segunda-feira, 24 de outubro de 2016

[RE] - Resposta ao Sr. Oscar Comettant

Por Allan Kardec

Senhor, 

Consagrastes o folhetim do Le Siècle de 27 de outubro último aos Espíritos e aos seus partidários. Apesar do ridículo que lançais sobre um problema muito mais sério do que pensais, apraz-me reconhecer que, atacando o princípio, guardais as conveniências pela urbanidade da forma, pois não é possível dizer com mais polidez que a gente não tem bom-senso. Assim, não confundirei o vosso espirituoso artigo com as grosseiras diatribes que dão uma triste ideia do bom gosto de seus autores, aos quais fazem justiça todas as pessoas educadas, sejam ou não nossas partidárias.

Não tenho o hábito de responder às críticas. Assim, teria deixado passar o vosso artigo, como tantos outros, se não tivesse recebido dos Espíritos o encargo, primeiramente de vos agradecer por vos terdes ocupado deles, e depois de vos dar um conselho. Compreendereis, senhor, que de mim mesmo não o faria. Desincumbo-me de minha tarefa. Eis tudo.

─ Como! – direis – Então os Espíritos se ocupam de um folhetim que escrevi sobre eles? É muita bondade de sua parte.

─ Certamente, pois estavam ao vosso lado quando escrevíeis. Um deles, que vos quer bem, chegou mesmo a tentar impedir que utilizásseis certas reflexões, que não eram por ele julgadas à altura da vossa sagacidade, temendo por vós a crítica, não dos Espíritos, com os quais vos ocupais muito pouco, mas daqueles que conhecem a extensão do vosso conhecimento.

Ficai certo de que eles estão por toda parte; que sabem tudo quanto se diz e se faz e que no momento em que lerdes estas linhas, estarão ao vosso lado, vos observando. Podeis dizer:

─ Não posso crer na existência desses seres que povoam o espaço mas que não vemos.

─ Credes no ar que não vedes e que, entretanto, nos envolve?

─ Isto é muito diferente. Eu creio no ar porque, embora não o veja, eu o sinto; eu o escuto rugir na tempestade e ressoar no tubo da lareira, e vejo os objetos por ele derrubados.

─ Pois então! Os Espíritos também se fazem ouvir; também movem os corpos sólidos, levantam-nos, transportam-nos, quebram-nos.

─ Ora esta, Sr. Allan Kardec! Apelai para a vossa razão. Como quereis que seres impalpáveis, ─ supondo que eles existam, o que só admitiria se os visse, ─ tenham tal poder? Como podem seres imateriais agir sobre a matéria? Isto não é razoável.

─ Credes na existência dessas miríades de animálculos que estão em vossa mão e que podem ser cobertos aos milhares pela ponta de uma agulha?

─ Sim, porque não os vejo com os olhos, mas o microscópio me permite vê-los.

─ Mas antes da invenção do microscópio, se alguém vos tivesse dito que tendes sobre a pele milhares de insetos que nela pululam; que uma límpida gota d’água encerra toda uma população; que os absorveis em massa com o ar mais puro que respirais, que teríeis respondido? Teríeis gritado contra o disparate e, se fôsseis folhetinista, não teríeis deixado de escrever um belo artigo contra os animálculos, o que não teria impedido que existissem. Hoje o admitis porque o fato é patente. Antes, porém, teríeis declarado que era coisa impossível.

Que há, pois, de mais irracional em crer que o espaço seja povoado de seres inteligentes que, embora invisíveis, não são microscópicos? Quanto a mim, confesso que a ideia de seres pequenos como uma parcela homeopática e, não obstante, providos de órgãos visuais, sensoriais, circulatórios, respiratórios, etc., me parece ainda mais extraordinária.

─ Concordo, mas ainda assim são seres materiais, são qualquer coisa, enquanto os vossos Espíritos, o que são? Não são nada. São seres abstratos, imateriais.

