Autor: Dadinho
Por falta de acesso a informações no âmbito social, político e histórico do período da entrada dos conceitos espíritas no Brasil, no início do século XIX, e por aceitação de obras psicografadas diversas, sem a devida crítica e submissão ao método do controle universal elaborado por Kardec, uma parte considerável da comunidade espírita foi formando e assumindo paulatinamente o conceito de 'religião espírita', sem nem mesmo entender os motivos extra doutrinários que levaram a isso.
Começamos esse nosso pequeno artigo destacando um pequeno trecho de O Que é o Espiritismo, elaborado por Allan Kardec, quando o mesmo tece comentários sobre o 'Terceiro Diálogo - O Padre':
"O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, quem o proclamou nova religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina melhor."
Observando-se o parágrafo acima, claramente percebemos que Kardec nunca tinha visto, até então, o Espiritismo como uma religião. Tal conceito ou atributo lançado à doutrina codificada por Kardec foi, segundo seu entendimento, proposta por seguidores de outras religiões, sendo os católicos os mais interessados naquele momento devido ao seu número de adeptos, que legitimava uma grande influência social e política. Por motivos óbvios tal poder justificava o interesse em denegrir a imagem dessa nova doutrina, comparando-a com seus próprios preceitos, sobretudo quando se tratava da figura de Jesus. Sendo a religião católica a que por 'direito' poderia se intitular como cristã, fazia-se mister 'elevar' o Espiritismo ao patamar de religião para justificar ao mundo sua postura não simplesmente herege, mas sim blasfema, por se intitular como religião cristã.
Ainda no Terceiro Diálogo, inquirido sobre as questões dogmáticas inerentes à todas as religiões, Kardec apresenta mais detalhes sobre os fundamentos da doutrina espírita, em que ela realmente se pauta, concluindo, sem rodeios, sobre o seu verdadeiro caráter:
"O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões dogmáticas. Esta ciência tem conseqüências morais como todas as ciências filosóficas"
(...)
"Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião"
(...)
"Que prova tudo isto? Que não somos ateus, o que não quer dizer que sejamos professos de religião reformada."
(...)
"Eis por que, sem ser uma religião, o Espiritismo se prende essencialmente às idéias religiosas, desenvolve-as naqueles que não as possuem, fortifica-as nos que as têm incertas."
Interessante observar que a FEB, em nota de rodapé à antepenultima citação acima de Kardec, sugere a leitura da revista Reformador de 1949, pág 217. Nesse exemplar da referida revista, há comentários que levam a uma certa confusão na aplicação da palavra religião ao Espiritismo, sugerindo uma correlação direta entre ambos.
O parágrafo abaixo, encontra-se em O Evangelho Segundo o Espiritismo e, mais uma vez, deixa clara a opinião de Kardec sobre o tema:
"O Espiritismo é uma opinião, uma crença; fosse até uma religião, por que se não teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se dizer católico, protestante, ou judeu, adepto de tal ou qual doutrina filosófica, de tal ou qual sistema econômico?"
Tal passagem possui a mesma nota da FEB sobre a Revista Reformador, sendo que sua tradução também não foi muito feliz com relação à segunda oração. O original em francês "fût-il même une religion (...)" apresenta o advérbio 'mesmo' que não foi trazido para a versão em português, e que tornaria a frase assinalada muito mais inteligível ao leitor, caso fosse escrita como "fosse mesmo uma religião (...)", ou também "ainda que fosse uma religião (...)". Não há justificativa para a omissão do advérbio por parte do tradutor no caso acima, a menos que houvesse uma necessidade premente que o impulsionasse para isso, tal como o interesse em adequar a tradução ao conteúdo da Revista Reformador já citada, buscando uma coerência, ou por outra questão de ordem talvez até mais profunda, a sobrevivência, como sugere o texto a seguir.
Porque mudar a visão de doutrina para religião?
Mas porque esse interesse tão intenso de mudar a visão de doutrina para religião, destruindo a idéia original de Kardec?
