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domingo, 18 de agosto de 2013

Kardec e o catálogo racional de obras

Por Sergio Aleixo

Um argumento dos que advogam que quase tudo pode ser Espiritismo à revelia de Kardec, merecendo até lugar na doutrina espírita, é a lista de obras preparada pelo mestre para formação de bibliotecas espíritas, cuja primeira edição apareceu em fins de março de 1869, visando à inauguração de uma livraria no início do mês seguinte, evento adiado, infelizmente, por conta de seu repentino passamento aos 31 dias de março daquele ano fatídico. A segunda edição do Catálogo Racional de Obras que Podem Servir para Fundar uma Biblioteca Espírita apareceu em agosto do corrente, já depois da morte de Kardec e acrescido, imaginem, de mais um par de títulos, sob a responsabilidade de A. Desliens. Quatro anos mais tarde, em dezembro de 1873, veio a lume uma terceira edição, atualizada por P. G. Leymarie.[1] Desconheço as duas primeiras. Portanto, não sei que obras foram acrescidas após o decesso de Kardec. Como quer que tenha sido, basta uma leitura atenta da peça para constatar a falta de base para argumentos mais libertários.
Catálogo é composto de três partes e um Apêndice: I – Obras fundamentais da doutrina espírita; II – Obras diversas sobre o Espiritismo ou complementares da doutrina; III – Obras feitas fora do Espiritismo; e Apêndice: Obras contra o Espiritismo.
A primeira coisa a considerar é que as obras de Kardec não são por ele chamadas básicas, e sim fundamentaisO Que é o EspiritismoViagem Espírita em 1862 e toda a coleção da Revista Espírita, inclusive. A segunda, é que, no hall de obras diversas sobre o Espiritismo ou complementares da doutrina, encontram-se livros cujos dizeres mereceram de Kardec simples comentários, uns; e mesmo censuras, outros, ali diretamente expressas, bem como em remissões bibliográficas indicadas pelo mestre.
É o caso, por exemplo, de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing. Kardec diz que se trata de obra que ensina a mesma doutrina dos docetistas e apolinaristas, a postular que o corpo de Jesus era fluídico, razão pela qual não teria ele sofrido senão em aparência. Recomenda, então, a leitura de seu livro A Gênese, cap. XV, n.ºs 64 a 68, onde, como se sabe, repele veementemente essa teoria, contra-argumentando que ela rebaixa moralmente a Jesus. Trata-se, portanto, de atitude preventiva, de clara censura por parte de Kardec.
Na mesma esteira está o livro A Chave da Vida, por V. de F. Michel, que o mestre informa coincidir com alguns pontos da doutrina espírita, estando, contudo, na sua maior parte, em contradição com a ciência e o ensino geral dos espíritos. Kardec remete o leitor novamente a seu livro A Gênese, cap. VIII, n.ºs 4 a 7.
Outro tanto sucede a Revelações do Mundo dos Espíritos, recebido pelo médium Sr. Roze, e cujo conteúdo Kardec afirma compor-se de teorias em franca contradição com a ciência e com o ensino geral dos espíritos, sublinhando, vejam, que a doutrina espírita não as pode admitir. E aqui, uma grave lição. Este médium foi membro titular da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Recebeu, dentre outras, mensagens de São Luís, Lamennais, São Vicente de Paulo, e do próprio Espírito da Verdade.[2] E a que ponto chegou? De publicar contradições com a ciência e até com a doutrina espírita, que não é senão o ensino geral dos espíritos a que se refere Kardec em sua crítica. De fato, há nos boletins da S.P.E.E. menção a um certo “sistema” ditado a esse médium pelo que chamou “escrita inconsciente”, e também à penosa impressão que causou a um dos membros da S.P.E.E. a simples exposição do tal “sistema”.[3]
Resta saber agora se obras em contradição com a doutrina espírita e abertamente censuradas pelo próprio Kardec poderiam ser suas complementares. Claro que há por aí um equívoco de compreensão da proposta do mestre no Catálogo. O título da segunda parte, aliado ao procedimento crítico de Kardec em alguns de seus dizeres, demonstra que, ali, todas são, sim, diversas obras sobre o Espiritismo, mas nem todas são complementares da doutrina. Há umas e outras. A partícula ou indica exclusão e não sinonímia. Existem duas categorias distintas. Faz sentido que, numa biblioteca espírita, obras equívocas sejam, ainda assim, sobre o Espiritismo, porque sobre História ou Geografia é que não seriam. Mas, absolutamente, não podem ser complementares da doutrina espírita, que sequer pode admitir-lhes os conteúdos em certos casos, como se viu.
Usar o Catálogo para justificar o erro de que seriam complementos da doutrina espírita mesmo livros em contradição com suas obras fundamentais é puro oportunismo de algumas raposas bem escoladas, estribado na inconstância de certos adeptos e na ignorância geral a respeito dos fundamentos históricos e conceituais do Espiritismo.
Por outro lado, nenhum espírita deve tramar, em seu centro ou associação, proibir a leitura de quaisquer obras que sejam. Index librorum prohibitorum é coisa execrável, contra a qual, repito: contra a qual se deve posicionar o kardecista, sempre amigo do livre-exame. Mas daí a incentivar inconsideradamente a leitura de obras que contradigam a doutrina espírita, em detrimento, por exemplo, das obras fundamentais de Kardec, sobretudo no que respeita a neófitos, vai longa e mal iluminada distância.
O estrago que determinadas publicações podem ensejar a adeptos inexperientes, ainda faltos de elementos necessários a um discernimento mais prevenido, deve ser escrupulosamente evitado. É preciso dar uma chance à verdade espírita. Estimulemos a todo custo o estudo perseverante e continuado das obras fundamentais: O Que é o EspiritismoO Livro dos EspíritosO Livro dos MédiunsO Evangelho Segundo o Espiritismo, etc., etc. Depois, sim, que venham todos os benditos catálogos com livros “de dentro”, “de fora”, “pró” e “contra” o Espiritismo, porque já não seremos presas tão fáceis.
Outro não foi o motivo pelo qual encabeçaram o Catálogo as próprias obras kardecianas. Fizeram-se presentes os elogios do mestre, mas também suas abstinências e censuras aos livros listados. E por quê? Justamente porque é pela Obra de Kardec que a crítica espírita se viabiliza.