─ Para começar, quem vos disse que são imateriais? A observação, ─ peço-vos que peseis bem este vocábulo observação, que não quer dizer sistema, ─ a observação, dizia eu, demonstra que essas inteligências ocultas têm um corpo, um envoltório, invisível, é certo, mas não menos real. Ora, é por esse intermediário semimaterial que elas agem sobre a matéria. São apenas os corpos sólidos que têm força motriz? Não são, ao contrário, os corpos rarefeitos que possuem esse poder no mais alto grau, tal como o ar, o vapor, todos os gases, a eletricidade? Por que, então, o negareis à substância que constitui o envoltório dos Espíritos?

─ De acordo, mas se essas substâncias são invisíveis e impalpáveis em certos casos, a condensação pode torná-las visíveis e mesmo sólidas. Poderemos pegá-las, guardá-las, analisá-las, com o que sua existência ficaria irrecusavelmente demonstrada.

─ Ora! Essa é boa! Negais o Espírito porque não podeis metê-lo numa retorta e saber se são compostos de oxigênio, hidrogênio e nitrogênio. Dizei-me, por obséquio, se antes das descobertas da Química moderna eram conhecidas a composição do ar, da água, e as propriedades de uma porção de corpos invisíveis, de cuja existência nem suspeitávamos. Que teriam dito, então, a quem anunciasse todas as maravilhas que hoje admiramos? Tê-lo-iam tratado como charlatão e visionário. Suponhamos que vos caia nas mãos um livro de um cientista de então, negando todas essas coisas e que, além do mais, tivesse tentado demonstrar-lhes a impossibilidade. Diríeis: Eis um cientista bem pretensioso, que se pronunciou muito levianamente, decidindo sobre o que não sabia. Para sua reputação teria sido melhor abster-se. Numa palavra, faríeis um juízo muito pouco lisonjeiro de sua opinião. Então! Em alguns anos veremos o que se pensará daqueles que hoje tentam demonstrar que o Espiritismo é uma quimera.

É sem dúvida lamentável para certas pessoas, e para os amadores, que os Espíritos não possam ser postos dentro de um frasco, para serem observados à vontade. Não penseis, entretanto, que eles escapem aos nossos sentidos de maneira absoluta. Se a substância que constitui o seu envoltório é invisível em estado normal, também pode, em certos casos, como o do vapor, mas por outra causa, experimentar uma espécie de condensação ou, para ser mais exato, uma modificação molecular, que a torna momentaneamente visível e mesmo tangível. Podemos então vê-los, como nós nos vemos, tocá-los, apalpá-los. Eles podem pegar-nos e deixar marcas em nossos membros. Mas esse estado é temporário. Podem deixá-lo tão rapidamente quanto o tomaram, não em virtude de uma rarefação mecânica, mas por efeito da vontade, pois são seres inteligentes e não corpos inertes. Se a existência dos seres inteligentes que povoam o espaço está provada; se, como acabamos de ver, eles exercem ação sobre a matéria, que há de admirável em que possam comunicar-se conosco e transmitir seus pensamentos por meios materiais?

─ Se a existência desses seres for provada, sim. Aí, porém, é que está a questão.

─ Inicialmente, o importante é provar essa possibilidade. A experiência fará o resto. Se essa existência não está provada para vós, está para mim. Ouço daqui dizerdes intimamente: “Eis um argumento fraquíssimo.” Concordo que minha opinião pessoal tenha pouco valor, mas não estou só. Muitos outros, antes de mim, pensavam do mesmo modo. Eu não inventei nem descobri os Espíritos. Essa crença conta com milhões de aderentes, tanto ou mais inteligentes do que eu. Quem decidirá entre os que creem e os que não creem?

─ O bom-senso, direis vós.

