Por Sérgio Aleixo
Fiel à sua condição estatutária de integrante da “escola” rustenista e demonstrando concordar com o opúsculo Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários (1883), a Federação Espírita Brasileira ousou contrariar o Codificador neste ponto de A Gênese:
cap. XV, n. 66. Fez registrar em nota de rodapé à tradução de G.
Ribeiro os seguintes dizeres, ainda dados a público em novas edições:
(1)
Nota da Editora: Diante das comunicações e dos fenômenos surgidos após a
partida de Kardec, concluiu-se que não houve realmente vão simulacro,
como igualmente não houve simulacro de Jesus, após a sua morte, ao
pronunciar as palavras que foram registradas por Lucas (24:39): — “Sou
eu mesmo, apalpai-me e vede, porque um Espírito não tem carne nem osso,
como vedes que eu tenho.”
Os
inimigos de Kardec sempre insistem em que logo após a sua morte algo de
revolucionário apareceu em termos de fenômenos e de comunicações
mediúnicas. Todavia, para qualquer estudioso da codificação kardeciana
e, sobretudo, do vasto acervo enfeixado nos tomos da Revista Espírita, isto não é uma verdade absoluta.
A
F.E.B. não hesitou em usar o seu parque editorial para contestar o
pensamento de Kardec, e sucessivas diretorias hão dado aval a este
acinte, pois, como já disse, a contestação há sido reeditada. O texto
consignado em Lucas 24:39
não há de ser fiel. Em nada se assemelha aos demais relatos da
ressurreição de Jesus. Mesmo assim, a F.E.B. o ressalta para repreender
Kardec. Trata-se da antilógica rustenista de que as Escrituras
seriam infalíveis. Sob este império, os adeptos de Roustaing rejeitaram
também, ainda no século 19, a tese dos espíritas para explicar o
desaparecimento do corpo físico de Jesus no sepulcro:
O
corpo de Jesus era um corpo terrestre qual os nossos e, como tal,
produzido pelo concurso dos dois sexos; os anjos ou espíritos
superiores, tornando-o invisível, podiam subtraí-lo e o subtraíram do
sepulcro no momento preciso em que, despedaçados os selos que lhe tinham
sido apostos, a pedra que o fechava fora atirada para o lado.[1]
O fato, entretanto, é que esta hipótese decorre do verdadeiro n. 67 do cap. XV de A Gênese.
Kardec, ali, falou de fenômenos de transporte e de invisibilidade. E
quando recomenda, já em 1869, a leitura deste seu livro para
contra-argumentar a tese do corpo fluídico de Jesus, diz claramente no
seu Catálogo Racional das Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita: “Sobre essa teoria, vide A Gênese segundo o Espiritismo, capítulo XV, ns. 64 a 68”.[2]
Kardec menciona, portanto, para o capítulo XV de sua obra, a existência
dos números 64 a 68. Por que a quase totalidade das traduções registra
apenas os ns. 64 a 67? Curiosamente, a nova edição febiana de A Gênese,[3] assinada pelo mesmo tradutor do Catálogo supracitado, também só inclui os ns. 64 a 67.
Em 1884, na Revista Espiritismo,
de Gabriel Delanne, o biógrafo Henri Sausse já lançara questionamentos
acerca da não coincidência de duas edições que cotejara de A Gênese. Leymarie disse apenas que o fato se verificou por Sausse haver-se baseado numa edição anterior à definitiva.[4]
O incontestável, no exemplo aqui tomado, é que o verdadeiro n. 67 foi
retirado e o n. 68, renumerado. Por isso, não creio também na explicação
do antigo secretário de Kardec, A. Desliens,[5] que atribui ao próprio mestre lionês, já quinze anos após a morte deste, essas alterações cirúrgicas em A Gênese.
