Herculano Pires |
Chega de pieguice religiosa, de palestras sem fim sobre a fraternidade impossível no meio de lobos vestidos de ovelhas. Chega de caridade interesseira, de imprensa condicionada à crença simplória, de falações emotivas que não passam de formas de chantagem emocional. [...] Não façamos do Espiritismo uma ciência de gigantes em mãos de pigmeus. [...] Remontemos o nosso pensamento às lições viris do Cristo, restabelecendo na Terra as dimensões perdidas do seu Evangelho. Essa é a nossa tarefa. (Herculano Pires. Jornal Mensagem. Set/1975.)
Estudo, prática e divulgação fiéis a Kardec, qualificados intelectual e, sobretudo, moralmente, é o de que necessita nosso movimento espírita. Reitero meu respeito às instituições; às pessoas, mais ainda. Nunca, todavia, aos erros em que podem incidir eventualmente. É dever de todo espírita sincero a advertência; fraterna, mas firme.
Em meio a esta inglória batalha política entre extremos opostos nas ideias (ainda que aliados em minarem a obra de Jesus), entrincheirado se encontra, na mente dos verdadeiros adeptos do Espiritismo, o bom-senso kardeciano. E ele aguarda o quê? Que o nosso amor ao Espírito de Verdade promova às futuras gerações de espíritas o socorro de uma militância independente e aberta, como foi a de Herculano Pires.
Certamente que as futuras gerações de espíritas não estão destinadas a suportar o peso do óbolo maligno que foi depositado no gazofilácio dos melhores esforços da geração atual, por lideranças intoxicadas pelos devaneios da egolatria institucionalizada.
Não deixemos que o instinto gregário de nossa espécie continue nos levando ao que ela tem de pior: a imitação e a repetição dos papagaios. Fora! Fora! com os discursos catequéticos, como aqueles desenvolvidos ao influxo da mística de Brasil: Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, obra que traduz equivocadamente as favoráveis condições socioculturais brasileiras para a assimilação dos conceitos e práticas afins com a transcendência humana...
A marcha evolutiva do Espiritismo dispensa que sejam estatutários na F.E.B. aquele Jesus necessitado de aulas de geografia e cuja amargura divina empolga toda uma formosa assembleia de querubins e arcanjos (ob. cit., I), ou um dissidente declarado, como J.-B. Roustaing, do mais rasteiro solo de intrigas erguido à condição de cooperador de Kardec para o trabalho da fé, pari passu com os digníssimos missionários Léon Denis e Gabriel Delanne (ob. cit., XXII. Cf. ainda http://oprimadodekardec.blogspot.com).
Não devemos esperar os tapinhas nas costas de uma aclamação ilusória, promovida pelos inimigos da capacidade crítica renovadora, da fé verdadeiramente raciocinada. Esta não é a vereda em que andaram nossos ilustres tutelares, chefiados pelo próprio Jesus, que, afinal, não morreu por falência múltipla dos órgãos vitais.
Desagrademos, sim, se preciso for, tanto a gregos quanto a troianos. Cultivemos desdém pelo interesse pessoal e imediato, trabalhando com coragem por um futuro que não faça a nós mesmos — reencarnacionistas que somos — o desfavor de reproduzir ainda um sem-número de vezes as mesmas estruturas do passado decrépito.
A doutrina, a verdade mesma, está acima de qualquer instituição que a pretenda representar no organismo viciado das sociedades humanas. A eterna doutrina espírita é a instituição por excelência. Às suas razões é que devemos estar vinculados, independentemente desta ou daquela casa, deste ou daquele guia ou dirigente, porque acima de todos está aquele que supervisiona este globo, que preside a regeneração: O Espírito de Verdade, isto é, Jesus Cristo.[1]
O que torna legitima a representatividade de qualquer órgão que se qualifique espírita é sua fidelidade incondicional à obra kardeciana, em cujo programa constam, mais que claros, explícitos, os preceitos e caminhos do Espiritismo.
Os dissidentes, portanto, não são os que discordam destas ou daquelas instituições, bem como, principalmente, das ideias de que se fazem campeãs. Os dissidentes são os que não respeitam a doutrina e, não satisfeitos em vampirizá-la, acusam de inferioridade e desequilíbrio os que, denunciando esse deteriorado estado de coisas, seguem o exemplo de João Batista e de seu divino primo.
De norma, aqueles tais se defendem cultivando uma indiferença que fantasiam de virtude introspectiva. Querem aparentar uma superioridade e uma sabedoria que as menores coisas são capazes de desmascarar aos que com eles tiverem oportunidade de privar algum tempo.
Trata-se de um anticristianismo supor que podemos atingir a perfeição nos preocupando somente com o que ocorre em nós, entrincheirados numa caridade mercenária que, acreditamos ingenuamente, abrir-nos-á as portas do reino do céu, mas que apenas oculta o nosso egoísmo comodista e a nossa carência oportunista.
