Por Krishnamurti de Carvalho Dias* Um cuidado preliminar é o de estabelecer cuidadosamente o valor das palavras envolvidas neste estudo. Moral e Religião são palavras controvertidas.
Devemos a Kardec o clareamento quanto à palavra religião, ajudando a entender a coisa religião em si. Em várias oportunidades Kardec definiu a coisa religião como sendo a entidade formada pela reunião de três elementos: culto, templo e ministros. No culto estão incluídas todas as coisas típicas da religião. O templo é o espaço físico adequado, apropriado para a prática desse culto religioso. E o clero são os ministros, pessoal selecionado para a celebração do culto e mediação dos fiéis com a divindade.
Religião é isso, pois, na definição kardequiana: em duas oportunidades ele situou bem que "O Espiritismo não é, pois, uma religião. Do contrário teria seu culto, seus templos, seus ministros". Isso foi naquela polêmica em 1859 com Abade Chesnel, a primeira pessoa a chamar a doutrina de "uma nova religião". Kardec desmentiu-o, produzindo aquela contradefinição. A segunda oportunidade foi em um trabalho publicado postumamente, mas visivelmente conexo com essa polêmica — "Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo" — onde ele insiste em que a doutrina é filosófica, tem consequências religiosas, mas não constitui, em absoluto, uma religião, visto não ter ritos, nem sacramentos, dogmas, liturgia, templos nem clero. A primeira declaração consta da Revista Espírita de maio de 1859, mas a polêmica prosseguiu no número de julho. E a segunda foi no livro "Obras Póstumas".
São dois momentos fortes, onde Kardec produz declarações explícitas, perfeitamente formuladas, onde deixa transparente seu pensamento contrário ao conceito levantado pelo Abade Chesnel, com total pioneirismo. Esse clérigo foi o primeiro a aventar essa hipótese, de a doutrina ser um fato religioso e Kardec de modo algum aceitou isso; rebateu prontamente o abade. Ambos os momentos nada têm de excepcionais, fortuitos, isolados, como muita gente pretende. Pelo contrário, são parte de uma cadeia de declarações, totalizando dezenas de páginas. Kardec tinha realmente uma posição forte e bem definida, contrária ao ponto de vista gratuitamente levantado pelo Abade e que encontrou eco no próprio seio do movimento. A iniciativa, porém, partiu de fora do movimento, foi gerada no seio da Igreja.
Culto, templos e ministros são, pois, para Kardec, os elementos que constituem uma religião na ótica kardequiana, que era um pedagogo, naturalmente habilitado, portanto, para formular uma tal classificação.
Quanto à palavra em si, Kardec também a situou com muita clareza, contrariando até o nível lexicográfico da época, que de modo geral registrava outro étimo e outro histórico.
Em seu famoso Discurso de Abertura (1° de novembro de 1868), publicado na Revista Espírita de dezembro daquele ano, Kardec produziu a acepção "nata e verdadeira" da palavra: "com efeito, a palavra religião quer dizer laço". (pág. 356).
"Em sua acepção nata e verdadeira, uma religião é um laço que religa os homens numa comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças".
Duas coisas precisam ser destacadas aí: em primeiro lugar, é que essa era a legítima e original acepção da palavra, em Roma antiga. Kardec refere primeiro o sentido imediato, material da palavra: é laço. Depois, acrescentou o seu sentido figurado, o que ela possuía acima do simples significado de nó ou braço que se dá em cordas. Era uma relação toda moral, um fato espiritual que unia "homens" formando uma comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças.
Isso contrariava muito o consenso então vigente (1868); para falar a verdade, o vigente até mesmo hoje, mesmo entre confrades, que ainda se aferram àquele surrado conceito catequético, onde religião seria um laço que ligaria o homem a Deus. Não sei como pessoas esclarecidas ainda aceitam, num ato de vassalagem mental, de servo pensamento, mofino e estreito, essa impostura cultural, léxica, inventada pela igreja.
Kardec recupera a semântica: o laço que uma religião representava apenas unia, relacionava "homens", entre si; e não os homens "a Deus".
No ideário romano, o que fazia essa união entre o humano e o divino (não com Deus, um conceito ainda desconhecido, mas com os deuses) era o cultus-us, não a religião, que era apenas aquilo que Kardec bem descreveu: um laço puramente moral e social, formativo apenas de comunidades, associações civis, de pessoas relacionadas por suas disposições comuns: seus princípios, sentimentos, crenças.