─ Que seja. Acrescento, no entanto, que o tempo diariamente nos auxilia. Mas com que direito aqueles que não creem se arrogam o privilégio do bom-senso, quando principalmente os que acreditam são recrutados, não entre os ignorantes, mas entre gente esclarecida, cujo número cresce dia a dia? Eu o julgo por minha correspondência; pelo número de estrangeiros que me vêm ver; pela propagação de meu jornal, que completa o seu segundo ano e tem assinantes nas cinco partes do mundo, nas mais altas camadas da Sociedade e até nos tronos. Dizei-me, em sã consciência, se isto é a marcha de uma ideia oca, de uma utopia.

Constatando esse fato capital no vosso artigo, dizeis que ele ameaça tomar as proporções de um flagelo e acrescentais: “Já não tinha a espécie humana, ó bom Deus! tantas futilidades para lhe perturbar a razão, sem esta nova doutrina que vem apoderar-se de nosso pobre cérebro?”

Parece que não apreciais as doutrinas. Cada um tem o seu gosto. Nem todos gostam das mesmas coisas. Direi apenas que não sei a que papel intelectual o homem seria reduzido se, desde que se acha na face da Terra, não tivesse tido suas doutrinas que, fazendo-o refletir, o tiraram do estado passivo de bruto. Sem dúvida há doutrinas boas e más, justas e falsas, mas foi para discerni-las que Deus nos deu a razão.

Esquecestes uma coisa: a definição clara e precisa daquilo que classificais como futilidades. Há pessoas que assim qualificam todas as ideias de que não compartilham, mas vós tendes inteligência suficiente para acreditar que esta se tenha condensado apenas em vós. Há outras pessoas que dão esse nome a todas as ideias religiosas, e que olham a crença em Deus, na alma e na sua imortalidade, nas penas e recompensas futuras como boas somente para as beatas e para intimidar as crianças. Não conheço vossa opinião a respeito, mas do ponto de vista do vosso artigo, alguém poderia inferir que aceitais um pouco essas ideias. Quer delas partilheis, quer não, eu me permitirei dizer, com muitos outros, que nelas estaria o verdadeiro flagelo, caso se propagassem. Com o materialismo; com a crença de que morremos como os animais e depois de nós será o nada, o bem não terá nenhuma razão de ser e os laços sociais nenhuma consistência. É a sanção do egoísmo. A lei penal será o único freio a impedir que o homem viva à custa de outrem. Se assim for, com que direito puniremos o homem que mata o seu semelhante para apoderar-se de seus bens? Porque isso seria um mal, direis vós. Mas por que é um mal? E ele vos responderá: Depois de mim não há nada. Tudo se acaba. Nada receio. Quero viver aqui o melhor possível, e para isso, tomarei dos que têm. Quem mo proíbe? Vossa lei? Vossa lei terá razão se for mais forte, isto é, se me pegar. Mas se eu for mais esperto, se lhe escapar, a razão estará comigo.

Então vos perguntarei qual a Sociedade que poderá subsistir com semelhantes princípios?

Isto me recorda o seguinte fato:

Um senhor que, como se diz vulgarmente, não acreditava em Deus nem no diabo, e não o ocultava, notou que vinha sendo roubado por seu criado. Um dia pilhou-o em flagrante e lhe perguntou:

─ Como ousas, infeliz, tomar o que não te pertence? Não crês em Deus?

O criado pôs-se a rir e respondeu:

─ Por que haveria eu de crer, se vós também não credes? Por que tendes mais do que eu? Se eu fosse rico e vós pobre, quem vos impediria de fazer o mesmo que faço? Desta vez não tive sorte, eis tudo. De outra, procurarei agir melhor.

Aquele senhor teria ficado mais contente se seu criado não tivesse tomado a crença em Deus como uma futilidade. É a essa crença e às que da mesma decorrem que deve o homem a sua verdadeira segurança social, muito mais do que à severidade da lei, pois a lei não pode tudo alcançar. Se a crença se arraigasse no coração de todos, nada deveriam temer uns dos outros. Atacá-la de frente é soltar as rédeas a todas as paixões e destruir todos os escrúpulos. Foi isto que levou recentemente um sacerdote, quando pediram sua opinião sobre o Espiritismo, a dizer estas palavras sensatas: “O Espiritismo conduz à crença em alguma coisa. Ora, eu prefiro aqueles que acreditam em alguma coisa aos que em nada acreditam, pois estes não creem nem mesmo na necessidade do bem”.

