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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Infância Mágica de Jesus

Por José Herculano Pires

“Quando Maria, sendo Jesus na aparência pequenino, lhe dava o seio, o leite era desviado pelos espíritos superiores que o cercavam, de um modo bem simples: em vez de ser sorvido pelo menino, que dele não precisava, era restituído à massa do sangue por uma ação fluídica que se exercia sobre Maria, inconsciente dela”.

“Eis o que fez Jesus nos três dias que esteve em Jerusalém. Ao abrir-se o templo, entrava com a multidão e com a multidão saía quando o templo se fechava. Uma vez fora e longe dos olhares humanos, desaparecia, despojando-se do seu invólucro fluídico tangível e das vestes que o cobriam, as quais, confiadas à guarda dos espíritos prepostos a esse efeito, eram transportadas para longe das vistas e do alcance dos homens. Voltava para as regiões superiores onde pairava e paira ainda, nas alturas dos esplendores celestes, como espírito protetor e governador da Terra. Ao reabrir-se o templo, reaparecia entre os homens, retomando o perispírito tangível e as vestes que o faziam passar por um homem aos olhos dos humanos”.
(Os Quatro Evangelhos - Tomo I, cap. 2.° – Jesus no Templo)

A infância mágica de Jesus, contada na obra de Roustaing, faz lembrar certos Evangelhos apócrifos que descreveram a vida do menino através de incríveis peripécias. Nos trechos acima vemos a descrição anedótica da amamentação aparente de Jesus. Maria, mais uma vez, continuava iludida. O menino fingia mamar. A transformação do sangue em leite é um ato de magia, digno de figurar nas estórias para adolescentes.

A permanência de Jesus em Jerusalém, nos três dias em que esteve perdido para os pais, caberia num enredo de aventuras infantis. Os “ministros de Deus” que deram a nova revelação criaram uma nova categoria angélica: a dos anjos guarda-roupas. Seria difícil imaginar-se maneira mais adequada de ridicularizar o Espiritismo aos olhos das pessoas de bom senso. A aceitação de uma obra como esta pelos espíritas e a sua divulgação só pode explicar-se pela falta de discernimento.

Roustaing é o anti-Kardec. Se Kardec é o bom senso, Roustaing é a falta de senso. A esta altura do exame dos textos já não se pode permanecer em atitude neutra diante dos absurdos que surgem a cada passo. Estamos em pleno mar da imaginação, flutuando ao sabor das ondas. Mas há uma intenção evidente – a de lançar o ridículo sobre o Espiritismo.

Quando falamos de magia não estamos nos referindo à magia natural que decorre das funções mediúnicas, mas sim da magia primitiva ou anímica, bem definida por Malinowski, que tanto existe nas selvas como nos meios mais civilizados. É esse o tipo de magia que constitui a essência do Roustainguismo, na mesma linha do pensamento mitológico que gerou a teoria grega do corpo fluídico de Jesus na era apostólica, contra a qual se ergueram os apóstolos, como vemos nas epístolas de Pedro e João.

A anedota da amamentação de Jesus exemplifica bem esse tipo de magia. Jesus menino não aparece ali como um ser real, mas como um ser artificial, um deus mitológico que se disfarça numa criatura humana, como o faziam os deuses gregos e romanos para iludirem os homens e pregar-lhes as suas peças. Usando o poder mágico da transmutação (alquimia) ou transubstanciação (teologia) o menino mitológico (e, portanto, anticristão) mudava o leite materno em sangue e o devolvia à circulação no corpo de Maria. É uma adaptação ao Espiritismo do dogma católico da eucaristia.

Pode-se alegar que isto seria possível por meio da ação mediúnica. O caso da transformação da água em vinho, citado no Evangelho, poderia justificar essa teoria. Mas não podemos es-quecer as seguintes diferenças: quando Jesus operou a transformação da água, não o fez para iludir ninguém, mas para demonstrar os seus poderes e despertar a fé nos que deviam ouvi-lo; foi, portanto, uma ação moralmente lícita, como todas as suas ações; essa transmutação (química e não alquímica) não foi uma encenação, mas um fato real, ainda hoje constatável na atividade mediúnica. A transmutação do leite de Maria implica problemas morais inadmissíveis numa personalidade espiritual elevada, tanto mais que por trás dela encontra-se todo o complexo fantasioso e absurdo do nascimento fingido. Estaríamos diante desta contradição que minaria os alicerces do Cristianismo e de todo conceito espiritual: a Verdade revelada através da mentira.

Não podemos separar os princípios éticos do contexto de nenhum problema espiritual. Alega-se também que Jesus ensinava em parábolas. Mas as parábolas não são mentiras, são formas alegóricas, simbólicas de transmissão da Verdade. A própria Psicologia materialista constatou essa necessidade de sermos verdadeiros no ensino das coisas mais corriqueiras, condenando as explicações fantasiosas do nascimento das crianças. Se a lenda ingênua da cegonha é um mal por ser mentirosa, que dizer do mito absurdo do nascimento fingido de Jesus? O uso da alegoria é válido e prepara o advento da verdade, mas o uso do fingimento é próprio dos mistificadores, dos embusteiros, das criaturas falsas e não de espíritos esclarecidos.

O mesmo se aplica ao episódio ridículo da permanência de Jesus menino em Jerusalém. O menino não era menino, mas um espírito adulto disfarçado em criança. Enganava os doutores da lei com suas respostas astuciosas e enganava o povo com suas fugas para o Céu, deixando as roupas em mãos dos anjos que o ajudavam na mistificação. E por que tudo isso? Porque em Jerusalém, justificam os “ministros de Deus” era difícil encontrar lugar para um menino permanecer três dias sozinho. Desculpa tola, como se vê, que só tem uma justificativa: uma mentira puxa a outra.

Bem precário seria o poder divino se estivesse submetido à condição de recorrer aos ardis humanos, às espertezas comuns dos passadores de conto do vigário, para poder trazer a Verdade à Terra. Não são os mestres espirituais que se utilizam dessas formas grosseiras de mistificação, mas os espíritos mistificadores, os embusteiros vulgares. Justifica-se, pois, o ardor de João, o evangelista, e de Pedro, o apóstolo, ao repelirem a teoria do corpo fluídico, bem como o ardor de Paulo ao nos advertir contra as fábulas que desfiguram a Doutrina do Cristo.

A frase do último trecho acima citado: “Voltava para as regiões superiores onde pairava e paira ainda...” encerra uma malícia diabólica. Afirmando que Jesus retornava aos esplendores celestes, como espírito protetor e governador da Terra, ela pretende encobrir com essa declaração enfática o ridículo da esperteza do menino. Os corações ingênuos se comovem com essa falsa abnegação de um deus mitológico, obrigado a participar entre os homens de uma pantomima celeste, e o raciocínio enganado justifica o mito.

Fonte: O Verbo e a Carne

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