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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Divergência Doutrinária Fundamental


Por Nazareno Tourinho

Entremos agora na parte principal de Os Quatro Evangelhos publicados por Jean-Baptiste Roustaing, de suspeita origem mediúnica jamais sancionada pelo critério de universalidade no ensino dos Espíritos.

Preparando a defesa da tese fantasiosa do corpo fluídico de Jesus, os autores que teriam do Além ditado a obra dizem à página 166 do Volume 1:

“Mas, não esqueçais: todo aquele que reveste e sofre, como vós, a encarnação material humana – é falível. Jesus era demasiado puro para vestir a libré do culpado.”

Nota-se, logo, como a articulação do pensamento é defeituosa e sofística. Da premissa de que o Espírito encarnado pode falir retira-se a conclusão de que ele deve falir, ou pior, faliu, sendo culpado.

Aqui, nesta sutileza pouco percebida por alguns companheiros de crença, impregnados de misticismo, encontra-se a contradição fundamental da mensagem de Roustaing com a mensagem de Kardec, contradição grave e profunda que a Diretoria da FEB esforça-se por esconder, classificando as diferenças teóricas entre uma obra e outra na categoria de “questões secundárias” incapazes de “afetar a doutrina”.

Como não afeta a nossa Doutrina, cuja estrutura filosófica repousa na encarnação e reencarnação, através das quais funcionam as leis evolutivas de causa e efeito, o fato de Roustaing contradizer Kardec negando que TODOS os Espíritos encarnam? (Este princípio básico da Doutrina está enfaticamente estabelecido na resposta dada à pergunta nº 133 de O LIVRO DOS ESPÍRITOS).

A ideia de que só os Espíritos culpados animam corpos humanos legitima a lenda católica dos anjos decaídos, expressando o injustificável desprezo que a Igreja Romana sempre devotou ao corpo carnal, criação de DEUS como tudo o mais dentro da Natureza. Reproduzindo-se o corpo físico pela atividade do sexo, e precisando os padres exaltar a virgindade porque fogem ao exercício da função genética, outra alternativa não têm eles senão apregoar, consoante o faz Roustaing, servindo-lhes de instrumento, à página 112 do Volume 1 de Os Quatro Evangelhos, que possuímos um “corpo de lama”.

Eis como no referido tomo os autores discorrem sobre o hipotético corpo fluídico de Jesus a partir da sua geração:

“Tudo, na vida “humana” de Jesus, foi apenas aparente, mas se passou em condições tais que, para os homens, houve ilusão, assim como para Maria e José, devendo todos acreditar na sua “humanidade”...”. (Página 243; as aspas pelo meio e os destaques em itálicos são dos autores).

Consta ainda da mesma página o que segue, para levarmos a sério, sem rir:

“Quando Maria, sendo Jesus, na aparência, pequenino, lhe dava o seio – o leite era desviado pelos Espíritos superiores que o cercavam, de um modo bem simples: em vez de ser sorvido pelo “menino”, que dele não precisava, era restituído à massa do sangue por uma ação fluídica, que se exercia sobre Maria, inconsciente dela”.

Neste tópico vê-se como a imaginação dos autores se mostra fértil, porém no seguinte verifica-se como eles saem pela tangente na hora de explicar o mais importante. Ei-lo:

“Não vos espanteis tampouco de que Maria tivesse leite, uma vez que não sofrera a maternidade humana e era virgem. A maternidade não é uma condição absoluta para que se produza o leite, que não passa de uma decomposição do sangue, determinável por diversas causas, que não nos cabe determinar aqui”. (Página 244)

Também na página 258, ao tentar fornecer dados explicativos sobre como o corpo de Jesus podia parecer carnal sendo tão só uma condensação do perispírito, declaram os autores:

“Para vos darmos explicação a este respeito, teríamos de entrar em minúcias acerca da natureza dos fluídos e isso ainda não é possível.”

Além de fugir da raia quando os acontecimentos se complicam para as suas ingênuas explicações, os autores chegam ao cúmulo da insensatez escrevendo coisas assim:

“...Jesus, “se ausentava”, afigurando-se a Maria e aos homens que repartia assim o tempo entre os deveres humanos e a prece, sem que jamais o tivessem visto fazer qualquer refeição, tomar qualquer alimento humano, seja em casa com a família, seja alhures”. (Página 255)

Ora, isto é um despautério, pois todo mundo sabe que, segundo as narrativas evangélicas, Jesus sentou à mesa para alimentar-se com várias pessoas, inclusive em ocasiões festivas, havendo pouco antes da crucificação participado de uma célebre ceia com os discípulos.

Mais absurdo, no entanto, do que os aspectos ridículos de tais “revelações”, é o conceito depreciativo de Jesus formulado pelos autores, à guisa de enaltecimento, na página 205. Leiamos:

“Queremos dizer que Jesus, de uma elevação extrema, incompatível com a vossa essência, não podia submeter-se à encarnação material humana. Era-lhe impossível suportar o contato da matéria, como vos é impossível suportar um odor fétido.”

Afora a impropriedade doutrinária de que a elevação extrema de Jesus é incompatível com a nossa essência, pois todos, inclusive o amorável Mestre, somos dotados da mesma essência como filhos de DEUS (o Catolicismo, e não o Espiritismo, é que confunde o Cristo com a Divindade), defrontamos neste último tópico a leviana afirmação de ser impossível a Jesus suportar o contacto da matéria. Ora, por que lhe seria tal feito impossível? Por que, com seus formidáveis poderes psíquicos, não teria ele condição de superar os incômodos do relacionamento temporário com a fisiologia humana?

Observe o leitor como a obra de Roustaing se baseia em falsos pressupostos, sendo, portanto, destituída da mais elementar substância lógica. Não passa de pura ficção, ela, sim, incompatível com a essência da filosofia espírita, que Allan Kardec soube tão bem codificar.

Fonte:
TOURINHO, Nazareno.  As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing – Nazareno Tourinho; ensaio crítico-doutrinário; 1ª edição, Edições Correio Fraterno, São Bernardo do Campo, SP, 1999.

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