Por Sérgio Aleixo
Uma causa com certos tipos de amigos não precisaria de inimigos. Reduzir o nível de oportunidade do Espiritismo ao seu aspecto moral é mal conhecê-lo. A isso já bem respondera Kardec em seu artigo O Que Ensina o Espiritismo, no qual prova que, fora do ensinamento puramente moral, os resultados do Espiritismo não são tão estéreis quanto pretendem alguns.[1] O mestre lhes é, por isso, um incômodo permanente, razão pela qual sempre buscam levantar-lhe fraquezas, a fim de tentarem minar o poder que sua obra, e só ela, tem de conferir ao Espiritismo unidade consistente, afastando-o das propostas em que vale quase tudo se em nome do “amor”. O pretenso erro mais levianamente explorado é o suposto racismo de Kardec. Mas como poderia ser propriamente um racista alguém que escreveu, por exemplo, isto:
[...] o Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.[2]
[...] do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o Espiritismo.[3]
Porém, deve-se considerar que, no século 19, o conceito de raça tinha status de ciência, sendo a chamada branca, ou caucásia, tida e havida por superior. Naturalistas e até abolicionistas pensavam assim. O mais polêmico de todos os escritos pinçados por detratores de Kardec sequer foi por ele publicado, em que dizia a certa altura:
O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino.[4]
No entanto, omite-se o parágrafo seguinte, em que a pretensa condição superior daquela geração foi duramente relativizada pelo mestre espírita, dando prova de que se tratava, nele, não de preconceito ou discriminação, mas de uma inferência impregnada da opinião científica daquele momento, tipicamente eurocêntrico:
Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais.[5]
Argumenta um irmão em Espiritismo que o erro foi Kardec ter usado um exemplo contemporâneo. Se escrevesse “homens de neanderthal” em vez de “negros e hotentotes”, nada se diria. Concordo. Ou será que o trabalho dos espíritos não aprimora os instrumentos de que se servem ao longo de milênios? Isso, claro, não tem valor pontual. Uma pessoa “feia” não é dona, a priori, de um espírito involuído, nem uma pessoa “bonita” é a encarnação de um espírito necessariamente avançado. Kardec defendia, antes de tudo, que a evolução dos espíritos opera a evolução dos corpos; ou serão mesmo casuais as mutações adaptativas? Parte alguma têm os espíritos nisso?
10. [...] o corpo é simultaneamente o envoltório e o instrumento do espírito e, à medida que este adquire novas aptidões, reveste um envoltório adequado ao novo gênero de trabalho que deve realizar, assim como se dá a um operário ferramentas menos grosseiras, à medida que ele é capaz de fazer uma obra mais delicada.
11. Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio espírito que modela o seu envoltório, adequando-o às suas novas necessidades. Ele o aperfeiçoa, desenvolve e completa o seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades; em uma palavra, ele o talha de acordo com a sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais, cabendo a ele empregá-los. É assim que as raças mais adiantadas têm um organismo, ou, se preferirem, uma ferramenta mais aperfeiçoada do que as raças mais primitivas. Assim também se explica o cunho especial que o caráter do espírito imprime aos traços fisionômicos e às linhas do corpo [...]
15. [...] Corpos de macacos podem muito bem ter servido de vestimenta aos primeiros espíritos humanos, necessariamente pouco adiantados, que tenham vindo encarnar na Terra, essas vestimentas foram as mais apropriadas às suas necessidades e mais adequadas ao exercício das suas faculdades que o corpo de qualquer outro animal. Ao invés de ser feita uma vestimenta especial para o espírito, ele teria achado uma pronta. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser espírito humano, assim como o homem, não raro, se veste com a pele de certos animais sem por isso deixar de ser homem.
16. [...] pode-se dizer que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nos detalhes, conservando sempre a forma geral do conjunto. Os corpos aperfeiçoados, ao se procriarem, reproduziram-se nas mesmas condições [...][6]
Outra objurgatória é a que costuma atingir o presidente espiritual da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: São Luís. Antes de tudo, saiba-se que, na S.P.E.E., era frequente os guias se comunicarem por médiuns distintos e em épocas diferentes. A resposta de São Luís pode ter sido vazada na forma infracitada por imperfeição do trabalho de um só desses médiuns. Seria precipitado malsinar o espírito com base nessa única situação, sem evidência de isso corresponder, nele, a um padrão inferior qualquer.
Na evocação do “negro Pai César”,[7] além do mais, o médium atua como intermediário de dois espíritos: São Luís, que auxilia nas respostas, e Pai César, submetido a essa ajuda. Existe a possibilidade de o médium não ter filtrado bem os recados, ou os ter entrecruzado. A opinião, ao demais, de que a brancura conferia superioridade é, ali, não de São Luís, mas do Pai César, e ainda assim, não por conta da cor branca em si, mas das relações de poder naquela sociedade.
O espírito chega a dizer que estava mais feliz que na Terra porque seu espírito não era mais negro; isto é, por não estar mais sujeito às humilhações aqui sofridas, não sendo o espírito rico ou pobre, homem ou mulher, velho ou criança, negro ou branco. Todavia, numa inesperada inferência, dada sua condição, afirmou o Pai César que os brancos eram orgulhosos de uma “alvura” de que não eram a causa. Parece mais São Luís, aí, do que Pai César.