O que ocorre é que, no início do século passado, havia muita perseguição às casas espíritas, por conta do Código Civil vigente, que proibia a manifestação de sessões com características de bruxaria, de maravilhoso, de ilusão. Como os grupos espíritas exerciam trabalhos mediúnicos, esses eram vistos com maus olhos pelas autoridades, sobretudo aquelas sob forte influência católica.
Pessoas da alta sociedade e influentes que estudavam e acreditavam no Espiritismo, tentaram mudar o Código Civil para que as casas espíritas não sofressem mais represálias, contudo não obtiveram êxito. Algumas dessas pessoas faziam inclusive parte da FEB. Uma vez derrotadas, elas decidiram legitimar o funcionamento das instituições espíritas através de prerrogativas descritas na Constituição Federal, já que o Código Civil não poderia ir de encontro a ela. Para tanto, bastava que se olhasse para o Espiritismo não mais como doutrina, mas sim como uma religião, pois era (e é até hoje) garantido a todo cidadão brasileiro o direito de crer e vivenciar a religião de seu interesse.
Leia um trecho da tese de doutorado da Dra. Raquel Marta da Silva:
"Buscando novos discursos, os representantes espíritas perceberam que, a partir desse Código, ficava explícito uma incompatibilidade entre a condenação ao ‘espiritismo' e a promoção da liberdade de consciência e de crença que faziam parte da plataforma republicana que constavam do projeto de Constituição então em avaliação. Segundo Giumbelli, foi a partir dessa argumentação que o movimento trilhou um outro percurso para atingir sua legitimidade. Ou seja, os espíritas perceberam que esse caminho devia ser traçado a partir da sustentação da tese de que, acima de tudo, o espiritismo se caracterizava pelo seu aspecto doutrinário. Portanto, tratava-se de mostrar que o Código Penal, ao perseguir seus fiéis, estava não só sendo incoerente com a proposta da Constituição que seria promulgada em 1891, como também, estaria desrespeitando o direito e a liberdade dos cidadãos brasileiros em escolherem e praticarem suas crenças religiosas. Enfim, a reivindicação do caráter ‘religioso' da ‘doutrina espírita' representava a escolha de uma via de legitimação bem fundada. Isto é, não se tratava apenas de uma forma possível de definir um conjunto de concepções e práticas oportunizada pelo seu sistema conceitual, mas de uma interpretação que poderia ser aceita por aqueles a quem cabia julgá-las."
Com essa nova iniciativa, ainda que sendo vez ou outra alvo de ataques, os grupos espíritas daquela época passaram a conquistar seu espaço. Foi uma grande conquista, apesar do caminho não muito coerente de renunciar a sua origem e verdadeira pureza filosófico-científica. Essa medida iniciou uma grande confusão que vemos nos dias de hoje quando se fala no 'aspecto tríplice' da Doutrina Espírita, que, de fato, não existe. Acreditamos que tal ação equivocada foi antes inocente, que intencional.
Cabe aqui ressaltar um segundo fato histórico: os grupos de umbanda, que naquele momento passavam pelos mesmos problemas que o dos espíritas, sendo perseguidos até mesmo de forma mais ostensiva, aproveitaram o 'gancho' iniciado pela FEB e passaram a se identificar como grupos espíritas, terreiros espíritas, etc., apresentando-se como uma espécie de ramificação da 'religião espírita'. Conseguiram, assim, manter suas reuniões, apesar de não possuírem qualquer ligação com o Espiritismo. É por esse motivo que, até hoje, os frequentadores de tais grupos religiosos identificam-se como espíritas, embora o seu sentido não tenha qualquer ligação com o sentido original criado por Kardec.
