Pages

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Cultura Espírita

Por José Herculano Pires

A Cultura Espírita, como observou Humberto Mariotti, filósofo e poeta espírita argentino, é uma realidade bibliográfica, edificada no plano das pesquisas e dos estudos. Socialmente se reduzia uma parte mínima do movi­mento espírita mundial, pois a maioria dos espíritas a desconhece. Compreende-se que isso acontece em conseqüência das campanhas deformadoras e difamatórias das Igrejas e das Instituições Científicas, especialmente as de Medicina, contra o Espiritismo. Mas grande parte da culpa cabe aos próprios espíritas cultos, que, em sua maioria, se mostraram displicentes, por acomodação indébita ou preguiça mental. Por outro lado, a vaidade e o pedantismo intelectual de muitos espíritas os afastaram das pesquisas sobre os mais importantes aspectos da doutrina, para se entregarem a elucubrações pessoais gratuitas, dispersivas e não raro absurdas. O desejo vaidoso de brilhar aos olhos vazios do mundo levou muitos deles a querer adaptar o Espiritismo às conquistas científicas modernas, ao invés de mostrarem a subordinação dessas conquistas ao esquema doutrinário. Outros quiseram atrevidamente atualizar a dou­trina e outros ainda se aventuraram a corrigir Kardec. Essas atitudes não deram o proveito pessoal que desejavam e serviram apenas para incentivar as mistificações.

Toda nova cultura nasce da anterior. Das culturas anteriores nasceu a cultura moderna, carregada de contribuições antigas. Mas o aceleramento da evolução cultural a partir da II Guerra Mundial fez eclodir quase de surpresa a Era Tecnológica. O materialismo atingiu o seu ápice e explodiu para que as entranhas da matéria revelassem o seu segredo. E esse segredo confirmou a validade da Cultura Espírita marginalizada no plano bibliográfico. Começou assim o desabrochar de uma Nova Civilização, que é a Civilização do Espírito. “A finalidade da Educação — escreveu Hubert — é instalar na Terra, pela solidariedade de consciências, a República dos Espíritos”. Essa foi a proclamação da Nova Era, feita na França de Kardec, na Paris da sua batalha pelo Espiritismo.

Mas para que uma civilização se desenvolva é necessária a integração dos homens nos seus princípios e pressupostos. Uns e outros se encontram nos livros de Kardec, mas se esses livros não forem realmente estudados, investigados na intimidade pro­funda dos textos e transformados em pensamento vivo na realidade social, a civilização não passará de uma utopia ou de uma deformação da realidade sonhada. Por mais frágil e efêmero que seja o homem na sua existência, é ele que dá vida ao presente e ao futuro, é ele o demiurgo que modela os mundos. Para o homem espírita construir a Civilização do Espírito é necessário que a viva em si mesmo, na sua consciência e na sua carne, pois é nesta que a relação da consciência com o mundo se realiza. E para isso não bastam os livros, é necessário o concurso de todos os meios de comunicação: a palavra, a imprensa, o rádio, a televisão, e mais ainda, a prática intensiva e coletiva dos princípios doutrinários de maneira correta e fiel. Se o homem espírita de hoje não compreender isso e dormir sobre os louros literários, a Civilização Espírita abortará ou será transformada numa simples caricatura da fórmula proposta, como aconteceu com o Cristianismo. É disto que os espíritas precisam tomar consciência com urgência. Ou acordam para a gravidade do problema ou serão esmagados pelo avanço irrefreável dos acontecimentos no tempo.

A idéia comodista de que Deus faz e nós desfrutamos ou suportamos não tem lugar no Espiritismo. Pelo contrário, neste se sabe que o fazer de Deus no mundo humano se realiza através dos homens capazes de captar a sua vontade e executá-la. Não há milagres nem ações mágicas na Natureza, onde a vontade de Deus se cumpre através dos Espíritos, desde o controle das formações atômicas até o crescimento dos vegetais. Dizia Talles de Mileto, o filósofo vidente, que o mundo está cheio de deuses que trabalham em toda a Natureza, e deuses, para os gregos, eram espíritos. Kardec repetiu em outros termos e de maneira mais explícita e minuciosa essa mesma verdade. No mundo humano os Espíritos se encarnam, fazem-se homens para modelá-lo. Cada espírito encarnado trás consigo sua tarefa e a sua responsabilidade individual e intransferível. O que não cumpre o seu dever, fracassa. Não há outra alternativa. O fracasso da maioria dos cristãos resultou na falência quase total do Cristianismo. O que se salvou foi o pouco que alguns fizeram. E a partir desse pouco, dois mil anos depois da pregação do Cristo e do seu exemplo de abnegação total, foi que Kardec partiu para a arrancada espírita. O exemplo da França é uma advertência aos brasileiros. A hipnose materialista absorveu os franceses no imediato e o Espiritismo quase se apagou de todo nos campos arroteados por Kardec, Denis, Flammarion, Delanne e tantos outros. A intensa e comovente batalha de Léon Denis, na França e em toda a Europa, nos congressos espíritas e espiritualistas de fins do século XIX e primeiro quarto do nosso século foi contra as infiltrações de doutrinas estranhas, de espiritualismos rebarbativos, no meio espírita. Foi gigantesco o esforço do famoso Druida da Lorena, como Conan Doyle o chamava, para mostrar que o Espiritismo era uma nova concepção do homem e da vida, que não se podia confundir com as escolas espiritualistas ancestrais, carregadas de superstições e princípios individualmente afirmados ou provindos de tradições longínquas, sem nenhuma base de critério científico. O mesmo acontece hoje entre nós, sob a complacência de instituições representativas da doutrina e o apoio fanático de lideres carismáticos, piegos espirituais e alucinados mentais a dirigir multidões de cegos.