Com efeito, o Espiritismo é a destruição do materialismo. É a prova patente e irrecusável daquilo que certas pessoas chamam futilidades, a saber: Deus, a alma, a vida futura feliz ou infeliz. Este flagelo, como vós o chamais, tem outras consequências práticas. Se soubésseis, como eu, quantas vezes ele fez voltar a calma a corações ulcerados pela mágoa; que doce consolação espalha sobre as misérias da vida; quanto acalma o ódio e impede os suicídios, zombaríeis menos.

Suponde que um de vossos amigos venha dizer-vos: “Eu estava desesperado; ia estourar os miolos, mas hoje, graças ao Espiritismo, sei quanto isto me custaria, e desisto.” Se outra pessoa vos disser: “Eu invejava o vosso mérito e a vossa superioridade. O vosso sucesso tirava-me o sono. Queria vingar-me, derrotar-vos, arruinar-vos. Queria, mesmo, matar-vos. Confesso que correstes grande perigo. Hoje, porém, que sou espírita, compreendo tudo quanto esses sentimentos possuem de ignóbil e os abjuro. Em vez de vos fazer mal, venho prestar-vos um obséquio.” Provavelmente diríeis: “Ainda bem que existe algo de bom nessa loucura”.

O que estou dizendo, senhor, não visa convencer-vos, nem vos converter às minhas ideias. Tendes convicções que vos bastam e que, para vós, resolvem todas as questões sobre o futuro. É, pois, muito natural que as conserveis. Mas vós me apresentais aos vossos leitores como o propagador de um flagelo. Eu precisava mostrar-lhes, pois, que seria desejável que nenhum flagelo produzisse um mal maior, a começar pelo materialismo. Conto com a vossa imparcialidade para transmitir-lhes a minha resposta.

Então direis:

─ Mas eu não sou materialista. Pode-se muito bem não ter essa opinião e não crer nas manifestações dos Espíritos.

─ Concordo. Então se é espiritualista sem ser espírita. Se me equivoquei quanto à vossa maneira de ver, é porque tomei ao pé da letra a profissão de fé do fim do vosso artigo. Dizeis: “Creio em duas coisas: no amor dos homens por tudo quanto é maravilhoso, mesmo quando esse maravilhoso é absurdo, e no editor que me vendeu o fragmento da sonata ditada pelo Espírito de Mozart, pelo preço de 2 francos.”

Se toda a vossa crença se limita a isso, ela me parece ser a prima irmã do ceticismo. Mas aposto que credes em algo mais do que no Sr. Ledoyen, que vos vendeu por 2 francos um fragmento de sonata. Credes no produto de vossos artigos, que, segundo presumo, salvo engano meu, não ofereceis mais pelo amor de Deus do que faz o Sr. Ledoyen com os seus livros. Cada um tem o seu ofício. O Sr. Ledoyen vende livros. O literato vende prosa e verso. Nosso pobre mundo não está suficientemente adiantado para que possamos morar, comer e vestir-nos de graça. Talvez um dia os proprietários, os alfaiates, os açougueiros, os padeiros estejam bastante esclarecidos para compreender que é ignóbil para eles pedir dinheiro. Então os livreiros e os literatos serão arrastados pelo exemplo.

─ Com tudo isto, não me destes o conselho que me dão os Espíritos.