Importa notar, baseado nos comentários acima citados, que a idéia de Espiritismo religião somente veio à luz no Brasil, durante o período acima, mas principalmente por questões políticas e jurídicas! Até então, não se fazia alusão a esta idéia, mesmo porque o próprio codificador a refutava textualmente, como fica claro nos textos acima citados, bem como na "Revista Espírita" de dezembro de 1868, no texto intitulado "O espiritismo é uma religião?":
"O espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres duma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria ornar-se de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral"
Diferença entre Espiritismo e movimento espírita
Apesar de tudo o que escrevemos acima, como doutrina filosófica, podemos considerar a possibilidade de o Espiritismo originar grupos de estudos com pensamentos e ações distintos, que vão variar seus comportamentos, conceitos e aceitações de acordo com os costumes, o ambiente, o foco das pesquisas, etc. Nesse aspecto, podemos ver surgir uma silhueta de religião a se formar instintivamente nas mentes das pessoas, já que qualquer religião demanda a existência de uma doutrina filosófica.
O inverso, contudo, não é verdade, isto é, nem toda doutrina filosófica possui estrutura para se edificar uma religião. O Espiritismo, por força das conseqüências morais que dele decorrem, possui uma base de conhecimento suscetível de dar ensejo a alguma religião. Esse talvez seja o agente que mais traz confusão nas mentes das pessoas, pois é da natureza humana querer sempre concluir algum pensamento. Mas não é porque o Espiritismo pode proporcionar o nascimento de uma religião através de sua filosofia, que ele será a religião em si. A música dos indígenas ou dos terreiros, por exemplo, possuem estruturas que possibilitam uma melhor concentração e, assim, facilitam a comunicação mediúnica, mas a música não é a comunicação mediúnica.
Acreditamos que textos de livros como "Brasil, coração do mundo, Pátria do Evangelho", por serem por demais saudosistas, enaltecendo o posicionamento religioso das pessoas, acentuam a fragilidade destas para a percepção dos conceitos originais trazidos por Kardec sobre esse tema.
Esclarecendo um pouco mais, apreciemos um outro texto de Kardec, ainda na "Revista Espírita" de dezembro de 1868:
"o laço estabelecido por uma religião é um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, [...]. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, [...] a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. [...] Se assim é, perguntarão, então o espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o espiritismo é uma religião"
Ora, considerando-se apenas o aspecto filosófico, religião e Espiritismo se confundem, pois ambos, como diz Kardec, estabelecem um laço moral entre seus participantes. Mas religião e Espiritismo não são somente filosofia. Eles possuem outras características que os tornam diametralmente distintos, ainda que possuam este ponto de contato. Podemos citar por exemplo os dogmas, no primeiro caso e a ciência, no segundo. Comparando com o comentário anterior, a música e a comunicação mediúnica se confundem no quesito concentração, pois precisam que este exista, porém guardam a sua individualidade nos demais aspectos.
Isso fica patente quando vemos, ainda no trecho de O Que é o Espiritismo, a seguinte citação de Kardec:
"A religião encontra, pois, um apoio nele*, não para as pessoas de vistas estreitas, que a vêem integralmente na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas para aqueles que a vêem segundo a grandeza e a majestade de Deus." *(no Espiritismo)
Observe que Kardec faz questão de anunciar que um e outro são coisas distintas, mas que a religião pode ter, no Espiritismo, o apoio para a consolação.
Ou seja, a religião precisa do Espiritismo, mas o contrário não é verdade. Muitos de nós esquecemos disso e o que temos feito desde o século passado é conceituar a Doutrina Espírita com as nossas próprias características socio-filosóficas humanas. Quem é religioso é o movimento espírita, e não o Espiritismo.
BIBLIOGRAFIA
Dicionário das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Enciclopédia Combi VisualEnciclopedia Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional, 1985-1991.
IDÍGORAS, J. L. Vocabulário Teológico para a América Latina. São Paulo, Edições Paulinas, 1983.
MENDONÇA, E. P. O Socratismo Cristão e as Origens da Metafísica Moderna. São Paulo, Convívio, 1975.
SANTOS, José L. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997.
SILVA, Raquel. M. Chico Xavier: imaginário e representações simbólicas no interior das Gerais. Uberlândia: UFU, 2002. (Dissertação de Mestrado).
STOLL, Sandra J. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. São Paulo: USP, 1999. (Tese de Doutorado).
