Por Eugenio Lara
Em “Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas”, opúsculo lançado em 1858, Allan Kardec inseriu um glossário espírita, vocabulário com termos, com palavras e verbetes concernentes ao entendimento da Doutrina Espírita. Foi a primeira tentativa de elaboração de um dicionário, de uma enciclopédia espírita. Publicado posteriormente, de modo bastante resumido, em “O Livro dos Médiuns”, podemos observar o cuidado que ele teve para com a nova terminologia que criou, a fim de orientar a ciência espírita nascente, complementada por palavras e termos esclarecedores, correlacionados ao Espiritismo.
Nesse pequeno léxico espírita, elucidário interessante, instrutivo para os iniciantes e estudiosos do Espiritismo, salta aos olhos o famoso verbete Religião sem nenhuma definição. Ora, por que Kardec deixou este verbete vazio? Por que saiu assim na única edição, somente reimpressa 65 anos depois, por Jean Meyer, seu sucessor na direção da “Revista Espírita” e de todo seu legado?
Em 1923, Jean Meyer, percebendo a importância dessa obra, relançou-a, mas suprimindo o verbete, sem nenhum tipo de explicação. Nas edições posteriores, em francês, o verbete vago também não aparece. Naquele mesmo ano, o grande espírita de Matão-SP, Cairbar Schutel (1868-1938), traduziu e publicou esse interessante opúsculo, com autorização expressa de Jean Meyer. A reedição francesa e a brasileira foram simultâneas. Mais tarde, foi relançado pela editora O Clarim, de Matão, por iniciativa de seu editor, Wallace Leal V. Rodrigues, em 1968, posteriormente incluído na coletânea “Iniciação Espírita” (1970), ao lado de duas outras obras introdutórias de Kardec, pela Edicel, com apresentação e notas do jornalista e filósofo espírita Herculano Pires.
Do ponto de vista editorial, soa muito estranha a publicação desse opúsculo com o verbete vazio. Teria sido um problema de revisão? Seria um lapso na composição, dadas as condições técnicas da época, isso do ponto de vista gráfico-editorial? Não nos esqueçamos de que na segunda edição de “O Livro dos Espíritos” (1860) ocorreu um pequeno erro na numeração das questões. O que seria a pergunta 1011, está em branco, suprimida, ou seja, não é numerada, o que totaliza 1019 questões e não 1018. O erro passou batido e não foi corrigido por Kardec, possivelmente em função da imensa quantidade de tarefas e projetos a serem realizados por ele, que sozinho, não pôde completá-los na sua totalidade, em função de sua desencarnação súbita.
Allan Kardec poderia ter corrigido o suposto lapso do verbete vazio numa segunda edição do opúsculo, jamais publicada, pois, como ele próprio afirmou: “Esta obra está inteiramente esgotada e não será reimpressa. Será substituída pelo novo trabalho, ora no prelo, que sairá muito mais completo e obedecerá a um outro plano.” (“Revista Espírita”, agosto de 1860). Este novo trabalho no prelo, a que ele se refere, é “O Livro dos Médiuns”, lançado em 1861 e que era para ter o título de “O Espiritismo Experimental”, a continuação, o “Lado B” de “O Livro dos Espíritos”.
Supondo que era mesmo para ter saído assim, com o verbete vago, qual então a real intenção de Kardec ao fazer isso? O que ele desejou exprimir com tal atitude editorial? Não sabemos. Todavia, seria muito estranho atribuir, no lançamento dessa obra, algum tipo de enigma intencional, uma trívia, como um jogo de computador, um jogo mental, talvez uma charada que deveria ser posteriormente decifrada. Algo que destoa bastante do perfil psicológico e biográfico do fundador do Espiritismo. Não combina com ele tal atitude.
O mais provável é que, devido a um erro de composição gráfica, a primeira edição do opúsculo saiu assim mesmo, com o verbete Religião vazio.