De qualquer forma, causa estranhamento a resposta ao n. 9:
“[A São Luís]. – A raça negra é de fato uma raça inferior? Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa”.[8] Agora já pareceu mais Pai César algo frustrado com sua encarnação anterior do que São Luís, o qual responde assim à última pergunta de Kardec:
12. [A São Luís]. – Algumas vezes os brancos reencarnam em corpos negros? Resp. – Sim. Quando, por exemplo, um senhor maltratou um escravo, pode acontecer que peça, como expiação, para viver num corpo de negro, a fim de sofrer, por sua vez, o que fez padecer os outros, progredindo por esse meio e obtendo o perdão de Deus.[9]
Não há muito, apareceu “Nota Explicativa” da Federação Espírita Brasileira repelindo qualquer possibilidade de inferência discriminatória ou preconceituosa na doutrina espírita bem entendida; motivada foi, contudo, por atuação do Ministério Público Federal. A F.E.B., data venia, sempre foi mais dedicada a consignar notas que contestem Kardec, como a que corresponde à Gênese, XV, 66, na qual defende o rustenismo no momento mesmo em que Kardec o sepultava. Eis, pois, a nota da F.E.B. ao título da “Nota Explicativa”, esclarecendo a situação da feitura da peça:
Nota da Editora: Esta “Nota Explicativa”, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na Doutrina Espírita.[10]
Dada a relevância do assunto, todavia, é de se lamentar que as referências das citações da Revista Espírita nessa Nota Explicativa febiana hajam sido registradas algo descuidadamente. Das cinco citações diretas da Revista, nenhuma é vinculada ao tópico a que corresponde e só duas indicam o mês, o que dificulta sobremodo encontrá-las, e às demais, nos volumes de outras editoras. Por sinal, um dos textos foi reproduzido sem menção ao número de sua página nas edições da própria F.E.B. e, ainda, reportando-se ao mês errado. Onde se lê: “janeiro de 1863”, leia-se: “p. 87, fevereiro de 1863”:
Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada crêem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de fraternidade e deveres sociais.[11]
Outro escrito significativo de Kardec a respeito é o que passo a transcrever na sua íntegra, sem negligenciar o parágrafo final, inexistente nas edições febianas e congêneres e, por conseguinte, na sua citação constante da Nota Explicativa da F.E.B.:
Com a reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de classes, pois que o mesmo espírito pode renascer rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que supere em lógica o fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação fundamenta sobre uma lei da natureza, o princípio da fraternidade universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o princípio da igualdade dos direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.
Os homens só nascem inferiores e subordinados pelo corpo; pelo espírito eles são iguais e livres. Daí o dever de tratar os inferiores com bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que hoje é nosso subordinado pode ter sido nosso igual ou nosso superior, pode ser um parente ou um amigo, e nós, por nossa vez, podemos vir a ser o subordinado daquele que hoje comandamos.[12]
Portanto, a acusação de racismo a Kardec e ao Espiritismo nunca poderá superar o vício do anacronismo. Sob esse ponto de vista, Kardec não seria mais racista do que qualquer europeu de seu tempo, porém, com esta vantagem soberba: se os erros da ciência de época o autorizaram a crer em raças primitivas e que podemos nascer inferiores e subordinados pelo corpo, a isso nunca deixou de contrapor a medida libertária do pensamento espírita, isto é, pelo espírito somos iguais e livres, não somos homens ou mulheres, crianças ou velhos, ricos ou pobres, brancos ou negros, o que o acabou levando à defesa contundente, como se viu, da igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e da abolição dos privilégios de raças.
Com os avanços da biogenética, demonstrado está não existirem genes raciais na espécie humana. Somos, claro, mais evoluídos biologicamente que nossos ancestrais antropoides. Esta, a única evolução, aliás, admitida pela ciência. Caso se fale numa evolução espiritual, moral, ou mesmo cultural, é-se ignorado ou repreendido, porque o espírito, ou a reencarnação, ainda são irrelevantes para a ciência, assim como Deus. Entretanto, espíritas por definição, não podemos falar e pensar como agnósticos, ateus, materialistas, niilistas. Se, por um lado, o Espiritismo nos impõe acompanhar a ciência naquilo que particularmente a esta diz respeito, é-nos interdito negligenciar o próprio Espiritismo no que a este compete exclusivamente.
Por isso, dizemos hoje, os espíritas, que não há raças humanas, menos ainda inferiores ou superiores, de comum acordo nisto com a ciência, mas igualmente afiançamos que, sim, os espíritos, mediante a reencarnação, constituem os artífices da evolução biológica. As mutações que findam por selecionar os mais aptos não são casualmente adaptativas. Como dizia o mestre espírita por excelência: “Um acaso inteligente já não seria acaso”.[13]
Referências:
[1] Revista Espírita. Ago/1865.
[2] Revista Espírita. Out/1861. Discurso do Sr. Allan Kardec. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 432.
[3] Revista Espírita. Jun/1867. Emancipação das Mulheres nos Estados Unidos. F.E.B., 2007, 2.ª ed, p. 231.
[4] Obras Póstumas. Teoria da Beleza. F.E.B., 2002, 32.ª ed., p. 168.
[5] Id., ibid. Grifo meu.
[6] KARDEC. A Gênese, XI. Léon Denis Gráfica e Editora, 2008, 2.ª ed., pp. 235/36 e 237.
[7] No francês: “le nègre Pa César”.
[8] Revista Espírita. Jun/1859. O negro Pai César. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 245.
[9] Id., ibid.
[10] Revista Espírita. ANO I. 1858. F.E.B., 2009, 4.ª ed., p. 537.
[11] KARDEC. Revista Espírita. Fev/1863. A Loucura Espírita. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 87.
[12] KARDEC. A Gênese, I, 36. Léon Denis Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Com base na 4.ª ed. francesa.
[13] O Livros dos Espíritos. Comentário ao n. 8.
Fonte: Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2012/03/doutrina-espirita-e-racismo.html
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