SILVA, Raquel Marta da - A construção do imaginário espírita brasileiro (Tese de Doutorado)
Por falta de acesso a informações no âmbito social, político e histórico do período da entrada dos conceitos espíritas no Brasil, no início do século XIX, e por aceitação de obras psicografadas diversas, sem a devida crítica e submissão ao método do controle universal elaborado por Kardec, uma parte considerável da comunidade espírita foi formando e assumindo paulatinamente o conceito de 'religião espírita', sem nem mesmo entender os motivos extra doutrinários que levaram a isso.
Começamos esse nosso pequeno artigo destacando um pequeno trecho de O Que é o Espiritismo, elaborado por Allan Kardec, quando o mesmo tece comentários sobre o 'Terceiro Diálogo - O Padre':
"O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, quem o proclamou nova religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina melhor."
Observando-se o parágrafo acima, claramente percebemos que Kardec nunca tinha visto, até então, o Espiritismo como uma religião. Tal conceito ou atributo lançado à doutrina codificada por Kardec foi, segundo seu entendimento, proposta por seguidores de outras religiões, sendo os católicos os mais interessados naquele momento devido ao seu número de adeptos, que legitimava uma grande influência social e política. Por motivos óbvios tal poder justificava o interesse em denegrir a imagem dessa nova doutrina, comparando-a com seus próprios preceitos, sobretudo quando se tratava da figura de Jesus. Sendo a religião católica a que por 'direito' poderia se intitular como cristã, fazia-se mister 'elevar' o Espiritismo ao patamar de religião para justificar ao mundo sua postura não simplesmente herege, mas sim blasfema, por se intitular como religião cristã.
Ainda no Terceiro Diálogo, inquirido sobre as questões dogmáticas inerentes à todas as religiões, Kardec apresenta mais detalhes sobre os fundamentos da doutrina espírita, em que ela realmente se pauta, concluindo, sem rodeios, sobre o seu verdadeiro caráter:
"O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões dogmáticas. Esta ciência tem conseqüências morais como todas as ciências filosóficas"
(...)
"Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião"
(...)
"Que prova tudo isto? Que não somos ateus, o que não quer dizer que sejamos professos de religião reformada."
(...)
"Eis por que, sem ser uma religião, o Espiritismo se prende essencialmente às idéias religiosas, desenvolve-as naqueles que não as possuem, fortifica-as nos que as têm incertas."
Interessante observar que a FEB, em nota de rodapé à antepenultima citação acima de Kardec, sugere a leitura da revista Reformador de 1949, pág 217. Nesse exemplar da referida revista, há comentários que levam a uma certa confusão na aplicação da palavra religião ao Espiritismo, sugerindo uma correlação direta entre ambos.
O parágrafo abaixo, encontra-se em O Evangelho Segundo o Espiritismo e, mais uma vez, deixa clara a opinião de Kardec sobre o tema:
"O Espiritismo é uma opinião, uma crença; fosse até uma religião, por que se não teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se dizer católico, protestante, ou judeu, adepto de tal ou qual doutrina filosófica, de tal ou qual sistema econômico?"
Tal passagem possui a mesma nota da FEB sobre a Revista Reformador, sendo que sua tradução também não foi muito feliz com relação à segunda oração. O original em francês "fût-il même une religion (...)" apresenta o advérbio 'mesmo' que não foi trazido para a versão em português, e que tornaria a frase assinalada muito mais inteligível ao leitor, caso fosse escrita como "fosse mesmo uma religião (...)", ou também "ainda que fosse uma religião (...)". Não há justificativa para a omissão do advérbio por parte do tradutor no caso acima, a menos que houvesse uma necessidade premente que o impulsionasse para isso, tal como o interesse em adequar a tradução ao conteúdo da Revista Reformador já citada, buscando uma coerência, ou por outra questão de ordem talvez até mais profunda, a sobrevivência, como sugere o texto a seguir.
Porque mudar a visão de doutrina para religião?
Mas porque esse interesse tão intenso de mudar a visão de doutrina para religião, destruindo a idéia original de Kardec?
