Por Sérgio Aleixo
Pode-se ler em Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários [1883] que o próprio advogado de Bordéus admitiu ser a análise de Kardec, na Revista Espírita de junho de 1866, “o mais belo enterro de primeira classe que se pudera desejar” para a Revelação da Revelação.[1]
O parecer de Kardec julgou prolixo o livro que o advogado bordelês lhe remetera já desde sua apresentação original, em três volumes. O mestre disse: “A nosso ver, se a obra se tivesse limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, com isso ganhando em popularidade”. E ainda assim a F.E.B. houve por bem publicá-la em quatro tomos. Prova do quanto valiam para alguns de seus diretores as sábias orientações de Allan Kardec.
Em face da crítica meridiana do mestre lionês, os volumes em exame foram considerados pela quase totalidade dos espíritas, no dizer do próprio Roustaing, “uma obra inútil”.[2] Este, o real motivo do descontrole do advogado bordelês e de seus discípulos ao acusarem o Codificador da Doutrina Espírita — pasmem — de autoritarismo, ostracismo, infalibilidade e até falsa sabedoria, ignorância.[3]
Em janeiro do ano de publicação da Resposta rustenista a seus críticos e adversários desencarnou a viúva de Kardec. Nem estas ilustres memórias os discípulos de Roustaing foram capazes de respeitar. O advogado bordelês partira já em 1879. Quatro anos antes. Enquanto entre os vivos estiveram Kardec e sua doce Gabi, aqueles dissidentes declarados não ousaram enfrentar-lhes o que teria sido a merecida réplica, que coube, por fim, ao Jornal Le Spiritisme, da União Espírita Francesa, com a edição de J.-B. Roustaing perante o Espiritismo — Resposta a seus discípulos.
Esta réplica do Le Spiritisme se encontra sem tradução para o vernáculo porque, aos viajados rustenistas, não interessou tal publicação, a eles que se dizem tão interessados na grandeza da Causa Espírita. Que publiquem este histórico contraditório da União Espírita Francesa e mostrem ao menos esta nesga de amor à História do Espiritismo sem o vil desejo de reescrevê-la a favor de sua seita dissidente.
O debate sério era procedimento habitual do Codificador; ao contrário do que acontece nos meios paroquianos do movimento espírita, esquecidos do Kardec histórico. Os seguintes tópicos bem o lembram:
Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos.[4]
[...] jamais daremos satisfação aos amantes do escândalo. Entretanto, há polêmica e polêmica; uma há, diante da qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos. [...] É a isso que chamamos polêmica útil, e o será sempre quando ocorrer entre pessoas sérias que se respeitam bastante para não se afastarem das conveniências. Podemos pensar de modo diverso sem, por isso, deixar de nos estimarmos.[5]
O Espiritismo quer ser claro para todos e não deixar aos seus futuros adeptos nenhum motivo para discussão de palavras. Por isso todos os pontos susceptíveis de interpretação serão elucidados sucessivamente.[6]
Por maior, mais bela e justa que seja uma ideia, é impossível que reúna, desde o princípio, todas as opiniões. Os conflitos que dela resultam são a consequência inevitável do movimento que se processa, e são mesmo necessários, para melhor fazer ressaltar a verdade. É também útil que eles surjam no começo, para que as ideias falsas sejam mais rapidamente desgastadas.[7]
Achar os espíritas em falta e em contradição com seus princípios seria uma boa sorte para os seus adversários; assim, vede como se empenham em acusar o Espiritismo de todas as aberrações e de todas as excentricidades pelas quais não poderia ser responsável. A doutrina não é ambígua em nenhuma de suas partes; é clara, precisa, categórica nos mínimos detalhes; só a ignorância e a má-fé podem enganar-se sobre o que ela aprova ou condena. É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desaprovar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade. Pactuar com os abusos seria acumpliciar-se com eles e fornecer armas aos adversários.[8]
Somos absolutos demais em nossas ideias? Somos um cabeça-dura com quem nada se pode fazer? Ah! meu Deus! cada um tem os seus pequenos defeitos; temos o de não pensar ora branco, ora preto; temos uma linha traçada e dela não nos desviaremos para agradar a quem quer que seja. É provável que sejamos assim até o fim. [...]
Falar dessas opiniões divergentes que, em última análise, se reduzem a algumas individualidades, e em parte alguma formam corpo, não será, talvez digam algumas pessoas, ligar a isto muita importância, assustar os adeptos fazendo-os crer em cisões mais profundas do que realmente o são? não é, também, fornecer armas aos inimigos do Espiritismo?