Por sua vez, a nota explicativa, contida na edição lançada pela Edicel nada esclarece, pelo contrário, confunde ainda mais. Há uma referência ao célebre Discurso de Abertura de Allan Kardec, proferido por ocasião do Dia dos Mortos, data magna para os espíritas da época, publicado na “Revista Espírita”, em dezembro de 1868. Kardec aí conclui que o Espiritismo não é religião e que essa palavra deveria, segundo ele, ser evitada para definir a doutrina nascente. Em seguida, é citada a justificativa de Herculano Pires, “forçando a barra”, acoplando tal definição kardequiana ao conceito de religião dinâmica do filósofo espiritualista francês Henri Bergson: um razoável equívoco, muito bem esclarecido pelo escritor espírita Krishnamurti de Carvalho Dias, no ensaio “Análise do Pensamento de Allan Kardec de 1855 a 1869”, exposto por ele no I Simpósio Nacional do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 13 de agosto de 1989, em Santos-SP.
A existência desse famoso verbete vazio não causa nenhum prejuízo para o entendimento conceitual do Espiritismo. Quem tiver alguma dúvida quanto ao Espiritismo ser religião ou não, basta ler a polêmica de Allan Kardec com o abade Chesnel (“Revista Espírita”, maio e julho de 1859), o Discurso de Abertura já citado e a definição enfática e radical contida no preâmbulo de “O Que é o Espiritismo”.
Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça: Allan Kardec jamais concebeu o Espiritismo como religião, jamais ele o definiu e conceituou como doutrina religiosa. Nunca passou pela cabeça do Druida de Lyon fundar uma doutrina dogmática, uma nova religião, uma espécie de neocristianismo, o cristianismo redivivo ou qualquer tipo de confissão religiosa. Sua pretensão, declarada e manifesta, sempre foi fazer do Espiritismo uma ciência de observação, uma ciência filosófica, uma doutrina filosófico-científica e moral.
Sob uma análise mais sociológica, antropológica, histórica, hermenêutica, se Kardec fundou (sem querer, querendo) uma nova religião, em função da aceitação da linguagem cristã, de sua atitude supostamente tácita, conciliatória frente à Igreja e da tentativa de reinterpretar os dogmas católicos sob a ótica espírita em suas três últimas obras, é uma questão que não cabe aqui ser analisada, mas sim, em outra oportunidade...
Eugenio Lara, arquiteto, jornalista e designer gráfico, é fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico; Conceito Espírita de Evolução; Os Quatro Espíritos de Kardec e Os Celtas e o Espiritismo.
Retirado do site PENSE - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1320.html
Em “Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas”, opúsculo lançado em 1858, Allan Kardec inseriu um glossário espírita, vocabulário com termos, com palavras e verbetes concernentes ao entendimento da Doutrina Espírita. Foi a primeira tentativa de elaboração de um dicionário, de uma enciclopédia espírita. Publicado posteriormente, de modo bastante resumido, em “O Livro dos Médiuns”, podemos observar o cuidado que ele teve para com a nova terminologia que criou, a fim de orientar a ciência espírita nascente, complementada por palavras e termos esclarecedores, correlacionados ao Espiritismo.
Nesse pequeno léxico espírita, elucidário interessante, instrutivo para os iniciantes e estudiosos do Espiritismo, salta aos olhos o famoso verbete Religião sem nenhuma definição. Ora, por que Kardec deixou este verbete vazio? Por que saiu assim na única edição, somente reimpressa 65 anos depois, por Jean Meyer, seu sucessor na direção da “Revista Espírita” e de todo seu legado?
Em 1923, Jean Meyer, percebendo a importância dessa obra, relançou-a, mas suprimindo o verbete, sem nenhum tipo de explicação. Nas edições posteriores, em francês, o verbete vago também não aparece. Naquele mesmo ano, o grande espírita de Matão-SP, Cairbar Schutel (1868-1938), traduziu e publicou esse interessante opúsculo, com autorização expressa de Jean Meyer. A reedição francesa e a brasileira foram simultâneas. Mais tarde, foi relançado pela editora O Clarim, de Matão, por iniciativa de seu editor, Wallace Leal V. Rodrigues, em 1968, posteriormente incluído na coletânea “Iniciação Espírita” (1970), ao lado de duas outras obras introdutórias de Kardec, pela Edicel, com apresentação e notas do jornalista e filósofo espírita Herculano Pires.
