A Doutrina dos Espíritos foi codificada e positivada por Allan Kardec em meados do século XIX. À época com grande satisfação asseverava o Codificador em várias oportunidades, que eram numerosos os espíritas disseminados por todos os países. O espiritismo avançava a passos largos!
Passados mais de um século do desencarne do Codificador, e vivenciando a primeira década do século XXI, pode-se lançar as seguintes indagações: - Afinal, o Espiritismo se propagou e se consolidou no mundo contemporâneo e globalizado? Seus princípios foram difundidos de forma célere e efetiva? Temos um grande número de escolas, e universidades espíritas ensinando espiritismo mundo afora? O Brasil, estatisticamente considerado o maior reduto de espíritas do mundo, cumpre seu papel de divulgador fiel do Espiritismo?
Para tais questionamentos podemos afirmar de pronto e objetivamente, que a Doutrina Espírita, não se propagou nem se consolidou pós desencarne de Allan Kardec. Na França, berço da Sociedade de Paris, segundo narrativa de Gélio Lacerda da Silva “a Revista Espírita, caiu nas mãos do seu gerente Pierre Gaëtan Leymarie, que por seu excessivo espírito de tolerância, desvirtuou a finalidade da Revista, abrindo suas páginas à propaganda de filosofias espiritualistas, inclusive à de Roustaing, que diverge do Espiritismo. Além disso, lamentavelmente, o Sr. Leymarie se deixou enganar por um fotógrafo fraudulento, que lhe custou um ano de prisão, com danosas conseqüências para o Espiritismo, na França, tanto que, com esse triste episódio, espírita na França, passou a ser sinônimo de "escroque" (trapaceiro, vigarista, velhaco, caloteiro...)" citando o autor como fonte de consulta o livro "Allan Kardec" de autoria de Zeus Wantuil e Francisco Thiesen, 1ª edição da FEB, vol. III, pág. 225.
Nos demais países europeus, o espiritismo tomou rumos diversos, até seu total desaparecimento na poeira dos tempos. Da mesma forma aconteceu na América do Norte, reduto dos fenômenos de Hydesville, dentre muitos outros.
No que concerne ao Brasil, segundo as palavras de Gélio temos “um sincretismo religioso de ideologias conflitantes, um misto, ou melhor, uma miscelânea de espiritismo, roustainguismo, ubaldismo, umbandismo. Sim, até umbandismo, porque, para a Diretoria da FEB, onde há mediunismo, há também espiritismo (Reformador, 16/10/26), enfim, um saco de gatos..." (Gélio Lacerda da Silva, "Conscientização Espírita", págs. 108 a 114).
Não obstante, Allan Kardec muito prezou em evitar que o espiritismo se transformasse em mais uma religião dogmática e mística, por ser segundo suas palavras uma doutrina filosófica e moral, que tem por objetivo emancipar o espírito humano de tudo o que foi posto e imposto pelas religiões tradicionais. À esse respeito, assim se expressou o Mestre:
“Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.” (Revista Espírita, dezembro de 1868)
Entretanto, a despeito da vontade do Codificador, o espiritismo brasileiro tomou um formato religioso igrejeiro, com centros espíritas que adotam práticas ritualísticas, místicas e anti-espíritas, que vão desde os cantos religiosos, rezas (Pai-Nosso, Ave-Maria, A Prece de Cáritas), exercícios de meditação com o canto de mantras, filas para o recebimento de passes, assemelhando-se às filas de comunhão católica; águas fluidificadas que se assemelham às “águas bentas”; o funcionamento de salas de cromoterapia, de cirurgias espirituais, até a substituição das imagens dos santos católicos, pelas fotografias emolduradas de Jesus, Maria de Nazaré, Allan Kardec, Léon Denis, Bezerra de Menezes, Emmanuel, André Luiz, Chico Xavier, dentre outros, afixadas em suas paredes e fixadas pelos olhar devoto de seus freqüentadores.
Não obstante, além das questões de “forma”, temos as questões de “fundo”, sendo estas últimas também deturpadoras dos princípios doutrinários espíritas. A corrupção doutrinária é disseminada pela literatura e pelos palestrantes. Entretanto, considero o grande adulterador do espiritismo, os livros catalogados, editados, e distribuídos como “obras complementares” da doutrina espírita, pela Federação Espírita Brasileira (FEB) - que também utilizando-se do modelo católico se auto intitula a “Casa Mater” do Espiritismo.
Faz-se por oportuno observar, que os centros espíritas espalhados por todo o território nacional, têm a cultura de instalar em suas dependências, um local para venda ou empréstimo de livros espíritas. Por conseguinte, qualquer visitante ou novo freqüentador que adentrar às dependências do centro, vai se deparar com uma pequena ou grande livraria oferecendo os mais diversos títulos, tidos como “obras espíritas“, que vão desde os livros de auto-ajuda, até os exemplares anti-doutrinários de autores encarnados e/ou desencarnados, que se contrapõem frontalmente aos princípios espíritas.
