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domingo, 1 de agosto de 2010

Da Inspiração à Transpiração

Por Eugenio Lara

Uma das primeiras frases lapidares que ouvi ao entrar na universidade, no curso de arquitetura e urbanismo, foi a de que arquitetura é 10 por cento inspiração e 90 por cento transpiração. Sem entrar no mérito desta proporção, se substituirmos aí a palavra arquitetura por outra qualquer, poder-se-ia aplicar tal ideia a inúmeros processos de produção intelectual, artística, a qualquer decurso inventivo que envolva o ato de projetação, algum procedimento criador, demiúrgico.

Essa afirmação ficou gravada na memória e nem lembro qual o professor que a proferiu. Soube depois que ela é atribuída ao grande inventor norte-americano Thomas Edson. Mas há quem diga que o autor da frase teria sido o físico alemão Einstein. Importa mesmo ressaltar a verdade capital que ela encerra: o conhecimento “não cai do céu”. Ele é imaginado, pensado, construído, trabalhado. Todo e qualquer conhecimento é sempre fruto da necessidade, da busca e do trabalho.

A inspiração, pura e simples, não leva a lugar algum se não se materializar mediante o labor, na criação, na produção. O trabalho pelo trabalho pode levar a um processo inspirativo, podendo nos animar, estimular e inspirar a prosseguir em determinado caminho ou a adotar alguma alteração de rumo, estética, conceitual, paradigmática. Já a inspiração ensimesmada é infrutífera, apenas sonhadora, estéril, se não se consubstanciar em um produto, algo palpável, concreto, que tenha significado, que desfrute de uma dimensão social.

Mesmo o conhecimento intuitivo tem uma base, uma origem quantitativa contida na qualidade das ideias que surgem, como um insight, uma “revelação”, cuja categorização é sempre histórica, jamais divina, pois a suposta oposição entre sagrado e profano é coisa dos séculos passados, não tem mais sentido, não mais se sustenta. O que nos conduz ao significado e sentido inverossímeis de qualquer informação que venha “do alto”.

Toda revelação “divina” é uma mentira, ilusão, uma falácia, tem um vício de origem, sofre de um “pecado original”. Supõe-se divina sem nunca ter sido. Supor que exista algo “divino” é o mesmo que imaginar a existência do “sobrenatural”. Nada há na natureza dos seres e das coisas que seja “divino”. Jamais houve. O sagrado e o profano são convenções culturais. O “divino” não morreu, simplesmente porque nunca existiu, a não ser enquanto fato cultural, social, existencial, evolutivo, ainda presente na mente das pessoas, da mesma forma que nunca existiu algo “sobrenatural”. Admitir o “divino” significa admitir o milagre. O milagre é o nada. Nada há que seja “sobrenatural”, “milagroso”.

Isto posto, a ideia de que uma corrente espiritualista, como a espírita, seja “dos espíritos”, “divina”, tipo um fato metafísico, hipostático, sobrenatural, não tem fundamento algum, a não ser que consideremos essa corrente de pensamento como uma forma de manifestação látrica, religiosa, sobrenatural, transcendental, o que seria um equívoco, uma traição a sua epistemologia primordial.

Por sua vez, ao sustentar que a elaboração do pensamento espírita é humana, física, da alçada dos seres humanos e não extrafísica, ou seja, dos espíritos (que também são humanos), Allan Kardec demarca, circunscreve o pensar espírita a uma dimensão histórica, social e radicalmente fora do âmbito transcendental. Não que suas proposições não tragam consigo uma certa transcendência em sua formulação, em sua práxis. Isso é evidente, principalmente na tenaz influência da linguagem cristã, sem perder de vista sua imanência, a íntima vinculação à concretude, à natureza, ao social.

As ideias, a matéria-prima informativa oriunda do diálogo com as mentes desencarnadas, portanto humanas, foram o esteio das reflexões kardequianas, no trabalho de elaboração, de estruturação da filosofia espírita.

Os 10 por cento de inspiração, no processo de factura kardequiana, veem acompanhados do amplo restante na forma de trabalho personalizado, concentrado e centralizado que Kardec, em sua extrema modéstia, dizia não ser dele, mas dos espíritos. Tal ideia reducionista foi por ele revista, repensada nos seus últimos escritos em Obras Póstumas. A permanente “fonte de inspiração” extrafísica (os 10 por cento) aliada aos 90 por cento de Rivail, desenham assim a sua obra filosófica, científica, ética, literária: a Kardequiana.

Afinal, quem realizou o trabalho informático, quem criou a terminologia, preparou as questões, quem efetivou as perguntas, com réplica, tréplica, enfim, através do diálogo, num processo dialógico, maiêutico, dialético, editorial e sintético? Foram os espíritos? Não, foi Kardec, o espírito mais lúcido dentre todos aqueles que (co)laboraram no quefazer doutrinário, em um trabalho de parceria, de equipe, onde ele foi, ao mesmo tempo, o compositor e o maestro, o arquiteto e o mestre-de-obras, o arco e a flecha, o arqueiro.

Ouso pensar que se não houvesse espíritos, ainda assim o Espiritismo ganharia forma, seria estruturado, surgiria enquanto modo de pensar o homem e o mundo, pois ele não é uma categoria de conhecimento que se equipare às revelações religiosas. É um conhecimento construído com muita transpiração, em aberto, processual, no tempo e no espaço. Ele é histórico, secular e nada, mas absolutamente nada tem de sagrado, de divino ou de transcendental em sua origem e elaboração. Em qualquer resultado oposto a essa origem, no seu desenvolvimento histórico-social, entrar-se-ia no terreno da antropologia, da sociologia, da psicologia social, da teologia, da filosofia da religião. E aí adentraremos em outros campos do saber humano, em outras vias de análise...

Eugenio Lara, arquiteto e jornalista, é cofundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), expositor do Centro Espírita Allan Kardec, de Santos-SP e do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS). É autor dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade e Conceito Espírita de Evolução.

E-mail: eugenlara@hotmail.com

Fonte: Pense

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