A acepção é tão clara que pode-se aplicá-la hoje a qualquer comunidade que conhecemos: associações de moradores, entidades como os partidos verdes, as associações de defesa ambiental, entidades de ecologismo e de pacifismo, como aquela notável "greenpeaces", alvo de tantos atentados.
Nada havia nessa entidade, nesse conceito, tão claro, que a palavra religião designava em sua origem, que a relacionasse com o fim látrico, cultural: eram duas coisas bem separadas — o cultus-us propunha-se a buscar a comunhão com o deus, através do sacrifício, da propina, dos votos, nos templos e com a mediação do clero; enquanto que a religião visava apenas a congregar pessoas naturalmente afins, de idênticos sentimentos, princípios e crenças, para algum objetivo laico.
Kardec frisa que o laço de uma religião, qualquer que fosse o seu objetivo, era sempre de substância moral, pois visava a despertar nas pessoas uma solidariedade, através da comunidade de seus atos, seus costumes, seus hábitos eram os iguais e os afins que se reuniam, constituindo uma religio-nis, exatamente por sua similitude, sua unidade de vistas, de ideais. Era uma unidade que se formava espontaneamente pela atração dos iguais. E se mantinha pela habitualidade, portanto, por uma razão moral: mós-moris, mores era exatamente isso, costumes, hábitos, usos ordinários habitualizados.
Importante que Kardec socorre-se de Cícero: fala da religião da família, da religião da amizade, da religião do sangue. Que queria dizer? Laços de família, laços de amizade, laços de sangue. São expressões usadas até hoje, sem se suspeitar que está se falando exatamente daquilo que, em Roma, queria significar a palavra religião: laço social de substância moral. Isto é, uma relação que envolve pessoas, forma uma minissociedade e consiste não em imposições, mas em uma concordância de pendores, de inclinações, de gostos, uma simpatia e atração recíproca.
Hoje, a própria igreja repudia, por seus membros mais cultos e íntegros, como o padre Fernando Bastos D’Ávila, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, aquela antiga etimologia inautêntica que falava de religar e forçava uma tradução inaceitável de "o laço que liga o homem a Deus", segundo um consenso hoje, o étimo é o mesmo que Cícero apontou, de religio-nis, e sua tradução é laço, no sentido imediato; no figurado, é aquilo mesmo que Kardec produziu: laço social, de substância moral, exclusivamente entre pessoas, formando entidades associativas, cooperativas, grêmios etc.
Estava desmitificada a palavra religião. Referida como vocábulo que começou significando apenas o nó, o laço ou baraço, que se dá em cordas; passou a expressar o fato do gregarismo, da solidariedade, do associativo e cooperativismo, da parentela, da consanguinidade, da afetividade, enfim, todas as situações ou condições em que o ser humano procura os outros seres humanos.
Foi somente depois de Constantino e seu famigerado edito que a palavra religião e a coisa religião perderam esse caráter puramente laico que tinham e, confundindo-se com o culto, passaram a exprimir o oposto: o látrico, o místico, o ritual, o sobrenatural.
Deolindo Amorim, que conhecia profundamente o positivismo, era de parecer que Kardec só produziu aquele discurso e nele aquela achega por causa de um fato relevante: Littré, epígono (sucessor) de Comte, havia vulgarizado que o positivismo era a "religião da humanidade". Ora, sendo o positivismo ateu e materialista, não podia ser no sentido conhecido da palavra que Littré o dizia. Em que sentido era então? Littré, autor de um dicionário (1866), um lexicógrafo também, fizera aquela frase baseado exatamente no antigo e primitivo significado de religião. Ele pudera fazê-lo porque era independente, não sujeito à vassalagem generalizada perante a Igreja. Não vacilou em afrontar a incompreensão das pessoas, bitoladas pela imposição cultural do clero e dos catecismos.
Sabia que religião era originalmente apenas um laço que unia pessoas, um laço social de substância moral e, por isso, todo e qualquer ismo estaria naturalmente identificado com tal sentido da palavra. O positivismo era, pois, um laço social, uma religião, independente do fato de não ser espiritualista. Mas, e o Espiritismo?