Assim, aquele que nada sabe de espiritismo, encontrará nas prateleiras da ditas livrarias, desde Os Quatro Evangelhos de Roustaing, um grande opositor de Allan Kardec, ao místico Ramatís, passando pela coleção André Luiz/Emmanuel, psicografadas pelo famoso médium Chico Xavier, trazendo toda uma gama de informações questionáveis e em total desacordo com os preceitos espíritas.
Na linha romanesca, obterá os romances de Zíbia Gaspareto, as famosas Violetas na Janela, a miscelânea do Espírito Luis Sérgio, O Vale dos Suicidas, de Yvone Pereira do Amaral, além da coleção Joanna de Angelis e Manoel Philomeno de Miranda psicografados por Divaldo Pereira Franco.
E neste mundo literário confuso e contraditório, o visitante ou novo freqüentador poderá achar uma estante perdida ao fundo da esfuziante livraria e/ou biblioteca, com uma exposição muito comumente incompleta, de O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, O que é o Espiritismo, Obras Póstumas, e talvez alguns poucos volumes da Revista Espírita!
Diante desta realidade, explica-se a assustadora quantidade de pessoas que se dizem espíritas e NUNCA leram sequer uma obra fundamental da doutrina Espírita, entendendo-se que o neófito ao se deparar com toda essa diversidade de livros ofertados pela instituição Espírita, acreditará por óbvio encontrar naquelas páginas o repositório de informações, e conhecimentos formalmente espíritas!
Agravando a situação de “fundo” da doutrina, o iniciante terá provavelmente na instituição que passa a freqüentar, como monitores, facilitadores, doutrinadores, ou expositores, pessoas despreparadas e desconhecedoras das Obras Fundamentais da Doutrina Espírita, sendo estes na sua grande maioria leitores contumazes das psicografias de Chico e Divaldo, de Ramatis, dos Tambores de Angola, do Aconteceu na Casa Espírita, e obviamente de Violetas na Janela!
Vale ressaltar, que na sua grande maioria, o critério de admissão para os trabalhos de dirigente de grupo, de médium ou doutrinador nas reuniões mediúnicas, é que tenha “boa vontade”, e quando muito, se arvore como leitor das famosas obras complementares - leia-se coleção André Luiz/Emmanuel! Por conseguinte, o neófito do espiritismo estará sendo formado para tornar-se o próximo divulgador mistificado e mistificador da Doutrina Espírita, levando adiante a “corrente do mal”.
Portanto, face ao exposto que é a constatação real do que são os centros espíritas de norte a sul do Brasil, entendo ser uma temeridade indicar em sã consciência uma instituição espírita para alguém que busque conhecer e estudar o espiritismo... E então, o que fazer?!
Diante do total desvirtuamento da Doutrina dos Espíritos, é fato que precisa-se urgentemente reorganizá-La, e Kardec com toda a competência quando trata do assunto, começa se reportando aos adeptos “ainda isolados sob meio a uma população hostil ou ignorante das idéias novas”. Esta é a realidade dos espíritas contemporâneos não submersos no misticismo espírita. Encontram-se isolados no meio de uma população hostil e ignorante das idéias espíritas, sendo considerados por toda a falange mística, como ortodoxos obsidiados e inimigos contumazes do espiritismo.
Entretanto, o Codificador orienta que tais espíritas “para começar, podem trabalhar por conta própria, impregnando-se da doutrina pela leitura e meditação das obras especiais”, ou seja, as obras fundamentais da doutrina espírita, ressalvando que “se se limitassem a colher na doutrina uma satisfação pessoal, seria uma espécie de egoísmo”. Acrescenta que “em razão de sua própria posição, têm uma bela e importante missão de espalhar a luz em seu redor”. Adverte ainda que não devemos nos deixar deter pelas dificuldades, posto que “sem dúvida encontrarão oposição, serão alvo de zombarias e dos sarcasmos dos incrédulos, da própria malevolência das pessoas interessadas em combater a doutrina; mas, onde estaria o mérito, se não houvesse nenhum obstáculo a vencer?” E assevera que “aos que forem detidos pelo medo pueril do que os outros pensariam deles, nada temos a dizer, nenhum conselho a dar.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Daí, estabelece Kardec algumas questões importantes para a formação dos grupos, dispondo que a primeira questão a ser considerada é a “uniformidade na doutrina”, significando que todos deverão seguir “a linha traçada em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns, posto que, “um contém os princípios da filosofia da ciência; o outro, as regras da parte experimental e prática“. Complementa afirmando que “estas obras estão escritas com bastante clareza, de modo a não ensejar interpretações divergentes, condição essencial de toda doutrina nova.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
O segundo ponto abordado pelo Codificador diz respeito à constituição dos grupos, estabelecendo como uma das primeiras condições a homogeneidade, que segundo suas palavras, “sem a qual não haveria comunhão de pensamentos”, e acrescentando que “uma reunião não pode ser estável, nem séria, se não há simpatia entre os que a compõem; e não pode haver simpatia entre pessoas que têm idéias divergentes e que fazem oposição surda, quando não aberta.” Esclarece o mestre que “cada um pode e deve externar sua opinião; mas há pessoas que discutem para impor a sua, e não para se esclarecer.”