Como
quer que haja sido, isto demonstra que, se não foi G. Ribeiro o mentor
de tais modificações, outro decerto as fez bem antes dele. Consta que a
4.ª edição de A Gênese teve
sua distribuição impedida pela morte repentina de Kardec em 31 de março,
acabando a cargo da Livraria Espírita e das Ciências Psicológicas. Esta
edição, revisada, corrigida e aumentada pelo autor, é que contém o
texto definitivo. Impressa nas oficinas gráficas de Rouge Fréres e Cie.,
foi entregue em abril de 1869. Segundo F. Barrera, “uns meses mais
tarde sai à venda, sob a responsabilidade de M. A. Desliens, diretor da
Revista Espírita”, de comum acordo com “M. Bittard, gerente da livraria,
e M. Tailleur”.[6]
Desliens,
em 1885, estava pressionado, decerto, não só por H. Sausse (1884), mas
também pela ambiência de francos dissabores causados pelo cisma
rustenista, declarado abertamente em 1883, na obra Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários,
e que abrigava as mais ferinas ofensas e desleais críticas ao fundador
da filosofia espírita, a quem nunca Roustaing se dirigiu senão por
escrito.
O próprio Desliens confessa ao final de seu texto que, ali, quer “eliminar da família espírita uma causa de desunião”.[7] Só não nos explica por que as alterações identificadas em A Gênese têm
tanto em comum com o rustenismo. No que concerne ao exemplo aqui
tomado, Kardec não poderia eliminar justamente a explicação a que se
propôs sobre o desaparecimento do corpo de Jesus no túmulo, até porque o
mestre a menciona como integrante de sua obra, ao indicar a leitura
contra-argumentativa dos números 64 a 68 do cap. XV de A Gênese. F. Barrera, no sumário referente a este livro kardeciano, registra sem equívoco: “Desaparição do corpo de Jesus, 64-68”.[8]
Quanto
à nova edição febiana desta obra (10 mil exemplares, 02/2009), por
Evandro Noleto Bezerra, cujo nome estampa mesmo a primeira capa,
simplesmente não se sabe que edição francesa lhe serviu de base. Nada se
diz ali a este respeito. Também não registra, insisto, o verdadeiro n.
67 do cap. XV de A Gênese,
no que só seguiu a cartilha de G. Ribeiro. Isto, porém, não é de
admirar, pois E. Bezerra considera os trabalhos deste
último “irrepreensíveis”, como diz na introdução da sua Revista Espírita. Por que então os corrigiu nisto que naquilo? Qual dos dois é mais irrepreensível?
A edição comemorativa dos 150 anos de O Livro dos Espíritos, aliás, no seu índice geral, consegue até relacionar a palavra “colônia”, inexistente na obra; remete, porém, o leitor aos ns. 234 a
236, que disto em absoluto não falam, e sim de mundos, sem vida física,
servindo de habitação transitória a espíritos errantes. Intenta-se
forçar a confirmação da existência, incerta para muitos, das “colônias
espirituais”, como “Nosso Lar”, por exemplo.
O
Espírito São Luís referiu-se a algo que encontra um análogo nas
“colônias espirituais”. Reportou-se a “mundos intermediários”, que não
se confundem com os “transitórios” aqui acima comentados, porque são,
segundo o presidente espiritual da S.P.E.E., “viveiros da vida eterna”,
de onde os espíritos vêm à Terra para progredirem. Por sinal, o tradutor
febiano E. N. Bezerra preferiu registrar “centros de formação”, ainda
que “pépinières” signifique literalmente “viveiros”.[9]
O mesmo esforço inglório se verifica no atinente à expressão “centros de força”, listada como referente ao n. 140 de O Livro dos Espíritos,
onde Kardec só se reporta ao fluido vital repartido entre os
órgãos físicos, havendo mais nos que são “centros ou focos de movimento”
[centres ou foyers du mouvement]. Onde a locução “de força”? Ora! André
Luiz, por duvidosa analogia aos chacras hindus, fala de “centros de
força” no perispírito, mas isto absolutamente não corresponde ao assunto
em tela.
Na Revista Espírita
de março de 1868, Instruções dos Espíritos, a consoladora exortação que
um Espírito pôs nos lábios espirituais de Jesus foi alterada de
“Bem-aventurados os que conhecerem meu novo nome!” para “Bem-aventurados os que conhecerem meu nome de novo!”
Sempre advoguei a tese de que esse “novo nome” de Jesus é “O Espírito
de Verdade”. Terá ocorrido na tradução febiana algum erro material? O
fato é que “mon nouveau nom” nunca será “meu nome de novo”.