O que ocorre é que, no início do século passado, havia muita perseguição às casas espíritas, por conta do Código Civil vigente, que proibia a manifestação de sessões com características de bruxaria, de maravilhoso, de ilusão. Como os grupos espíritas exerciam trabalhos mediúnicos, esses eram vistos com maus olhos pelas autoridades, sobretudo aquelas sob forte influência católica.
Pessoas da alta sociedade e influentes que estudavam e acreditavam no Espiritismo, tentaram mudar o Código Civil para que as casas espíritas não sofressem mais represálias, contudo não obtiveram êxito. Algumas dessas pessoas faziam inclusive parte da FEB. Uma vez derrotadas, elas decidiram legitimar o funcionamento das instituições espíritas através de prerrogativas descritas na Constituição Federal, já que o Código Civil não poderia ir de encontro a ela. Para tanto, bastava que se olhasse para o Espiritismo não mais como doutrina, mas sim como uma religião, pois era (e é até hoje) garantido a todo cidadão brasileiro o direito de crer e vivenciar a religião de seu interesse.
Leia um trecho da tese de doutorado da Dra. Raquel Marta da Silva:
"Buscando novos discursos, os representantes espíritas perceberam que, a partir desse Código, ficava explícito uma incompatibilidade entre a condenação ao ‘espiritismo' e a promoção da liberdade de consciência e de crença que faziam parte da plataforma republicana que constavam do projeto de Constituição então em avaliação. Segundo Giumbelli, foi a partir dessa argumentação que o movimento trilhou um outro percurso para atingir sua legitimidade. Ou seja, os espíritas perceberam que esse caminho devia ser traçado a partir da sustentação da tese de que, acima de tudo, o espiritismo se caracterizava pelo seu aspecto doutrinário. Portanto, tratava-se de mostrar que o Código Penal, ao perseguir seus fiéis, estava não só sendo incoerente com a proposta da Constituição que seria promulgada em 1891, como também, estaria desrespeitando o direito e a liberdade dos cidadãos brasileiros em escolherem e praticarem suas crenças religiosas. Enfim, a reivindicação do caráter ‘religioso' da ‘doutrina espírita' representava a escolha de uma via de legitimação bem fundada. Isto é, não se tratava apenas de uma forma possível de definir um conjunto de concepções e práticas oportunizada pelo seu sistema conceitual, mas de uma interpretação que poderia ser aceita por aqueles a quem cabia julgá-las."
Com essa nova iniciativa, ainda que sendo vez ou outra alvo de ataques, os grupos espíritas daquela época passaram a conquistar seu espaço. Foi uma grande conquista, apesar do caminho não muito coerente de renunciar a sua origem e verdadeira pureza filosófico-científica. Essa medida iniciou uma grande confusão que vemos nos dias de hoje quando se fala no 'aspecto tríplice' da Doutrina Espírita, que, de fato, não existe. Acreditamos que tal ação equivocada foi antes inocente, que intencional.
Cabe aqui ressaltar um segundo fato histórico: os grupos de umbanda, que naquele momento passavam pelos mesmos problemas que o dos espíritas, sendo perseguidos até mesmo de forma mais ostensiva, aproveitaram o 'gancho' iniciado pela FEB e passaram a se identificar como grupos espíritas, terreiros espíritas, etc., apresentando-se como uma espécie de ramificação da 'religião espírita'. Conseguiram, assim, manter suas reuniões, apesar de não possuírem qualquer ligação com o Espiritismo. É por esse motivo que, até hoje, os frequentadores de tais grupos religiosos identificam-se como espíritas, embora o seu sentido não tenha qualquer ligação com o sentido original criado por Kardec.
