, após um baixar da cortina, evocou e conversou com Weber, autor de Obéron. Este, após estabelecer breve diálogo com Kardec e o médium, deixou-os, prometendo insuflar nos cantores mais ímpeto. Dito e efeito. Nesse ínterim, Kardec surpreende novamente ao escrever: “Alors on le vit sur la scène, planant au-dessus des acteurs; un effluve semblait partir de lui et se répandre sur eux; à ce moment, il y eut chez eux une recrudescence visible d'énergie”: “Vimo-lo então sobre o palco, pairando acima dos atores. Um eflúvio parecia derramar dele para os intérpretes, espalhando-se sobre eles. Nesse momento verificou-se entre eles uma visível recrudescência da energia”.[11] Kardec mesmo viu o espírito e, pois, trata-se de novo plural de modéstia; ou, por outro lado, como neste caso é possível considerar, foi o mestre partícipe da visão do médium, o que, ali, até funcionou como controle, garantindo a um e outro que não eram vítimas da imaginação; ambos viram. Como quer que seja, Kardec viu o espírito de Weber sobre os atores em cena.

Contra isso, aparentemente, vai uma observação do codificador sobre a descrição de dois espíritos que viveram em passado mais distante e que foram avistados por aquele que, provavelmente, era o mesmo médium que esteve com ele na ópera. Escreve o mestre que, nesse caso, nada podia provar que não se tratasse apenas da imaginação do sensitivo, porque não havia “controle”, i. é, uma confirmação da descrição da aparência dos espíritos, como houve noutros exemplos relativos a mortos recentes e cujos detalhes atinentes a seu aspecto puderam ser subscritos por amigos e parentes dos falecidos. Nada, porém, existe aí que negue a Kardec a eventual condição de médium vidente, discretamente externada nos passos comentados de O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Outra forma de comprovação seria Kardec, ou um terceiro, também avistá-los. Parece, contudo, que isso não ocorreu, o que não é desabonador a priori, como bem explica o mestre na referida observação.[12]

[1] Kardec disse: “Em tudo isto não fiz senão recolher e coordenar metodicamente o ensino dado pelos Espíritos; sem levar em conta opiniões isoladas, adotei as do maior número, afastando todas as ideias sistemáticas, individuais, excêntricas ou em contradição com os dados positivos da Ciência”. (Revista Espírita. Set/1863. Segunda Carta ao Padre Marouzeau.) Modesto, minimizou sua participação; entretanto, o advérbio revela a importância pessoal dele: “recolher e coordenar metodicamente”. Não menos relevante é o fato de Kardec haver bem fixado a matéria-prima do seu trabalho: “o ensino dado pelos espíritos”. Kardec não inventou nenhum princípio. Todos resultaram do ensino; todavia, submetido, sim, à conjuntura dessa coleta e coordenação metódica, mérito de Kardec, sem o que não haveria espiritismo. Uma codificação implica o ato de codificar, que não é só reunir, compilar; há que fazê-lo sistematicamente (A.B.L., 2008). No caso do espiritismo, ou doutrina dos espíritos, ou espírita, houve reunião, compilação de materiais e, daí, a inferência paradigmática de princípios, cujo estabelecimento se deveu ao método de Kardec. Não tem relevância o fato de ser ausente das obras dele a designação codificador. Essa percepção demandaria distanciamento histórico. Chamá-lo assim só o diminuiria se excluísse seus esforços de coleta e coordenação metódica do ensino espírita; mas no ato de codificar estão implicados o mérito e as escolhas pessoais do codificador, evidentemente determinantes. O caso é, pois, mais lexicográfico que doutrinário.
[2] Cf. O Livro dos Médiuns, 182. Revista Espírita. Nov/1861. Discurso aos espíritas bordeleses.
[3] Cf. Revista Espírita. Set/1867. Caráter da Revelação Espírita. Nota ao n. 45.
[4] Cf. Revista Espírita. Maio/1859. Cenas da Vida Privada Espírita. N.ºs 47 a 53.
[5] Cf. Obras Póstumas. Imitação do Evangelho, Paris, 14 de setembro de 1863.
[6] Cf. O Livro dos Médiuns, 167.
[7] E. N. Bezerra, 1.ª ed. Comemorativa do Sesquicentenário, F.E.B., 2006, p. 202.
[8] J. Herculano Pires, 54.ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 144.
[9] Cunha, C. & Cintra, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Cap. 11. 3.ª ed., 7.ª impressão, Nova Fronteira, 2001, p. 283.
[10] Provavelmente, o Sr. Adrien, membro da S.P.E.E. Cf. Revista Espírita. Dez/1858: “Estivemos juntos nos teatros, bailes, passeios, hospitais, cemitérios e igrejas; assistimos a enterros, casamentos, batismos e sermões; em toda parte observamos a natureza dos espíritos que ali vinham reunir-se, estabelecendo conversação com alguns deles, interrogando-os e aprendendo muitas coisas que tornaremos proveitosas aos nossos leitores”.
[11] J. Herculano Pires, 18.ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 176. Negrito meu. Obs.: A forma vit é 3.ª pessoa do singular do passé simple, il vit: ele viu. Kardec, porém, usou o pronome impessoal on, que equivale ao nosso a gente, embora também possa indicar indeterminação do sujeito: viu-se, razão pela qual divergem os tradutores entre “a gente o viu / nós o vimos / vimo-lo” e “foi visto”. Concordo com Herculano Pires: “vimo-lo”. Se havia dois candidatos a praticante da ação verbal (Kardec e/ou o médium), por que o mestre indeterminaria o sujeito? O mesmo se verifica no número seguinte, o n. 170. Escreve Kardec, acompanhado de outro médium e sobre diferente espírito: “Cela dit, on le vit aller se placer...”; “Dito isto, vimo-lo ir colocar-se...”. Herculano, desta vez, salteia a expressão: “Dito isso, foi se colocar...”. G. Ribeiro acresce palavra inexistente: “Dizendo isso, o médium o viu ir colocar-se...”.
[12] Cf. Revista Espírita. Dez/1858. Conversas Familiares de Além-Túmulo. “Uma Viúva de Malabar” e “A Bela Cordoeira”.