Kardec tinha, como se sabe, problemas internos na Sociedade de Paris. Uma posição hostil afrontava-o. Referiu-se a isso, amargamente, falando de “foco de intrigas”. Desde o Abade Chesnel, com sua intervenção peçonhenta, muita gente havia introjetado a sugestão do clérigo, que não foi feita com outra intenção. Roustaing, por exemplo, montara o seu esquema de dissensão, exatamente em um pensamento parecido. Chamara seu livro de "revelação da revelação", de modo provocativo, como se fosse autor de uma super-revelação, uma pós-revelação, que desbancaria a revelação da Doutrina Espírita.
Isso obrigara Kardec a produzir aquele antológico primeiro capítulo do livro "A Gênese", onde repôs as coisas em seus devidos lugares.
Por tudo isso, quando subiu à tribuna da Sociedade de Paris, o discurso que proferiu trazia um alcance imenso para a cultura mundial. Apoiava Littré e enquadrava o Espiritismo como uma religião, naquele prístino sentido filosófico (o filosófico é por causa do filosófico), declaração que não poderia deixar de fazer, pois a doutrina levava o morfema de ismo na composição de seu nome. Ismos são naturalmente religiões no sentido filosófico, era inevitável ter de enfrentar essa verdade léxica. Se o Espiritismo era espirit + ismo, ismo dos espíritos e dos espíritas, era um laço social de substância moral, a integrar todos os que aderiram à bandeira das ideias espiríticas. Logo, era uma religião, mas apenas naquele sentido filosófico, que é laico, tanto assim que o positivismo, ateu e materialista, ostentava-o.
Mas Kardec não era só um pedagogo, um lexicógrafo, um filólogo ou gramaticão alienado, que sonha com irrealidades e fósseis semânticos. Era um homem lúcido, realista, objetivo, era “o bom senso encarnado”. Intuiu que não adiantava mexer no que estava quieto: chamar de religião no sentido filosófico era abrir caminho a que a palavra fosse aplicada exatamente no sentido religioso, o que não tinha nada a ver com a Doutrina.
O adjetivo "religioso" é incabível, é inaplicável a religiões no sentido filosófico da palavra, aos ismos laicos, por razões óbvias e acacianas, que dispensam explicação.
Chamado de religião em tal sentido, o filosófico, o Espiritismo não poderia ser adjetivado de religioso nunca, pois não tinha a tipicidade das religiões, nem de cunho objetivo, forma e nem os elementos de cunho subjetivo.
Seria estabelecer a confusão e oportunizar aquilo que o espírito Erasto, guia do movimento, havia alertado em sua "Primeira Epístola aos Espíritas de Bordéus". Em uma mensagem que está na Revista Espírita, de novembro de 1861, Erasto adverte que "inimigos da codificação", com "dissertações sabiamente combinadas" e com "tiradas piedosas", sempre "sob a máscara da religião", iriam assaltar os espíritas, crivá-los de botes e ciladas. Tentando mudar o caráter do movimento e até de codificação. Insistia que todas as mudanças fossem discutidas e negociadas, aceitas por todos, nunca impostas.
Se Kardec aceitasse a rotulação de religião, seria o fim do Espiritismo. Por isso, naquela mesma oportunidade, o discurso de 1° de novembro, ele nega que se pudesse lisamente chamar de religião e diz porque. Sentencia que "não se podia nem devia" usar aquela palavra como rótulo da Doutrina. Fala que as reuniões espíritas não são religiosas, mas que podia-se dizer que eram feitas "religiosamente", num visível conotativo.
Tão claras explicações vivem ignoradas porque quase ninguém lê aquele discurso. Como também não se valoriza a imensa Revista Espírita, parte inseparável da Codificação, base desta, aliás.
Tanto no sentido filosófico, de laço social, quanto no de culto látrico, que é o sentido usual, religião é sempre um fato moral, de substância moral. Mesmo no sentido sociológico, onde é um fato cultural não-natural, a religião ainda assim é um fato moral, pois o que são culturas senão agregado de mores, de usos, costumes, hábitos institucionalizados? Inegável, pois, o caráter intrinsecamente moral de qualquer religião.