O fato é que toda casa não edificada sobre a rocha desabará, e toda planta que o Pai não plantou será arrancada. Acima do institucionalismo humano das casas está a instituição divina da causa. Muito acima de quaisquer instituições está a instituição por excelência: a doutrina em sua integridade, consignada nas letras de fogo da codificação kardeciana. Pena que possamos divisar ainda oportuna a antiga palavra bíblica:
Desde o menor deles até o maior, cada um se dá à ganância, e tanto os profetas, como os sacerdotes usam de falsidade. Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados porque cometem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa é envergonhar-se... Assim diz o Senhor: Ponde-vos à margem no caminho e vede, perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho; andai por ele e achareis descanso para vossa alma; mas eles dizem: Não andaremos... Portanto, ouvi, ó nações, e informa-te, ó congregação, do que se fará entre eles. (Jeremias, VI, vv. 13 a 16 e v. 18.)
Poderiam os dissidentes pensar o que quer que fosse se espiritualistas se dissessem. Como insistem, no entanto, em se apresentarem como retificadores e reelaboradores da obra de Kardec, identificando-se indebitamente como espíritas, temos de assumir uma atitude enérgica.
A nosso bem e das futuras gerações de espíritas, necessitamos de um Espiritismo que se apresente como de fato é, ressaltando, cristalino, sem ambiguidades, das obras do mestre de Lyon, isento das manipulações de toda ordem a que vem sendo submetida.
Temos de ressuscitar o slogan do lendário Clube de Jornalistas Espíritas de São Paulo, fundado por Herculano Pires aos 23 de janeiro de 1948, assim definido por J. Rizzini: “A doutrina espírita acima de tudo! Acima dos homens e das instituições, porque em nosso planeta nada é mais importante do que o Espiritismo!”.
Dizia o filósofo de Avaré:
Precisamos de estudar Kardec intensamente, de assimilar os ensinos das obras básicas, de mergulhar nas páginas de ouro da Revista Espírita, não apenas lendo-as, mas meditando-as, aprofundando-as, redescobrindo nelas todo o tesouro de experiências, exemplos, ensinos e moralidade que Kardec nos deixou. Mas antes de mais nada precisamos de humildade para entrar no Templo da Verdade sem a fátua arrogância de pigmeus que se julgam gigantes. Precisamos de respeito pelo trabalho de um homem que viveu na Terra atento à cultura humana, assenhoreando-se dela para depois se entregar à pesada missão de nos livrar da ignorância vaidosa e das trevas das falsas doutrinas de homens ignorantes e orgulhosos. (Herculano Pires. Na Hora do Testemunho. Antes do cantar do galo. Vaidade das vaidades.)
Os que temem pecar por falar e pecam por se calar devem compreender que estão afastados da obra de Kardec e do Evangelho de Jesus, sempre amigos do debate sincero, da análise e do estudo sérios, muito distantes dos dogmas ancestrais formulados pelo obscurantismo, aos quais servem com seu silêncio comprometedor. Por outra, se é verdade que o Espiritismo quer ser estudado e refletido, não o é menos que dispensa a presunção daqueles que o querem retificar e reestruturar a pretexto de atualizá-lo, afrontando sua lógica intrínseca e sua fonte reveladora. Ora! Não há nada mais vitorioso em face das atuais formulações do conhecimento e da cultura do que o trabalho de Allan Kardec.
Dinamizar o Espiritismo, e nunca atualizá-lo, é tarefa de quem, por princípio, o conhece muito a fundo; de quem o ama e tem competência intelecto-moral; de quem, por isto, sabe submeter as conquistas das diversas áreas do saber ao prévio esquema — aliás, insuperável — da eterna doutrina. Esse esquema, pela sua delicada natureza de refletida totalidade, permite uma criteriosa e abrangente articulação cultural, expressando possibilidades jamais identificadas em qualquer sistema de pensamento organizado.
Logo se vê que essa tarefa não pode caber a pseudossábios, os quais, ao contrário do que seria correto, pretendem submeter a doutrina aos acanhados esquemas do agnosticismo e do ceticismo materialista, ou do superado misticismo espiritualista. O resultado, lembrando o mestre do Espiritismo por excelência, será sempre o vinho novo do paradigma espírita posto no odre velho das infantis inquietações de um homem só terrenal. Mais que da ciência ou da religião, precisamos da codificação kardeciana, perfeita síntese de ambas no sapiente exercício da consciência filosófica do Espiritismo.
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[1] Cf. O Livro dos Médiuns. Parte 1, cap. IV, n. 48. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Cap. I, n. 7. A Gênese, cap. I, n. 42. Revista Espírita. Jun/1861. Correspondência. Out/1861. Epístola aos Espíritas Lioneses. Nov/1861. Primeira Epístola aos Espíritas de Bordéus. Fev/1868. Instruções dos Espíritos. Futuro do Espiritismo. Jan/1864. Um Caso de Possessão. Senhorita Júlia. Nov/1862. Dissertações Espíritas. O Duelo. Fev/1867. Dissertações Espíritas. A Clareza.
Fonte: O Metro que melhor mediu Kardec - http://ometroquemelhormediukardec.blogspot.com.br/2010/06/capitulo-6.html