No que concerne às perturbações advindas das discussões por divergência e imposição de opiniões, diz Kardec que “as reuniões espíritas estão em condições excepcionais”, requerendo acima de tudo recolhimento. “Ora, como estar recolhido se, a cada momento, somos distraídos por uma polêmica acrimoniosa? Se, entre os assistentes, reina um sentimento de azedume e quando sentimos à nossa volta seres que sabemos hostis e em cuja fisionomia se lê o sarcasmo e o desdém por tudo quanto não concorde inteiramente com eles?” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Em seguida preceitua que “num grupo sempre há elementos estáveis e flutuantes. O primeiro é composto de pessoas assíduas, que formam a base; o segundo, das que são admitidas temporária e acidentalmente. É essencial prestar escrupulosa atenção no que respeita à composição do elemento estável; neste caso, não se deve hesitar em sacrificar a quantidade pela qualidade, porque é ele que dá impulso e serve de regulador.” ( ) “Não se deve perder de vista que as reuniões espíritas, como, aliás, todas as reuniões em geral, haurem as forças de sua vitalidade na base sobre a qual se assentam; neste particular, tudo depende do ponto de partida.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Pontua Kardec que “formado esse núcleo, ainda que de três ou quatro pessoas, estabelecer-se-ão regras precisas, seja para as admissões, seja para a realização das sessões e para a ordem dos trabalhos, regras às quais os recém-vindos terão de se conformar.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Adiante adverte que a “ordem e a regularidade dos trabalhos são coisas igualmente essenciais, considerando de grande utilidade abrir cada sessão pela leitura de algumas passagens de O Livro dos Médiuns e de O Livro dos Espíritos.Segundo Kardec por esse meio, “ter-se-ão sempre presentes na memória os princípios da ciência e os meios de evitar os escolhos encontrados a cada passo na prática. Assim, a atenção será fixada sobre uma porção de pontos, que muitas vezes escapam numa leitura particular e poderão ensejar comentários e discussões instrutivas, das quais os próprios Espíritos poderão participar.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Por fim, faz-se por oportuno ressaltar as seguintes considerações feitas pelo Codificador: “Como se vê, nossas instruções se destinam exclusivamente aos grupos formados de elementos sérios e homogêneos; aos que querem seguir a rota do Espiritismo moral, visando o progresso de cada um, fim essencial e único da doutrina; enfim, aos que nos querem aceitar por guia e levar em conta os conselhos de nossa experiência. É incontestável que um grupo formado nas condições que indicamos funcionará em regularidade, sem entraves e de maneira proveitosa. O que um grupo pode fazer, outros também podem. Suponhamos, então, numa cidade, um número qualquer de grupos, constituídos sobre as mesmas bases; necessariamente haverá entre eles unidade de princípios, desde que seguem a mesma bandeira; união simpática, desde que têm por máxima amor e caridade. Numa palavra, são os membros de um a família, entre os quais não haveria concorrência, nem rivalidade de amor-próprio, já que todos estão animados dos mesmos sentimentos para o bem.” (Revista Espírita, dezembro de 1861, Organização do Espiritismo)
Diante do exposto, entendo que a reorganização do espiritismo passará pelo mesmo processo inicial que se deu à época de Kardec, ou seja, com a formação de pequenos grupos, livres do personalismo e do misticismo implantado no que está posto.
Serão esses novos grupos que estudarão a doutrina espírita tendo como fonte as obras fundamentais, e resgatarão o pensamento espírita, rechaçando os rituais, e a necessidade infantil de se eleger alguém para reverenciar e seguir!
Aquele que estuda a doutrina espírita, entende porque ela é libertadora. A liberdade está justamente na responsabilidade trazida pelo conhecimento. Passa-se a entender que não serão os passes, a água fluidificada, as rezas, as velas, o evangelho no lar, nem os Espíritos que nos “salvarão”! Será o trabalho solitário e árduo do nosso Espírito imortal, buscando aparar as arestas da nossa personalidade infantil, depois de compreendermos e assimilamos a dinâmica da vida ora no plano material, ora no plano espiritual.
Finalizando, reitero o entendimento de que será através de um movimento que estimule e propague a formação de pequenos grupos espíritas, organizados nos moldes kardecianos, tendo como componentes companheiros unidos pelo mesmo ideal, dedicados ao estudo e à divulgação do espiritismo, que teremos um novo recomeço. Precisamos acreditar como Kardec acreditou, que a doutrina espírita avançará! Para tanto, faz-se necessário exercitarmos a comunhão de pensamentos, amadurecendo e dando vida a essa idéia. Como asseverava o Codificador, o pensamento é uma força ativa que se tornará mais forte e eficiente quanto maior o número de homens e Espíritos unidos num mesmo objetivo. Esta será a “corrente do bem!”
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