Mas, se é fato que toda religião é sempre moral, a recíproca não é verdadeira: nem todo fato moral é religioso. Não procede a ideia de que haveria um sentido religioso no Espiritismo, só pela simples razão de este ser um fato moral, possuir uma dimensão moral.
Moral é um adjetivo que refere o que consiste em mores, o que é habitual, consueto, usual, costumeiro. Mas é substantivo também, de múltiplas acepções: na sua usabilidade é código de conduta, norma de proceder, conjunto de prescrições morais, isto é, de usos e costumes, de agires. Uma autoridade, religiosa ou civil, impõe, prescreve certas normas e ordenações que visam regular o agir, o proceder, para limitar ou coibir. Isto é moral, substantivamente.
Neste sentido, o Espiritismo não pode ser facilmente enquadrado como uma moral; ele não é uma fonte de prescrições normativas, rigorista, como um código de Hamurabi, um código de Manu, um decálogo ou Corão. Pelo contrário, Kardec diz que o Espiritismo não impõe nada, que não tem moral própria, que adota a moral evangélica por considerá-la a mais avançada. Mas isso foi retórica, apenas.
Quando se ocupa de examinar os fatos morais, quanto às suas consequências na vida futura, produz o livro "O Céu e Inferno", onde traça um "Código penal da vida futura", com base em método informático, estudo de casos, tomada de depoimentos e processamento dos elementos e dados nestes contidos. Procura com isso dar uma base factual aos princípios de moral das religiões, mostrando que assentam sobre razões cósmicas: nenhum tribunal defronta a alma culpada, após a morte, nem mesmo é só a pura aflição consciencial que o martiriza. Pelo contrário, as condições conscienciais desses faltosos, plasmam em seu redor microclimas de horror, projetando cenas fluídicas e materializando condições impressionantes.
Kardec devassa fatos que nem Dante ousou imaginar. São propriedades da mente, das leis vigentes no ambiente pós-morte, que criam em tais situações, onde os culpados estampam em seu perispírito as marcas de sua inferioridade, onde experimentam a visão incessante de suas faltas, tudo isso com a maior naturalidade, pois tal se deve a princípios independentes da vontade humana: são coisas fáticas, pois.
Isso é uma investigação de cunho informático, aplicada ao mundo moral, de mores, de hábitos, pelas ações morais de uma vida inteira, que cada indivíduo experimenta naquelas situações. Kardec não era nenhum legislador, nenhum fundador de religião, nenhum disciplinador carismático de multidões, como um Moisés, um Maomé, um Menés, Minós, Manu, mas um investigador, um pesquisador, que tomava como material de estudo o caráter dos entrevistados desencarnados, seus agires e pensares, seu proceder, para então deduzir, da situação de cada um, o que era determinante de certos resultados, na erraticidade. A moral espírita é informática antes de a Informática ser.
Não procede, pois, puramente dos evangelhos, como tanto se gosta de repetir. A moral espírita tem fontes próprias. Ao dizer que adotava a dos evangelhos, Kardec não renunciava a produzir uma pilha própria de verificações morais. Até porque, para ser o Consolador, o Espiritismo tem de, necessariamente, dizer mas do que os evangelhos, dizem, inovar, dizer o que não foi dito por Jesus, pois veio para isto. Adstrito só ao que já foi revelado nos evangelhos, como cumpriria sua missão?
Nenhuma contradição há entre o dizer que não se tem moral própria e que se adota a dos evangelhos, e o fato de ter pesquisado, investigado, de modo metódico, informático os fatos morais espíritas, isto é, dos espíritos.
A moral que o Espiritismo renunciava a ter é aquele significado substantivo, de código de prescrições rigoristas. Isso ele não fez: porque o faria, se como Consolador tinha a missão de redizer o que o Cristo dissera? A moral é do Cristo, limitava-se a repeti-la, em linhas gerais. O Evangelho é código moral irretocável, insubstituível.
Entretanto, na acepção adjetiva, quando moral é o que concerne a atos e costumes, inegável é o alcance da Doutrina. Além de funcionar como um perfeito meio de comprovar e justificar a moral do Cristo, através dos fatos, de modo experimental, também é evidente que o Espiritismo produz tantas transformações morais quanto qualquer descoberta científica.