[1] BARRERA, F. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. USE/Madras, 2003, p. 144.
[2] Cf. Revista Espírita. Mar/1860. Perguntas sobre o Gênio das Flores (São Luís). Abr/1860. Ditados Espontâneos: “Conselhos” (O Espírito de Verdade); “Amor e Liberdade” (Abelardo); “Parábola” (São Vicente de Paulo). Nov/1860. Dissertações Espíritas: “Os Inimigos do Progresso” (Lamennais). Esta última comunicação é atribuída à recepção do “Sr. R...”. Trata-se, por certo, do Sr. Roze, mencionado no Boletim da S.P.E.E. de 10 de fevereiro de 1860 (cf. Revista de Mar/1860), no qual há expressa menção ao ditado espontâneo recebido pelo “Sr. Roze”, justamente de “Lamennais”. Há muitas referências a esse médium nas Revistas de 1859, nessa condição abreviada, talvez por ser antigo ministro-residente dos Estados Unidos junto ao rei de Nápoles, como informa Kardec na Revista de Maio/1859, no artigo “Ligação entre o Espírito e o Corpo”.
[3] Revista Espírita. Nov/1860. Boletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. 5 de outubro de 1860, sessão particular; 12 de outubro de 1860, sessão geral.

2 comentários:

  1. Olá amigo tudo joia? que legal o seu blog..
    Serio mesmo.. conheci ele a pouco tempo e já estou gostando..
    Eu também tenho um blog espirita o> http://espiritismoespiritoverdade.blogspot.com.br/
    Meu objetivo e o mesmo que o seu.. divulgar a doutrina espirita.. Que tal agente fazer parceria depois?
    Parabéns pelo blog.. super informativo.

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  2. Como sempre, ótimo artigo, principalmente pela utilidade das informações.

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