Todas as tentativas de correção dessa situação perigosa se chocam com a frieza irresponsável dos que se dizem responsáveis pelo desenvolvimento doutrinário. E a passividade da mas­sa espírita, anestesiada pelo sonho da salvação pessoal, do valor mágico da tolerância bastarda, da crença ingênua do valor sobrenatural das esmolas pífias (o óbolo da viúva dado por casais de contas comuns nos bancos), vai minando em silêncio o legado de Kardec. O medo do pecado que saí da boca, da pena ou das teclas — enquanto se come e bebe à farta, semeiam-se migalhas aos pobres e dorme-se na bem-aventurança das longas digestões — faz desaparecer do meio espírita o diálogo do passado recente, substituindo o coro dos debates pelo silêncio místico das bocas-de-siri. Ninguém fala para não pecar e peca por não falar, por não espantar pelo menos com um grito as aves daninhas e agoureiras que destroem a seara.

A imprensa espírita, que devia ser uma labareda, é um foco de infestação, semeando as mistificações de Roustaing, Ramatis e outras, ou chovendo no molhado com a repetição cansativa de velhos e surrados slogans, enquanto as terras secas se esterilizam abandonadas. O óbolo da viúva não cai nos cofres do Templo, mas nos desvãos do chão rachado pela secura maior dos corações, como lembrou Constâncio Vigil.

À margem dessa imprensa paroquial, feita para alimentar a família, os jornais que surgem em condições de mostrar ao grande público a grandeza e o esplendor da Doutrina morrem de inanição, enquanto jornais mistificadores, preparados com os condimentos da imprensa sensacionalista e louvaminheira, ou temperados com bocas-de-siri (quanto mais fechadas, mais gostosas) são mantidos pela renda de instituições comerciais ou por interesses marginais.

As escolas espíritas marcam passo na estrada comum. Os programas de rádio são sufocados por adulteradores e substituí­dos por improvisações acomodatícias. A televisão só se abre para sensacionalismos deturpadores. Os recursos financeiros se são empregados na caderneta de poupança da caridade visível, que no invisível rende juros e correções monetárias. As iniciativas editoriais corajosas morrem asfixiadas pelo encalhe, ante o desinteresse de um público apático. Os hospitais Espíritas trans­formam-se em organizações comuns, mantidos pelas verbas oficiais de socorro a doentes que podem carreá-las aos seus cofres, a antiga e legítima caridade espírita de anos atrás, sustentada por alguns abnegados que já passaram para o Além, murcha como flor de guanxuma em pastos ressequidos. Restam apenas, nessa paisagem desoladora, alguns pequenos oásis sustentados pelos últimos e pobres abencerragens (*) de uma velha estirpe desaparecida.

É necessário que se diga tudo isso, que se escreva e semeie essa verdade dolorosa, para que toque os corações, na esperança de uma reação que talvez não se verifique, mas que pelo menos se tenta despertar. Na hora decisiva da colheita, as geadas da indiferença e as parasitas do comodismo ameaçam as mínimas esperanças de antigos e cansados lavradores. Apesar disso, os que ainda resistem não podem abandonar os seus postos. É necessário lutar, pois o pouco que se possa salvar poderá ser a garantia de melhores dias. O homem, as gerações humanas morrem no tempo, mas o espírito, não. O tempo é o campo de batalha em que os vencidos tombam para ressuscitar. Quem poderia deter a evolução do espírito no tempo? A consciência humana amadure­ce na temporalidade. A esperança espírita não repousa na fragilidade humana, mas nas potencialidades do espírito, que se atualizam no fogo das experiências existenciais. Curta é a vida, longo é o tempo, e a Verdade intemporal aguarda a todos no impassível Limiar do Eterno. O homem é incoerência e paixão, labareda esquiva que se apaga nas cinzas, mas o espírito é a centelha oculta que nunca se apaga e reacenderá a chama quantas vezes for necessário, para que a serenidade, a coerência e o amor o resgatem na duração dos séculos e dos milênios.

Todas as Civilizações da Terra se desenvolveram, numa assombrosa sucessão de sombra e luz, para que um dia — o Dia do Senhor, de que falavam os antigos hebreus — a Civilização do Espírito se instale no planeta martirizado pelas tropelias da insensatez humana. Então teremos o Novo Céu e a Nova Terra da profecia milenar. Os que não se tornarem dignos da promessa continuarão a esperar e a amadurecer nas estufas dos mundos inferiores, purgando os resíduos da animalidade. Essa é a lei inviolável da Antropologia Espírita.

(*) Indivíduos que se mostram de extrema dedicação a uma causa; são os derradeiros paladinos de uma idéia.

O Espírito e o Tempo. 7. ed. Sobradinho: Edicel, 1995.
4.ª Parte. III — Antropologia Espírita.
5. CULTURA ESPÍRITA.

Nenhum comentário:

Postar um comentário