Tradutor, traidor. Já era a antiga dita latina.
Eis aqui abaixo, então, o verdadeiro n. 67 do cap. XV de A Gênese,
desde sempre ausente das edições da F.E.B. e das demais que, em vez de
traduções dos originais franceses, mais parecem ter oferecido ao
rentável mercado meras versões das publicações febianas, exceção feita a
esta honrosa citação:
67.
A que se reduziu o corpo carnal? Este é um problema cuja solução não se
pode deduzir, até nova ordem, exceto por hipóteses, pela falta de
elementos suficientes para firmar uma convicção. Essa solução, aliás, é
de uma importância secundária e não acrescentaria nada aos méritos do
Cristo, nem aos fatos que atestam, de uma maneira bem peremptória, sua
superioridade e sua missão divina. Não pode, pois, haver mais que
opiniões pessoais sobre a forma como esse desaparecimento se realizou,
opiniões que só teriam valor se fossem sancionadas por uma lógica
rigorosa, e pelo ensino geral dos espíritos; ora, até o presente,
nenhuma das que foram formuladas recebeu a sanção desse duplo controle.
Se os espíritos ainda não resolveram a questão pela unanimidade dos seus
ensinamentos, é porque certamente ainda não chegou o momento de
fazê-lo, ou porque ainda faltam conhecimentos com a ajuda dos quais se
poderá resolvê-la pessoalmente. Entretanto, se a hipótese de um roubo
clandestino for afastada, poder-se-ia encontrar, por analogia, uma
explicação provável na teoria do duplo fenômeno dos transportes e da
invisibilidade. (O Livro dos Médiuns, caps. IV e V).[10]
Este número de A Gênese consta igualmente de sua primeira edição, como pode ser verificado em fotocópia do original, disponível na internet.[11]
Nada
disto, porém, inocenta Guillon Ribeiro, porquanto ousou, sim, em função
do rustenismo, suas próprias alterações à obra de Kardec.
1 - Registrou, em A Gênese,
I, 56, que os ensinos espíritas “completam as noções vagas que SE
tinham da alma”, pois, como rustenista, era bibliólatra, e lhe pareceu
errada e injusta a expressão original de Kardec, que não tinha os mesmos
pruridos, afinal, as noções dadas por Jesus sobre a alma foram vagas
mesmo, em função de não poderem ser de outra forma. O fato é que
“complètent les notions vagues qu'IL avait données de l'âme” jamais
poderá ser traduzido de forma indeterminada.
[“ELE”, e não “SE”.]
2 - Chamou Jesus de “Senhor” e “Salvador” pelo mesmo motivo acima aduzido, distorcendo a postura kardeciana nos textos de A Gênese XV, 61; em XVII, 37, e no n. 671 de O Livro dos Espíritos.
Eu não confiaria tanto num tradutor que registra “voyaient JÉSUS et le
touchaient” como “viam o SENHOR e o tocavam”... “le sens de SES paroles”
como “o sentido das palavras DO SENHOR”... ou “SA doctrine” como
“doutrina DO SALVADOR”...
[“Jesus”, e não “Senhor”; “suas palavras”, e não “as palavras do Senhor”; “sua doutrina”, e não “a doutrina do Salvador”.]
3 - Acrescentou a inexistente palavra “moral” à expressão “absoluta perfeição”, no item VI da Introdução de O Livro dos Espíritos,
porquanto o rustenismo assegura que só a absoluta perfeição moral pode
ser atingida, não ocorrendo o mesmo, segundo ele, com a perfeição
intelectual. G. Ribeiro quis, portanto, corrigir Kardec. A nova tradução
de Evandro Bezerra acertou isso, apesar de este dizer, na Introdução da
Revista Espírita, que o trabalho de Guillon é irrepreensível.
[la perfection absolue: “a perfeição absoluta”, e não “a absoluta perfeição MORAL”.]