─ Ei-lo: É prudente não nos pronunciarmos muito levianamente sobre aquilo que não conhecemos. Imitemos a sábia reserva do sábio Arago, que dizia, a propósito do magnetismo animal: “Eu não poderia aprovar o mistério que hoje fazem os cientistas sérios quando vão assistir às experiências de sonambulismo. A dúvida é prova de modéstia e raramente prejudica o progresso das ciências. Já o mesmo não podemos dizer da incredulidade. Aquele que, fora das matemáticas puras, pronunciar o vocábulo impossível, denota falta de prudência. A reserva é um dever, principalmente quando se trata do organismo animal”. (Notícia sobre Bailly).

Respeitosamente,

ALLAN KARDEC

Revista Espírita, Dezembro de 1859

domingo, 23 de outubro de 2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

[RE] - O músculo que range

Por Allan Kardec

Os adversários do Espiritismo acabam de fazer uma descoberta que deve contrariar bastante os Espíritos batedores. É para eles um desses golpes do qual dificilmente se reabilitarão. Com efeito, que devem pensar esses pobres Espíritos da terrível cutilada com que os atingiram o Sr. Schiff, depois o Sr. Jobert (de Lamballe) e por fim o Sr. Velpeau? Parece-me vê-los muito embaraçados, resmungando mais ou menos assim: “Ora veja, meu caro, estamos em palpos de aranha! Estamos naufragados! Não havíamos contado com a Anatomia, que descobriu as nossas artimanhas. Positivamente não podemos viver num país onde há gente que enxerga tão longe!”

─ Vamos, senhores basbaques, que acreditastes em todas essas histórias do arco da velha; impostores que nos quisestes enganar, levando-nos a admitir a existência de seres que não vemos; ignorantes que admitis a existência de alguma coisa que escapa ao nosso escalpelo, inclusive a vossa alma. E vós todos, escritores espíritas ou espiritualistas, mais ou menos espirituosos, inclinai-vos e reconhecei que não passais de iludidos, de charlatães e até de marotos e de imbecis. Esses senhores vos deixam a escolha, porque aqui está a luz, a verdade pura:

“ACADEMIA DE CIÊNCIAS (Sessão de 18 de abril de 1859). 

DA INVOLUNTÁRIA CONTRAÇÃO MUSCULAR RÍTMICA.

O Sr. Jobert (de Lamballe) comunica um fato curioso da involuntária contração rítmica do pequeno peroneal lateral direito, que confirma a opinião do Sr. Schiff, relativamente ao fenômeno oculto dos Espíritos batedores.
“A senhorinha X..., de 14 anos, forte, bem constituída, desde os 6 anos é afetada de movimentos involuntários regulares do pequeno músculo peroneal lateral direito e de batidas, que podem ser escutadas, por detrás do maléolo externo direito, com a regularidade do pulso. Apareceram pela primeira vez na perna direita, à noite, acompanhados de dor muito forte. Depois de pouco tempo, o pequeno peroneal lateral esquerdo foi atingido por uma afecção da mesma natureza, posto que de menor intensidade.

“O efeito desses batimentos é o de provocar dor; de produzir insegurança ao caminhar e até de provocar quedas. A jovem doente declarou-nos que a extensão do pé e a compressão exercida sobre certos pontos do pé e da perna chegam a pará-los, embora continue sentindo dores e fadiga no membro.

“Quando essa criatura interessante se nos apresentou, eis o estado em que a encontramos. Era fácil de constatar, ao nível do maléolo externo direito, no bordo superior dessa saliência óssea, um batimento regular, acompanhado de uma saliência passageira e de um levantamento das partes moles da região, os quais se apresentavam com um ruído seco, após cada contração muscular. Esse ruído era ouvido no leito, fora do leito e a uma distância bem considerável do lugar onde a moça repousava. Notável por sua regularidade e pela nitidez dos estalos, o ruído a acompanhava por toda parte. Auscultando o pé, a perna e o maléolo, distinguia-se um choque incômodo, que atingia todo o trajeto percorrido pelo músculo, tal qual um golpe que se transmite de uma a outra extremidade de uma viga. Por vezes o ruído se assemelhava a um atrito, a uma raspagem, quando as contrações eram menos intensas. Esses mesmos fenômenos se repetiam sempre, estivesse a doente de pé, sentada ou deitada, a qualquer hora do dia ou da noite em que a examinássemos.