Fonte: Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013/12/as-mediunidades-de-kardec.html

Será que Kardec leu Darwin?

Por Ademir Xavier 

Sabe-se bem que a segunda metade do século 19 foi uma época extraordinária. Invenções que marcariam o progresso no século seguinte, descobertas científicas inigualáveis que modificariam a visão científica do mundo e conquistas humanas nunca imaginadas foram então realizadas. No palco de revelações em que se converteu a Europa da época, o surgimento do Espiritismo em 1857 com a publicação de "O Livro dos Espíritos" e a publicação de "Sobre a Origem das Espécies por meio de seleção natural" por Charles Darwin (1809-1882) em 1859 contam como "algumas" das realizações notáveis.

Em um artigo recente (1), Paulo Neto analisa o argumento corrente de que Kardec antecipou Darwin, o que é comum se ouvir nos meios espíritas. Essa questão dá origem a uma pequena 'querela' (2) entre os que sustentam que Kardec antecipou Darwin e os que acham o contrário, inclusive que Kardec teria feito uso dos trabalhos do emintente cientista inglês. Para o autor do artigo citado:

Ficamos boquiabertos, tamanha a nossa surpresa diante de tal infirmação, pois, para nós, foi Kardec quem se utilizou da teoria de Darwin, conforme iremos demonstrar.

E, na conclusão do artigo:

Para nós, foi Kardec que se aproveitou da teoria da evolução das espécies de Darwin para voltar com o assunto e, como já havia suporte científico, os Espíritos foram mais explícitos na questão, reformulando o que disseram anteriormente, para afirmarem sobre a evolução do espírito através do reino animal.

Em que consiste a demonstração proposta? Consistiu sumariamente em comparar trechos da 1a edição de 'O Livro dos Espíritos' (LE, a saber a questão #127) e a questão #607 que reproduzimos abaixo: 

607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento? 

“Numa série de existências que precedem o período a que chamais humanidade.”

Essa resposta é comparada à da questão #127 da primeira edição onde o estado da 'alma do homem' não é identificado como tendo migrado entre outras espécies. No que segue abaixo, tecemos alguns comentários para mostrar que a questão é muito mais complexa do que se pode imaginar tão só a partir da comparação dos textos propostos.

Alguns comentários relevantes

O significado do termo 'alma do homem' pode ter evoluído da primeira para a segunda edição. No primeiro caso, ela pode se referir à alma do homem como ser encarnado e dispondo de consciência plenamente desenvolvida para o estado da 'humanidade';

A sugestão de influência das ideias de Darwin na obra kardequiana não tem respaldo em evidência alguma. Pelo contrário, pode-se dizer de forma segura que a ideia de que as espécies se modificavam era amplamente conhecida na época da primeira edição do LE na forma de um conjunto de teorias de transformismo de espécie. O que não se conhecida era o mecanismo pelo qual isso ocorreria;

A época em que essas ideias se desenvolveram não dispunha de meios de comunicação como os que temos hoje. Segundo o prof. Silvio Chibeni (3), é bastante provável que Kardec não tenha tido acesso à obra de Darwin e que, portanto, sua opinião reflete o ponto de vista conhecido entre a elite intelectual francesa da segunda metade do século XIX;