4 - Registrou que o arcanjo começou “por ser átomo”, e não “pelo átomo”, no n. 540 de O Livro dos Espíritos,
para acomodar o texto à noção monista substancial da queda angélica, de
P. Ubaldi, do qual G. Ribeiro foi tradutor e adepto entusiasta. Ora! Se
digo que o arcanjo começou PELO átomo, sou dualista. O arcanjo,
princípio inteligente, é espírito, e o átomo é matéria. Se digo que o
arcanjo começou por SER átomo, sou monista substancialista, e creio que o
arcanjo, o princípio inteligente, congelou-se no evento da queda, e
passou a ser o próprio átomo, a própria matéria mais não seria, assim,
que o espírito condensado pela queda. Alguns ubaldistas modernos já
citam essa tradução tendenciosa de Guillon para fundamentar o ubaldismo e
suas teses como compatíveis com o Espiritismo. De mais a mais, por que
traduzir “par l´atome” como “por ser átomo”?
[“começou PELO átomo”, e não “começou por SER átomo”.]
5 - Em O Evang. Seg. o
Espiritismo, XX, 5, a informação precisa de que “CHEGASTES ao tempo” se
tornou em “APROXIMA-SE o tempo” porque o rustenismo defende o “final de
ciclo” por catástrofes anunciadoras da volta de Cristo. Como “nada”
assim tinha ocorrido, Ribeiro quis corrigir agora o Espírito de Verdade.
“Vous touchez au temps” jamais poderá ser traduzido por “Aproxima-se o
tempo”.
[“atingistes, ou chegastes ao tempo”, e não “Aproxima-se o tempo”.]
Mas
não falemos apenas dos livros com chancela da “Casa-Máter”. Também
houve modificações na tradução adotada pelo I.D.E. para um texto da Revista Espírita
de abril de 1869, no qual Kardec, na verdade, diz que “a alma humana,
emanação divina, traz em si o germe ou princípio do bem [...]”.[12]
Contudo, o Sr. Salvador Gentile se arrogou a condição de mais douto em
matéria de Espiritismo do que o Codificador da doutrina e acresceu ao
original três palavras, transformando a sábia instrução do mestre nesta
aberração filosófica: “A alma humana, emanação divina, leva nela o germe
ou princípio do bem e do mal [...]”. (Grifo meu.)
Eis o francês: “L'âme humaine, émanation divine, porte en elle le germe ou principe du bien qui est son but final”. Ante
o pensamento completo de Kardec, não há dúvidas: “A alma humana,
emanação divina, traz em si o germe ou princípio do bem, que é o seu
objetivo final”. Como poderia o mal ser objetivo final da alma, sendo
esta proveniente de Deus?
De
tudo isto, resta o aparente bem de os originais franceses se
encontrarem disponíveis em meios de acesso digital pela internet a fora
e, pasmem, a F.E.B. e o I.D.E. contribuíram para tanto. Mas estejamos
atentos, pois esses “originais” não constituem imagens das edições
francesas, e sim digitalizações, o que pode ensejar erro material ou até
manipulação.[13]
[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 66.
[2] O Espiritismo na sua expressão mais simples e outros opúsculos de Kardec. F.E.B., Evandro Noleto Bezerra.
[3] 10 mil exemplares, 02/2009.
[4] Cf. BARRERA, F. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. São Paulo: U.S.E./Madras, 2003, p. 81.
[5] Revista Espírita, 1885, 15 de março, n.º 6, ano 28.º, pp. 169-171.
[6] Cf. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. São Paulo: U.S.E./Madras, 2003, p. 80.
[7] Revista Espírita, 1885, 15 de março, n.º 6, ano 28.º, p. 171.
[8] Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. São Paulo: U.S.E./Madras, 2003, p. 92.
[9] Cf. Revista Espírita. Julho/1862. Hereditariedade Moral. ALEIXO. Ensaios da Hora Extrema. Sobre André Luiz. 2.1 Aspectos Terrenais do Além-Túmulo. http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2010_09_02_archive.html.)
[10] Rio de Janeiro, Léon Denis - Gráfica e Editora, 2.ª ed., março de 2008, 1.ª tiragem, do 1.º ao 3.º milheiro. Do original francês: LA GENÈSE. Les Miracles et Les Prédictions Selon Le Spiritisme. Quatrième Édition, 1868.
[12] EDICEL. Vol. XII. p. 102-103. Trad.: Júlio Abreu Filho.
Fonte: O Primado de Kardec - http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-9-tradutor-traidor.html