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domingo, 22 de abril de 2012

A morte espiritual

Por Allan Kardec

A questão da morte espiritual é um dos princípios novos que marcam os passos do progresso da ciência espírita. A maneira pela qual foi apresentada, em certa teoria individual, de início fê-la rejeitar, porque parecia implicar, num tempo dado, a perda do eu individual, e assimilar as transformações da alma às da matéria, cujos elementos se desagregam para formar novo corpo. Os seres felizes e aperfeiçoados seriam, em realidade, novos seres, o que é inadmissível. A eqüidade das penas e dos gozos futuros não é evidente senão com a perpetuidade dos mesmos seres subindo a escala do progresso e se depurando pelo seu trabalho e os esforços de sua vontade.

Tais eram as conseqüências que se podiam tirar, a priori, dessa teoria. Todavia, nisso devemos convir, ela não foi apresentada com a bazófia de um orgulhoso vindo impor o seu sistema; o autor disse modestamente que vinha lançar uma idéia, sobre o terreno da discussão, e que da idéia poderia sair uma nova verdade. Segundo o conselho de nossos eminentes guias espirituais, teria pecado menos pelo fundo do que pela forma, que se prestou para uma falsa interpretação; foi por isso que nos convidou a estudar seriamente a questão; é o que tentaremos fazer, baseando-nos sobre a observação dos fatos que ressaltam da situação do Espírito nas duas épocas capitais, do retorno à vida corpórea e da reentrada na vida espiritual.

No momento da morte corpórea, vemos o Espírito entrar numa perturbação e perder a consciência de si mesmo, de sorte que jamais é testemunha do último suspiro de seu próprio corpo. Pouco a pouco a perturbação se dissipa e o Espírito se reconhece, como o homem que sai de um profundo sono; a sua primeira sensação é a de libertação de seu fardo carnal; depois vem a surpresa da visão do novo meio em que se encontra. Está na situação de um homem que se cloroformiza para fazer-lhe uma amputação, e que é transportado, durante o sono, para um outro lugar. Ao despertar, sente-se desembaraçado do membro que o fazia sofrer; freqüentemente, procura esse membro que está surpreso de não mais sentir; do mesmo modo, no primeiro momento, o Espírito procura o corpo; ele o vê a seu lado; sabe que é o seu e se espanta por estar dele separado; não é senão pouco a pouco que ele se dá conta de sua nova situação.

Nesse fenômeno, não se opera senão uma mudança de situação material; mas, no moral, o Espírito é exatamente o que era algumas horas antes; não sofre nenhuma modificação sensível; suas faculdades, suas idéias, seus gostos, suas tendências, seu caráter são os mesmos; as mudanças que ele pode sofrer não se operam senão gradualmente pela influência do que o cerca. Em resumo, não houve morte senão para o corpo somente; para o Espírito não houve senão sono.

Na reencarnação, as coisas se passam de modo contrário.

No momento da concepção do corpo destinado ao Espírito, este é preso por uma corrente fluídica que, semelhante a um laço, o atrai e o aproxima de sua nova morada. Desde então, ele pertence ao corpo, como o corpo lhe pertence até a morte deste último; no entanto, a união completa, a tomada de posse real não ocorre senão na época do nascimento.

Desde o instante da concepção, a perturbação se apodera do Espírito; suas idéias se tornam confusas, suas faculdades se anulam; a perturbação vai crescendo à medida que o laço se aperta; é completa nos últimos tempos da gestação; de sorte que o Espírito jamais é testemunha do nascimento de seu corpo, não mais do que o foi de sua morte; disso ele não tem nenhuma consciência.

A partir do momento em que a criança respira, a perturbação se dissipa pouco a pouco, as idéias retornam gradualmente, mas em outras condições do que na morte do corpo.

No ato da reencarnação, as faculdades do Espírito não estão simplesmente entorpecidas por uma espécie de sono momentâneo, como no retorno à vida espiritual; todas, sem exceção, passam ao estado latente. A vida corpórea tem por objetivo desenvolvê-las pelo exercício, mas nem todas podem sê-lo simultaneamente, porque o exercício de uma poderia prejudicar o desenvolvimento de outra, ao passo que, pelo desenvolvimento sucessivo, elas se apóiam uma sobre a outra. É, pois, útil que algumas fiquem em repouso, enquanto que outras se desenvolvem; é por isso que, em sua nova existência, o Espírito pode se apresentar sob um aspecto muito diferente, sobretudo se é mais avançado do que na existência precedente.

Num, a faculdade musical, por exemplo, poderá ser muito ativa; conceberá, perceberá, e em conseqüência executará tudo o que é necessário ao desenvolvimento dessa faculdade; numa outra existência será a vez da pintura, dos sistemas exatos, da poesia, etc.; enquanto que essas novas faculdades se exercem, a da música ficará latente, conservando em tudo o progresso realizado. Disso resulta que, aquele que foi artista numa existência, poderá ser um sábio, um homem de Estado, um estrategista numa outra, ao passo que será nulo sob o aspecto artístico e reciprocamente.