Importa notar, baseado nos comentários acima citados, que a idéia de Espiritismo religião somente veio à luz no Brasil, durante o período acima, mas principalmente por questões políticas e jurídicas! Até então, não se fazia alusão a esta idéia, mesmo porque o próprio codificador a refutava textualmente, como fica claro nos textos acima citados, bem como na "Revista Espírita" de dezembro de 1868, no texto intitulado "O espiritismo é uma religião?":
"O espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres duma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria ornar-se de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral"
Diferença entre Espiritismo e movimento espírita
Apesar de tudo o que escrevemos acima, como doutrina filosófica, podemos considerar a possibilidade de o Espiritismo originar grupos de estudos com pensamentos e ações distintos, que vão variar seus comportamentos, conceitos e aceitações de acordo com os costumes, o ambiente, o foco das pesquisas, etc. Nesse aspecto, podemos ver surgir uma silhueta de religião a se formar instintivamente nas mentes das pessoas, já que qualquer religião demanda a existência de uma doutrina filosófica.
O inverso, contudo, não é verdade, isto é, nem toda doutrina filosófica possui estrutura para se edificar uma religião. O Espiritismo, por força das conseqüências morais que dele decorrem, possui uma base de conhecimento suscetível de dar ensejo a alguma religião. Esse talvez seja o agente que mais traz confusão nas mentes das pessoas, pois é da natureza humana querer sempre concluir algum pensamento. Mas não é porque o Espiritismo pode proporcionar o nascimento de uma religião através de sua filosofia, que ele será a religião em si. A música dos indígenas ou dos terreiros, por exemplo, possuem estruturas que possibilitam uma melhor concentração e, assim, facilitam a comunicação mediúnica, mas a música não é a comunicação mediúnica.
Acreditamos que textos de livros como "Brasil, coração do mundo, Pátria do Evangelho", por serem por demais saudosistas, enaltecendo o posicionamento religioso das pessoas, acentuam a fragilidade destas para a percepção dos conceitos originais trazidos por Kardec sobre esse tema.
Esclarecendo um pouco mais, apreciemos um outro texto de Kardec, ainda na "Revista Espírita" de dezembro de 1868:
"o laço estabelecido por uma religião é um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, [...]. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, [...] a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. [...] Se assim é, perguntarão, então o espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o espiritismo é uma religião"
Ora, considerando-se apenas o aspecto filosófico, religião e Espiritismo se confundem, pois ambos, como diz Kardec, estabelecem um laço moral entre seus participantes. Mas religião e Espiritismo não são somente filosofia. Eles possuem outras características que os tornam diametralmente distintos, ainda que possuam este ponto de contato. Podemos citar por exemplo os dogmas, no primeiro caso e a ciência, no segundo. Comparando com o comentário anterior, a música e a comunicação mediúnica se confundem no quesito concentração, pois precisam que este exista, porém guardam a sua individualidade nos demais aspectos.
Isso fica patente quando vemos, ainda no trecho de O Que é o Espiritismo, a seguinte citação de Kardec:
"A religião encontra, pois, um apoio nele*, não para as pessoas de vistas estreitas, que a vêem integralmente na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas para aqueles que a vêem segundo a grandeza e a majestade de Deus." *(no Espiritismo)
Observe que Kardec faz questão de anunciar que um e outro são coisas distintas, mas que a religião pode ter, no Espiritismo, o apoio para a consolação.
Ou seja, a religião precisa do Espiritismo, mas o contrário não é verdade. Muitos de nós esquecemos disso e o que temos feito desde o século passado é conceituar a Doutrina Espírita com as nossas próprias características socio-filosóficas humanas. Quem é religioso é o movimento espírita, e não o Espiritismo.
BIBLIOGRAFIA
Dicionário das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Enciclopédia Combi VisualEnciclopedia Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional, 1985-1991.
IDÍGORAS, J. L. Vocabulário Teológico para a América Latina. São Paulo, Edições Paulinas, 1983.
MENDONÇA, E. P. O Socratismo Cristão e as Origens da Metafísica Moderna. São Paulo, Convívio, 1975.
SANTOS, José L. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997.
SILVA, Raquel. M. Chico Xavier: imaginário e representações simbólicas no interior das Gerais. Uberlândia: UFU, 2002. (Dissertação de Mestrado).
STOLL, Sandra J. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil. São Paulo: USP, 1999. (Tese de Doutorado).
SILVA, Raquel Marta da - A construção do imaginário espírita brasileiro (Tese de Doutorado)