Do ponto de vista editorial, soa muito estranha a publicação desse opúsculo com o verbete vazio. Teria sido um problema de revisão? Seria um lapso na composição, dadas as condições técnicas da época, isso do ponto de vista gráfico-editorial? Não nos esqueçamos de que na segunda edição de “O Livro dos Espíritos” (1860) ocorreu um pequeno erro na numeração das questões. O que seria a pergunta 1011, está em branco, suprimida, ou seja, não é numerada, o que totaliza 1019 questões e não 1018. O erro passou batido e não foi corrigido por Kardec, possivelmente em função da imensa quantidade de tarefas e projetos a serem realizados por ele, que sozinho, não pôde completá-los na sua totalidade, em função de sua desencarnação súbita.
Allan Kardec poderia ter corrigido o suposto lapso do verbete vazio numa segunda edição do opúsculo, jamais publicada, pois, como ele próprio afirmou: “Esta obra está inteiramente esgotada e não será reimpressa. Será substituída pelo novo trabalho, ora no prelo, que sairá muito mais completo e obedecerá a um outro plano.” (“Revista Espírita”, agosto de 1860). Este novo trabalho no prelo, a que ele se refere, é “O Livro dos Médiuns”, lançado em 1861 e que era para ter o título de “O Espiritismo Experimental”, a continuação, o “Lado B” de “O Livro dos Espíritos”.
Supondo que era mesmo para ter saído assim, com o verbete vago, qual então a real intenção de Kardec ao fazer isso? O que ele desejou exprimir com tal atitude editorial? Não sabemos. Todavia, seria muito estranho atribuir, no lançamento dessa obra, algum tipo de enigma intencional, uma trívia, como um jogo de computador, um jogo mental, talvez uma charada que deveria ser posteriormente decifrada. Algo que destoa bastante do perfil psicológico e biográfico do fundador do Espiritismo. Não combina com ele tal atitude.
O mais provável é que, devido a um erro de composição gráfica, a primeira edição do opúsculo saiu assim mesmo, com o verbete Religião vazio.
Por sua vez, a nota explicativa, contida na edição lançada pela Edicel nada esclarece, pelo contrário, confunde ainda mais. Há uma referência ao célebre Discurso de Abertura de Allan Kardec, proferido por ocasião do Dia dos Mortos, data magna para os espíritas da época, publicado na “Revista Espírita”, em dezembro de 1868. Kardec aí conclui que o Espiritismo não é religião e que essa palavra deveria, segundo ele, ser evitada para definir a doutrina nascente. Em seguida, é citada a justificativa de Herculano Pires, “forçando a barra”, acoplando tal definição kardequiana ao conceito de religião dinâmica do filósofo espiritualista francês Henri Bergson: um razoável equívoco, muito bem esclarecido pelo escritor espírita Krishnamurti de Carvalho Dias, no ensaio “Análise do Pensamento de Allan Kardec de 1855 a 1869”, exposto por ele no I Simpósio Nacional do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 13 de agosto de 1989, em Santos-SP.
A existência desse famoso verbete vazio não causa nenhum prejuízo para o entendimento conceitual do Espiritismo. Quem tiver alguma dúvida quanto ao Espiritismo ser religião ou não, basta ler a polêmica de Allan Kardec com o abade Chesnel (“Revista Espírita”, maio e julho de 1859), o Discurso de Abertura já citado e a definição enfática e radical contida no preâmbulo de “O Que é o Espiritismo”.
Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça: Allan Kardec jamais concebeu o Espiritismo como religião, jamais ele o definiu e conceituou como doutrina religiosa. Nunca passou pela cabeça do Druida de Lyon fundar uma doutrina dogmática, uma nova religião, uma espécie de neocristianismo, o cristianismo redivivo ou qualquer tipo de confissão religiosa. Sua pretensão, declarada e manifesta, sempre foi fazer do Espiritismo uma ciência de observação, uma ciência filosófica, uma doutrina filosófico-científica e moral.
Sob uma análise mais sociológica, antropológica, histórica, hermenêutica, se Kardec fundou (sem querer, querendo) uma nova religião, em função da aceitação da linguagem cristã, de sua atitude supostamente tácita, conciliatória frente à Igreja e da tentativa de reinterpretar os dogmas católicos sob a ótica espírita em suas três últimas obras, é uma questão que não cabe aqui ser analisada, mas sim, em outra oportunidade...
Eugenio Lara, arquiteto, jornalista e designer gráfico, é fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico; Conceito Espírita de Evolução; Os Quatro Espíritos de Kardec e Os Celtas e o Espiritismo.
Retirado do site PENSE - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1320.html
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