Assim, o conhecimento de Kardec sobre a evolução pode totalmente ser compreendido no contexto do conhecimento da época, inclusive no momento da publicação da 1a edição.
Ainda segundo o prof. S. Chibeni (3): 

"Eu também suspeito, como você, que o Kardec não acompanhava a literatura especializada em biologia (ou história natural, como se chamava à época), especialmente de um país de língua inglesa. Além disso, o livro do Darwin que trata do homem é o 'The Descent of Man', de 1871. No 'The Origin of Species', ele evita falar no homem, ao propor a teoria da seleção natural (e note-se que essa teoria é que é a teoria importante e original de Darwin, não a evolução, que já era amplamente admitida)." (grifos meus)

Portanto, o que Darwin escreveu em 1859 na  "Origem das Espécies" apenas por inferência se aplicaria ao homem no contexto histórico da época. Que a ideia da evolução não era novidade então (inclusive no tempo da 1a edição) pode ser compreendido por inúmeros trabalhos posteriores sobre a história da evolução natural, trabalhos que, inclusive, sugerem fortemente que Darwin se escorou em outros (4). O próprio mecanismo da evolução foi co-descoberto pelo grande espiritualista inglês Alfred R. Wallace. O trabalho de Robert Chambers (1802-1871) , Fig. 1, por exemplo, causou um grande furor antes de Darwin. 


Fig. 1 Esta figura foi extraída do livro "Vestígios da História Natural da Criação" de Robert Chambers e mostra o modelo de desenvolvimento dos peixes (F), répteis (R), pássaros (B) dando origem aos mamíferos (M). O livro de Chambers foi publicado em 1844, demonstrando que a ideia da descendência entre espécies já era conhecida bem antes de 'O Livro dos Espíritos' e da 'Origem das Espécies'. Segundo o artigo 'Transmutation of species'. 

O que diz "A Gênese"

Em um texto posterior em "A Gênese" , de 1868, (Capítulo XI) podemos ler, no parágrafo 15:

Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.

Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco." (grifo meu)

Veja que, em 1868, Kardec considerava a possibilidade de transformação das espécies ainda como uma hipótese. E, mais para frente, no parágrafo 16:

"Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (nº 11). Melhorados, os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.  

Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a semelhante." (grifos meus)

Ora, em nenhum desses trechos transparece a ideia da seleção natural, mas, os conceitos estão de acordo com o que era conhecido antes de Darwin, ainda no campo das hipóteses. Portanto, é bastante claro que Kardec não leu nada de Darwin, mesmo em 1868. Também é de estranhar que esses trechos não tenham sido citados no trabalho (1). O assunto é, portanto, bem mais complexo do que a simples comparação de trechos limitados pode permitir.

Uma razão importante para considerar a falta de consideração de Kardec por essas teorias modernas em sua época era, provavelmente, a sua falta de tempo e a quantidade de trabalhos acumulados com a codificação (3).

Ressaltamos ainda que o Espiritismo é uma das poucas doutrinas religiosas que aceitam abertamente a noção de evolução e o mecanismo de sua operação, sustentando a proposta de que esse mecanismo serviria de base ao desenvolvimento do espírito.

Referências e notas

(1) Revista Espiritismo & Ciência nº 108. São Paulo: Mythos Editora, nov/2013, p. 18-22. Uma versão em PDF deste trabalho pode ser baixada aqui.

(2) No caso, esse ainda é um debate de reduzida importância frente a outros temas centrais do Espiritismo.

(3) Comunicação particular com Silvo Chibeni.

(4) Personalidades como: J. B. Lamarck (1744-1829), T. Malthus (1766-1834), Comte de Buffon (1707-1788), A. R. Wallace (1823-1913, praticamente um "co-descobridor" da seleção natural), E. Darwin (1731-1802), C. Lyell (1797-1875), J. Hutton (1726-1797) e mesmo G. Curvier (1769-1831) exerceram influência considerável sobre C. Darwin, assim como Robert Chambers.

Fonte: Blog "A Era do Espírito" - http://eradoespirito.blogspot.com.br/2013/11/sera-que-kardec-leu-darwin.html

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

[VÍDEO] - Palestra "O Espírito do Espiritismo - O Legado de Kardec"

Apresentação de Ricardo Sardinha

Até que ponto a sua "fé raciocinada" é capaz de encarar a razão frente a frente em todas as épocas da humanidade ?

O mínimo que devemos a Allan Kardec é o RESPEITO pelo seu legado, e o que nós, espíritas, estamos fazendo com a semente que ele deixou aos nossos cuidados ?

Essas e outras reflexões fazem parte da palestra O Espírito do Espiritismo - O Legado de Kardec, proferida por Ricardo Sardinha em 02/10/2013 no Centro Espírita Luiz Sergio, do Rio de Janeiro.