Por Nazareno Tourinho
Quem quiser se divertir, sóbria ou delirantemente, com os dislates e disparates da obra de J.B. Roustaing, encontrará em Os Quatro Evangelhos um coquetel de “revelações” fantasiosas, que tanto inclui flagrantes obviedades (“Tudo em a natureza é magnetismo. Tudo é atração produzida por esse agente universal.” – página 194 no Volume I na 6ª edição da FEB), quanto, conforme já vimos no texto anterior, pitorescas absurdidades (“Os Espíritos prepostos à preparação do aparecimento do Messias na terra reuniram em torno de Maria fluídos apropriados, que lhe operaram a distensão do abdômen e o intumesceram. Ainda pela ação dos fluídos empregados, o mênstruo parou durante o tempo preciso de uma gestação, contribuindo esse fato para a aparência da gravidez.” – p. 195).
O pior, porém, nos escritos massudos e hipnóticos do antigo bastonário da Corte Imperial de Bordeaux, são os seus desastrosos deslizes doutrinários de conteúdo filosófico, que manifestam contradição com os postulados de Kardec.
Eis um exemplo disso. Lê-se à página 289 de Os Quatro Evangelhos (prosseguimos citando o Volume I):
“O Espírito, na origem de sua formação, como essência espiritual, princípio da inteligência, sai do todo universal.”
Veja o leitor, aqui, a contradição de Roustaing com Kardec em um dos pontos fundamentais de nossa filosofia (depois ficam os dirigentes da FEB espalhando por aí que tal divergência reside em “questões secundárias”). A Codificação ensina que os Espíritos são criados pela vontade de Deus (resposta à pergunta nº 81 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS), o que é muito diferente de sair do todo universal.
Veja ainda o leitor, a seguir, a contradição de Roustaing consigo próprio. Ele defende que Jesus evoluiu em linha reta sem nunca ter animado um corpo como o nosso, que em essência não passa de um aglomerado de elementos materiais. No entanto, escreve ao fim da mencionada página:
“O princípio inteligente se desenvolve ao mesmo tempo que a matéria e com ela progride, passando da inércia à vida.”
Deixemos de lado, contudo, estes problemas sutis e transcendentes, que alimentam inúteis especulações teóricas, sem o menor proveito para a consciência do ser humano, ainda desprovida de faculdades que lhe permitam penetrar nos magnos mistérios da sua gênese existencial. Ao invés de ficarmos com os Espíritos pseudossábios autores da mistificação rustenista, fiquemos com os Espíritos lúcidos que nos deram a codificação kardequiana, confessando, com palavras de comovente honestidade, nada saberem como nem quando Deus nos criou (resposta à pergunta nº 78 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS). É justamente esta lucidez e honestidade que tornam os Espíritos orientadores de Kardec mais confiáveis do que os Espíritos enganadores de Roustaing.
Atentemos para o detalhe de que os Espíritos autores da obra de Roustaing, talvez pertencentes a uma falange de padres jesuítas desencarnados, no fundo almejam comprometer a nossa filosofia com as ideias católicas do pecado original e dos anjos decaídos, expulsos do luminoso paraíso celeste para as trevas deste mundo, os quais somente se salvariam com a graça divina administrada por eles através dos sacramentos.
De acordo com o pensamento roustainguista o nosso planeta não é uma escola de aprimoramento da alma, é uma sucursal do Inferno. Segundo a obra de Roustaing, a encarnação e a reencarnação constituem um castigo e não uma lei natural para TODOS os seres inteligentes, inclusive para aqueles capazes de evoluir em linha reta, como declara a mensagem kardequiana (RESPOSTA à pergunta nº 133 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS).
Só encarna pela primeira vez – garantem os “guias” de Roustaing – quem, descuidando-se das beatitudes angelicais nas esferas fluídicas, cai em desgraça pelo erro. Diz o Volume 1 de Os Quatro Evangelhos na página 311:
“Qualquer que seja a causa da queda, orgulho, inveja ou ateísmo, os que caem, tornando-se por isso Espíritos de trevas, são precipitados nos tenebrosos lugares da encarnação humana, conforme o grau de culpabilidade, nas condições impostas pela necessidade de expiar e progredir.” (Os grifos nos termos “tenebrosos lugares da encarnação humana” são dos autores, não nossos!)
Para que não reste dúvida a esse respeito, eis o arremate à página 317:
“Não; a encarnação humana não é uma necessidade, é um castigo, já o dissemos.”
Julgue agora o leitor se os atuais dirigentes da Federação Espírita Brasileira têm razão quando afirmam que as divergências entre Roustaing e Kardec prendem-se a questões secundárias, não afetando a Doutrina.
Fonte:
TOURINHO, Nazareno. As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing – Nazareno Tourinho; ensaio crítico-doutrinário; 1ª edição, Edições Correio Fraterno, São Bernardo do Campo, SP, 1999.
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