“Se estudarmos o mecanismo desses batimentos e se, para maior clareza, descompusermos cada batimento em dois tempos, veremos que:

“No primeiro tempo o tendão do pequeno perônio lateral se desloca, saindo da goteira e por isso levantando o grande perônio lateral e a pele.

“No segundo tempo, realizado o fenômeno de contração, seu tendão se relaxa, retorna à goteira e, batendo nela, produz o ruído seco e sonoro de que acabamos de falar.

“Repetia-se, por assim dizer, de segundo em segundo, e cada vez o pequeno artelho sofria um abalo e a pele que recobria o quinto metatarso era levantada pelo tendão. Cessava quando o pé estava fortemente estendido. Cessava ainda quando se exercia pressão sobre o músculo ou sobre a bainha dos perônios.

“Nestes últimos anos, os jornais franceses e estrangeiros têm falado muito de ruídos semelhantes a marteladas, ora regulares, ora afetando um ritmo particular, e que se produziam em volta de certas pessoas deitadas em seu leito.

“Os charlatães se apoderaram desses fenômenos singulares, cuja realidade, aliás, é atestada por testemunhas fidedignas, e tentaram relacioná-los com a intervenção de uma causa sobrenatural, do que se serviram para explorar a credulidade pública.

“A observação da senhorinha X mostra como, sob a influência da contração muscular, podem os tendões deslocados, no momento em que entram nas goteiras ósseas, produzir batimentos que, para certas pessoas, anunciam a presença de Espíritos batedores.

“Com o exercício, qualquer pessoa pode adquirir a faculdade de produzir à vontade semelhantes deslocamentos dos tendões e batimentos secos que se ouvem à distância.

“Repelindo qualquer ideia de intervenção sobrenatural e notando que esses batimentos e esses ruídos estranhos se passavam sempre ao pé do leito dos indivíduos agitados pelos Espíritos, o Sr. Schiff se perguntou se a sede desses ruídos não estaria neles próprios, e não exteriormente. Seus conhecimentos anatômicos levaram-no a pensar que bem podia ser na perna, na região peroneal onde se acham uma superfície óssea, tendões e uma corrediça comum.

“Tendo-se arraigado em seu espírito essa maneira de ver, fez ele experiências e ensaios em si mesmo, os quais o convenceram de que o ruído tinha sua sede por detrás do maléolo externo e na corrediça dos tendões do perônio.

“Em breve o Sr. Schiff foi capaz de executar ruídos voluntários, regulares, harmoniosos e, perante um grande número de pessoas (cinquenta testemunhas), pôde imitar os prodígios dos Espíritos batedores, com ou sem sapatos, de pé ou deitado.

“O Sr. Schiff concluiu que todos esses ruídos se originam no tendão do grande perônio, quando passa na goteira peroneal, e acrescenta que eles coexistem com um adelgaçamento ou ausência da bainha comum no grande e no pequeno perônio.

Quanto a nós, admitindo inicialmente que todos esses batimentos são produzidos pela queda do tendão na superfície óssea peroneal, pensamos, entretanto, que não há necessidade de uma anomalia da bainha para que isto aconteça. Basta a contração do músculo, o deslocamento do tendão e sua volta à goteira para dar-se o ruído. Além disso, só o pequeno perônio é agente do citado ruído. Com efeito, ele afeta uma direção mais reta que o grande perônio, o qual sofre vários desvios em seu trajeto; está situado profundamente na goteira; recobre inteiramente a goteira óssea, de onde é natural concluir que o ruído é produzido pelo choque desse tendão sobre as partes sólidas da goteira. Ele apresenta fibras musculares até a entrada do tendão na goteira comum, ao passo que o contrário se dá com o grande perônio.