É precisamente para prevenir esses inconvenientes que disto falamos. Uma explicação clara e categórica, que reduz a questão ao seu justo valor, é mais adequada para assegurar do que para amedrontar os adeptos; eles sabem como proceder e aí encontram argumentos para a réplica.[9]
Em sua análise de Os Quatro Evangelhos,[10] Kardec mostrou a elegância de um verdadeiro missionário: lúcido, equilibrado, leal, mas firme, decidido, ciente da justeza de suas razões. O mestre deixou aos Espíritos que ditaram a suposta Revelação da Revelação a responsabilidade pelas coisas “duvidosas” que disseram, como as adjetivou o próprio Codificador. Ainda assim, recomendou sua leitura aos conscienciosos.
Confiante na razão, Kardec não negou ao discernimento dos espíritas sérios a capacidade de rejeitar as teses rustenistas. Deixou claro, porém, que, “até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita”. E já em 1868, no livro A Gênese, XV, 66, Kardec demonstrou que não houve endosso, e sim contradita.[11]
O Codificador desejava que tudo estivesse sob a mais intensa luz. Jamais adotou a providência inquisitorial da imposição de silêncio sobre o quer que fosse. Todavia, muitos espíritas, julgando-se mais cautelosos que o mestre o foi, afirmam não falarem de assuntos polêmicos porque não querem divulgar “o mal”.
Mas o que falta à maioria destes tais é a segurança que só o conhecimento das razões doutrinárias lhes poderia proporcionar. Isto, entretanto, somente se consegue ao preço de intensos estudos, nunca ao baixíssimo valor de memorizações de frases de efeito, fundadas em retóricas piegas, de todo ignorantes do que seja realmente o sentimento do bem.
[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
[2] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
[3] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, pp. 47 e 49.
[4] Revista Espírita. Jan/1858. Introdução.
[5] Revista Espírita. Nov/1858. Polêmica Espírita.
[6] Revista Espírita. Jun/1863. Do Princípio da Não Retrogradação dos Espíritos.
[7] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[8] Revista Espírita. Jun/1865. Nova Tática dos Adversários do Espiritismo.
[9] Revista Espírita. Abr/1866. O Espiritismo Independente.
[10] Cf. Revista Espírita. Jun/1866. Os Evangelhos Explicados.
[11] Cf. Cap. 8: Jesus Não Era Um Agênere.
Fonte: O Primado de Kardec - http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-2-postura-de-kardec.html
Pode-se ler em Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários [1883] que o próprio advogado de Bordéus admitiu ser a análise de Kardec, na Revista Espírita de junho de 1866, “o mais belo enterro de primeira classe que se pudera desejar” para a Revelação da Revelação.[1]
O parecer de Kardec julgou prolixo o livro que o advogado bordelês lhe remetera já desde sua apresentação original, em três volumes. O mestre disse: “A nosso ver, se a obra se tivesse limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, com isso ganhando em popularidade”. E ainda assim a F.E.B. houve por bem publicá-la em quatro tomos. Prova do quanto valiam para alguns de seus diretores as sábias orientações de Allan Kardec.
Em face da crítica meridiana do mestre lionês, os volumes em exame foram considerados pela quase totalidade dos espíritas, no dizer do próprio Roustaing, “uma obra inútil”.[2] Este, o real motivo do descontrole do advogado bordelês e de seus discípulos ao acusarem o Codificador da Doutrina Espírita — pasmem — de autoritarismo, ostracismo, infalibilidade e até falsa sabedoria, ignorância.[3]
Em janeiro do ano de publicação da Resposta rustenista a seus críticos e adversários desencarnou a viúva de Kardec. Nem estas ilustres memórias os discípulos de Roustaing foram capazes de respeitar. O advogado bordelês partira já em 1879. Quatro anos antes. Enquanto entre os vivos estiveram Kardec e sua doce Gabi, aqueles dissidentes declarados não ousaram enfrentar-lhes o que teria sido a merecida réplica, que coube, por fim, ao Jornal Le Spiritisme, da União Espírita Francesa, com a edição de J.-B. Roustaing perante o Espiritismo — Resposta a seus discípulos.
Esta réplica do Le Spiritisme se encontra sem tradução para o vernáculo porque, aos viajados rustenistas, não interessou tal publicação, a eles que se dizem tão interessados na grandeza da Causa Espírita. Que publiquem este histórico contraditório da União Espírita Francesa e mostrem ao menos esta nesga de amor à História do Espiritismo sem o vil desejo de reescrevê-la a favor de sua seita dissidente.