O estado latente das faculdades, na reencarnação, explica o esquecimento das existências precedentes, ao passo que, na morte do corpo, não estando as faculdades senão no estado de sono de pouca duração, a lembrança da vida que vem de deixar é completa ao despertar.

As faculdades que se manifestam estão naturalmente em relação com a posição que o Espírito deve ocupar no mundo, e as provas que escolheu; no entanto, freqüentemente, ocorre que os preconceitos sociais o deslocam, o que faz com que certas pessoas estejam, intelectual e moralmente, acima ou abaixo da posição que ocupam. Essa desclassificação, pelos entraves que traz, faz parte das provas; deve cessar com o progresso. Numa ordem social avançada, tudo se regula segundo a lógica das leis naturais, e aquele que não está apto senão para fazer sapatos, não é, pelo direito do nascimento, chamado a governar os povos.

Retornemos à criança. Até o nascimento, todas as faculdades estando no estado latente, o Espírito não tem nenhuma consciência de si mesmo. No momento do nascimento, as que devem se exercer não tomam subitamente o seu vôo; seu desenvolvimento segue o dos órgãos que devem servir à sua manifestação; pela sua atividade íntima, elas levam ao desenvolvimento do órgão correspondente, como o rebento nascente leva à casca da árvore. Disso resulta que, na primeira infância, o Espírito não tem o gozo da plenitude de nenhuma de suas faculdades, não somente como encarnado, mas mesmo como Espírito; é verdadeiramente criança, como o corpo ao qual está ligado. Não se encontra comprimido penosamente no corpo imperfeito, sem isso Deus teria feito da encarnação um suplício para todos os Espíritos, bons ou maus. Ocorre de outro modo com o idiota e o cretino; não sendo os órgãos desenvolvidos paralelamente com as faculdades, o Espírito acaba por se encontrar na posição de um homem apertado pelos laços que lhe tiram a liberdade de seus movimentos. Tal é a razão pela qual se pode evocar o Espírito de um idiota e dele obter respostas sensatas, ao passo que o de uma criança de tenra idade, ou que ainda não nasceu, é incapaz de responder.

Todas as faculdades, todas as aptidões, estão em germe no Espírito, desde a sua criação; aí estão no estado rudimentar, como todos os órgãos no primeiro fiozinho do feto informe, como todas as partes da árvore na semente. O selvagem que, mais tarde, tornar-se-á homem civilizado, possui, pois, nele, os germes que, um dia, dele farão um sábio, um grande artista ou um grande filósofo.

À medida que esses germes chegam à maturidade, a Providência lhe dá, para a vida terrestre, um corpo apropriado às suas novas aptidões; assim é que o cérebro de um Europeu é mais completamente organizado, provido de maior número de circunvoluções do que o do selvagem. Para a vida espiritual, dá-lhe um corpo fluídico, ou perispírito, mais sutil, impressionável a novas sensações. À medida que o Espírito se desenvolve, a Natureza o provê dos instrumentos que lhe são necessários.

No sentido de desorganização, de desagregação das partes, de dispersão dos elementos, não há de morte senão para o envoltório material e o envoltório fluídico, mas a alma, ou Espírito, não pode morrer para progredir; de outro modo perderia a sua individualidade, o que equivaleria ao nada. No sentido de transformação, regeneração, pode-se dizer que o Espírito morre a cada encarnação para ressuscitar com novos atributos, sem deixar de ser ele mesmo. Tal um camponês, por exemplo, que se enriquece e se torna grande senhor; deixou a choupana por um palácio, a veste por uma roupa bordada; tudo está mudado em seus hábitos, em seus gostos, em sua linguagem, mesmo em seu caráter; em uma palavra, o camponês está morto, enterrou a roupa grosseira, para renascer homem do mundo, e, no entanto, é sempre o mesmo indivíduo, mas transformado.

Cada existência corpórea é, pois, para o Espírito, uma ocasião de progresso mais ou menos sensível. Reentrado no mundo dos Espíritos, leva novas idéias; seu horizonte moral se alargou; suas percepções são mais finas, mais delicadas; vê e compreende o que não via e não compreendia antes; sua visão que, no princípio, não se estendia além de sua última existência, abarca sucessivamente as suas existências passadas, como o homem que se eleva, para que o nevoeiro se dissipe, abarca sucessivamente um mais vasto horizonte. A cada nova estação na erraticidade, se desenrolam aos seus olhos novas maravilhas do mundo invisível, porque de cada uma um véu se rasga. Ao mesmo tempo, seu envoltório fluídico se depura; torna-se mais leve, mais brilhante; mais tarde será resplandescente. É um Espírito quase novo; é o componês desbastado e transformado; o velho Espírito está morto, e, entretanto, é sempre o mesmo Espírito.

É assim, cremos, que convém entender a morte espiritual.

Fonte: Obras Póstumas

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