A viagem de Magalhães, terminada por Elcano, comprovou a redondeza da Terra e desmentiu o Vaticano. Séculos depois, o telescópio de Galileu obrigou a Inquisição a limitar-se, sem repetir o que fizera 30 anos antes com Giordano Bruno. Os costumes modificaram-se. Outra viagem, 200 anos mais tarde, desta vez a do Beagle, armou Darwin para uma teoria revolucionária, sensacional. A bíblia foi desmentida e a Igreja abalada. O cortejo de consequências disso, sobre os hábitos mundiais e os conhecimentos, foram imensos.
Pasteur gera uma cadeia de mudanças: ninguém mais bebe leite sem o ferver; não se toca em alimentos sem antes lavar as mãos nem deixamos de escovar os dentes após comer; surge a indústria de conservas, de enlatados e a vacinação é arma dos governos na erradicação de doenças.
São mudanças morais, onde os mores, os usos, os costumes, os hábitos são modificados por força de descobertas e invenções, teorias científicas e avanços tecnológicos, de modo totalmente diferente daquela acepção de moral como código de prescrições de conduta impostos por motivação mística, ético-religiosa. O Espiritismo é um fator desses, determinante de alteração do perfil moral das gerações simplesmente pela pressão dos fatos. Basta ler o artigo de Kardec — "Consequências religiosas das manifestações espíritas", in Obras Póstumas — para entender o porque não se precisa imaginar nenhum "sentido religioso" para explicar o alcance da moral dos fatos espíritas.
O sentido religioso que se julga ver na doutrina, de fato nela não está: reside, isto sim, no foro íntimo dos confrades religiosos ainda. Olhando-a pela ótica que lhes é peculiar, religiosa, julgam-na aquilo que Kardec tantas vezes repeliu — uma religião.
A prova de toque da legitimidade de qualquer ideia está nisto: projetamos aos seus últimos limites, as suas últimas consequências, a ideia de que a doutrina seria religiosa, de algum modo. O que teríamos? Isso representaria a consagração do Abade Chesnel, naturalmente vitoriado, pois teria sido o primeiro a enxergar aquilo que Rivail não viu.
Teria visto primeiro, mais e melhor do que o Codificador. Que resultaria diminuído desse esquisito confronto.
Kardec era um pedagogo. Ninguém melhor do que ele, com seu currículo, para discernir se a Doutrina era uma religião, uma ciência ou o quê. Se Chesnel é que tinha razão, isso reduz a nada a classificação de ciência filosófica que Rivail produziu. Teria se enganado? Das duas, uma: ou sabia que era uma religião ou não sabia. Se não sabia, não passava de um incapaz, um inepto, inapto a perceber o que o clérigo lestamente compreendera. Se sabia, mas não disse, preferindo negar o tempo todo, eis Kardec apresentado como um desonesto, capaz de mentir para não dar o braço a torcer.
Será crível que Kardec não pudesse reconhecer uma religião quando a visse? Que não soubesse classificar uma ciência? Que tivéssemos de esperar por Chesnel para produzir essa importante classificação?
Todas essas considerações são possíveis se mantemos a ideia gratuita, desnecessária de haver um sentido religioso onde a razão nos diz que não há. Tudo não passa de uma daquelas "miseráveis disputas por palavras", que os espíritos preveniram que aconteceriam.
Na Doutrina não há sentido religioso algum. O que há é um sentido espiritualista, naturalmente, pois esse é o caráter dela: doutrina filosófica espiritualista, que trata de questões do ramo: as causas primeiras, a alma, a vida futura, as questões últimas.
O homem comum, com seu atavismo religioso, não consegue separar moral de religião, religião de Deus, espiritualismo de religião e julga que pode fechar questões que são naturalmente abertas.
A questão de pensar isso ou aquilo da doutrina pertence ao foro íntimo. Em sua literalidade, porém, a Doutrina não é religiosa, mas uma ciência, uma filosofia, uma doutrina moral. Pertence ao número das coisas — do progresso, como a estrada de ferro, o telégrafo, dizia Rivail. Que são capazes de mudar as ações humanas e forjar a civilização, as mudanças.
As pessoas têm o direito de pensar. De opinar. Esses direitos são iguais: tanto para os que julgam ver um sentido religioso quanto para aqueles que preferem a objetividade dos fatos tais quais são.