O debate sério era procedimento habitual do Codificador; ao contrário do que acontece nos meios paroquianos do movimento espírita, esquecidos do Kardec histórico. Os seguintes tópicos bem o lembram:
Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos.[4]
[...] jamais daremos satisfação aos amantes do escândalo. Entretanto, há polêmica e polêmica; uma há, diante da qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos. [...] É a isso que chamamos polêmica útil, e o será sempre quando ocorrer entre pessoas sérias que se respeitam bastante para não se afastarem das conveniências. Podemos pensar de modo diverso sem, por isso, deixar de nos estimarmos.[5]
O Espiritismo quer ser claro para todos e não deixar aos seus futuros adeptos nenhum motivo para discussão de palavras. Por isso todos os pontos susceptíveis de interpretação serão elucidados sucessivamente.[6]
Por maior, mais bela e justa que seja uma ideia, é impossível que reúna, desde o princípio, todas as opiniões. Os conflitos que dela resultam são a consequência inevitável do movimento que se processa, e são mesmo necessários, para melhor fazer ressaltar a verdade. É também útil que eles surjam no começo, para que as ideias falsas sejam mais rapidamente desgastadas.[7]
Achar os espíritas em falta e em contradição com seus princípios seria uma boa sorte para os seus adversários; assim, vede como se empenham em acusar o Espiritismo de todas as aberrações e de todas as excentricidades pelas quais não poderia ser responsável. A doutrina não é ambígua em nenhuma de suas partes; é clara, precisa, categórica nos mínimos detalhes; só a ignorância e a má-fé podem enganar-se sobre o que ela aprova ou condena. É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desaprovar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade. Pactuar com os abusos seria acumpliciar-se com eles e fornecer armas aos adversários.[8]
Somos absolutos demais em nossas ideias? Somos um cabeça-dura com quem nada se pode fazer? Ah! meu Deus! cada um tem os seus pequenos defeitos; temos o de não pensar ora branco, ora preto; temos uma linha traçada e dela não nos desviaremos para agradar a quem quer que seja. É provável que sejamos assim até o fim. [...]
Falar dessas opiniões divergentes que, em última análise, se reduzem a algumas individualidades, e em parte alguma formam corpo, não será, talvez digam algumas pessoas, ligar a isto muita importância, assustar os adeptos fazendo-os crer em cisões mais profundas do que realmente o são? não é, também, fornecer armas aos inimigos do Espiritismo?
É precisamente para prevenir esses inconvenientes que disto falamos. Uma explicação clara e categórica, que reduz a questão ao seu justo valor, é mais adequada para assegurar do que para amedrontar os adeptos; eles sabem como proceder e aí encontram argumentos para a réplica.[9]
Em sua análise de Os Quatro Evangelhos,[10] Kardec mostrou a elegância de um verdadeiro missionário: lúcido, equilibrado, leal, mas firme, decidido, ciente da justeza de suas razões. O mestre deixou aos Espíritos que ditaram a suposta Revelação da Revelação a responsabilidade pelas coisas “duvidosas” que disseram, como as adjetivou o próprio Codificador. Ainda assim, recomendou sua leitura aos conscienciosos.
Confiante na razão, Kardec não negou ao discernimento dos espíritas sérios a capacidade de rejeitar as teses rustenistas. Deixou claro, porém, que, “até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita”. E já em 1868, no livro A Gênese, XV, 66, Kardec demonstrou que não houve endosso, e sim contradita.[11]
O Codificador desejava que tudo estivesse sob a mais intensa luz. Jamais adotou a providência inquisitorial da imposição de silêncio sobre o quer que fosse. Todavia, muitos espíritas, julgando-se mais cautelosos que o mestre o foi, afirmam não falarem de assuntos polêmicos porque não querem divulgar “o mal”.
Mas o que falta à maioria destes tais é a segurança que só o conhecimento das razões doutrinárias lhes poderia proporcionar. Isto, entretanto, somente se consegue ao preço de intensos estudos, nunca ao baixíssimo valor de memorizações de frases de efeito, fundadas em retóricas piegas, de todo ignorantes do que seja realmente o sentimento do bem.
[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
[2] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
[3] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, pp. 47 e 49.
[4] Revista Espírita. Jan/1858. Introdução.
[5] Revista Espírita. Nov/1858. Polêmica Espírita.
[6] Revista Espírita. Jun/1863. Do Princípio da Não Retrogradação dos Espíritos.
[7] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[8] Revista Espírita. Jun/1865. Nova Tática dos Adversários do Espiritismo.
[9] Revista Espírita. Abr/1866. O Espiritismo Independente.
[10] Cf. Revista Espírita. Jun/1866. Os Evangelhos Explicados.
[11] Cf. Cap. 8: Jesus Não Era Um Agênere.
Fonte: O Primado de Kardec - http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-2-postura-de-kardec.html
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