No momento, a liberalidade de opinião entre nós está ameaçada. Os dirigentes religiosos parecem não saber que os direitos são iguais. Acham que só eles podem dizer o que pensam, mesmo ao arrepio do texto claro da Doutrina. Será que podem mesmo?
Muitos pensam que a discussão da identidade da Doutrina é coisa irrelevante, portanto despicienda, inconsequente. Mas não é assim. Há consequências relevantíssimas ligadas, dependentes do estabelecimento dessa identidade: se o Espiritismo se apresenta como uma ciência, como uma doutrina filosófica espiritualista de fundamentação científica, ele terá um peso, um alcance, uma receptividade e valor, perante a sociedade, muitíssimo diferente da que teria se, em definitivo, fosse identificado como uma religião.
E se ficar essa questão pendente, irresolvida, então se abrirá espaço para uma pergunta incômoda: se o Espiritismo não consegue autodefinir sua identidade, como pretende então equacionar e decidir os problemas do ser, do destino, da vida? Se for incapaz para saber de si como poderá merecer confiança para seu discurso sobre as demais coisas?
Na opção de identidade como ciência filosófica (ou como filosofia de fundamentação científica, dá no mesmo) o Espiritismo é sempre um fato bem definido, racional, factual, discutível, isto é, que pode ser discutido, questionado, debatido, goza de transparência. Ciências são estruturas de conhecimentos sobre fatos.
Já na opção de identidade como religião, ele se projetaria em terreno totalmente diverso, onde preponderam opiniões, crenças e juízos dogmáticos, que não precisam realmente ser factuais, racionais, pois envolvem a fé, obviamente independente dos processos da razão. A liberdade de crer é total: ninguém pode ser questionado por crer em algo que valoriza, reputa certo e acreditável, crível. Pode-se crer até no absurdo, no ilógico, que está valendo: religião é isso. Nem há de se discutir nada no terreno da fé.
Ora, não é essa a fundamentação do Espiritismo. Espíritas não creem, realmente, eles conhecem, sabem, porque a Doutrina é acessada numa relação toda pedagógica, de ensino e aprendizado. Não se faz aliciamento nem proselitismo para capturar pessoas como espíritas. Não se doutrinam crianças catequeticamente, para fazer delas futuros catecúmenos espíritas. Nada disso. Aprende-se Espiritismo como se aprende uma nova linha de conhecimentos, de tecnologias de saber, de pensar, de proceder. É diferente.
Os elementos formativos, integrantes da Doutrina Espírita, não são artigos de fé, não compõem um credo realmente, algo em que se deva crer. Nada disso: são conhecimentos adquiridos sobre fatos e roborados pela prova dos fatos, como em qualquer ciência. As pessoas é que confundem as coisas, emprestando à Doutrina um sentido que ela não tem.
O nome que se fixou, de doutrina, também contribui para esse engano: doutrinas são estruturas de opinião, efetivamente. Pessoas doutas expedem doutrinas, um pensar seu, sobre qualquer coisa. Ora, não foi só doutrina o que os Espíritos disseram a Kardec. Eles revelaram fatos, ensinaram. Não se doutrina quando se ensina a um aluno que tais e tais são os conhecimentos disponíveis sobre certa ordem de fatos. Doutrina é uma palavra tendenciosa, às vezes. Não expressa perfeitamente o caráter da revelação espírita, que Kardec ressaltou como informático, naturalmente sem usar essa palavra, inexistente então.
Um espírita pode ser religioso por sua formação religiosa, independente de seu domínio dos conhecimentos espíritas. Não há como confundir as duas coisas: o caráter verdadeiro do Espiritismo, doutrinava Kardec, é o de uma ciência filosófica, não o de uma religião.
Fonte: Anais do 7º Congresso Espírita Estadual - Edições USE - 1ª edição - março de 1997. O evento foi realizado em Águas de São Pedro-SP de 22 a 24 de agosto de 1986.
*Krishnamurti de Carvalho Dias (1930-2001), escritor e orador espírita, foi um dos pioneiros no uso da multimídia para a divulgação do Espiritismo. Escreveu os livros O Laço e o Culto, Roustaing, Toques de Obsessão, A Descoberta do Espírito, Dois Ensaios, O Nascimento da Morte e dezenas de ensaios e artigos na imprensa espírita. Fonte: PENSE - Pensamento Social Espírita - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1274.html