“O ruído é de intensidade variável e podem realmente distinguir-se as suas várias nuanças. É assim que, desde o ruído retumbante, que se ouve à distância, encontramos variedades de ruídos, de atritos, de serra, etc.

“Pelo método subcutâneo, fizemos incisões sucessivamente através do corpo do pequeno perônio lateral direito e do corpo do mesmo músculo do lado esquerdo de nossa doente e mantivemos os membros imobilizados por meio de um aparelho. Feita a sutura, as funções dos dois membros foram restabelecidas sem qualquer traço dessa singular e rara afecção.

“Sr. Velpeau. Os ruídos de que acaba de tratar o Sr. Jobert em seu interessante comunicado parecem ligados a uma questão muito ampla. Com efeito, observam-se os mesmos ruídos em inúmeras regiões. A anca, a espádua, a face interna do pé frequentemente lhe servem de sede. Observei, entre outros, o caso de uma senhora que por meio de certos movimentos de rotação da coxa produzia uma espécie de música suficientemente nítida para ser ouvida de um ao outro lado da sala. O tendão da parte longa do bíceps braquial a produz facilmente, saindo de sua bainha, quando os feixes fibrosos que o retêm naturalmente se relaxam e se rompem. Dá-se o mesmo com o músculo posterior da perna ou com o músculo flector do artelho, por trás do maléolo interno. Como bem o compreenderam os senhores Schiff e Jobert, tais ruídos se explicam pela fricção ou pelos sobressaltos dos tendões nas ranhuras ou contra os bordos de superfícies sinoviais. Consequentemente, são possíveis numa infinidade ou nas vizinhanças de uma porção de órgãos. Ora claros e sonoros, ora surdos e obscuros, por vezes úmidos, outras vezes secos, variam extremamente de intensidade.

“Esperemos que o exemplo dado a respeito pelos senhores Schiff e Jobert leve os fisiologistas ao estudo desses vários ruídos e que um dia eles deem a explicação racional dos fenômenos incompreendidos ou até agora atribuídos a causas ocultas e sobrenaturais.

“O Sr. Jules Cloquet, em apoio às observações do Sr. Velpeau sobre os ruídos anormais que podem produzir os tendões nas várias regiões do corpo, cita o exemplo de uma moça de 16 a 18 anos que lhe foi apresentada no Hospital São Luís, numa época em que os senhores Velpeau e Jobert estavam vinculados a esse mesmo estabelecimento. O pai da moça, que se intitulava pai de um fenômeno, espécie de saltimbanco, esperava tirar partido de sua filha, exibindo-a publicamente. Informou que a filha tinha no ventre um movimento de pêndulo. A moça estava perfeitamente conformada. Por um ligeiro movimento de rotação na região lombar da coluna vertebral, ela produzia estalos muito fortes, mais ou menos regulares, segundo o ritmo de ligeiros movimentos que ela imprimia à parte inferior do torso. Esses ruídos anormais podiam ser ouvidos muito distintamente a mais de 25 pés de distância, e se assemelhavam ao ruído das antigas assadeiras de carne. Dependiam da vontade da moça e pareciam estar situados nos músculos da região lombo-dorsal da coluna vertebral.”

Este artigo do L’Abeille médicale, que nos julgamos no dever de transcrever na íntegra, para edificação de nossos leitores, e a fim de não sermos acusados de pretender fugir a certos argumentos, foi reproduzido, com algumas variantes, em diversos jornais, acompanhado dos qualificativos costumeiros.

Não é nosso hábito revelar as grosserias. Passamos por cima, porque o nosso bom-senso nos diz que nada se prova com tolices e com injúrias, por mais sábio que se seja. Se o artigo em questão se tivesse limitado a essas banalidades, que nem sempre têm o cunho da urbanidade e da educação, não o citaríamos. Mas ele encara a questão do ponto de vista científico. Fatiga-nos com demonstrações, com as quais pretende pulverizar-nos. Vejamos, pois, se estamos realmente mortos pelo decreto da Academia de Ciências ou se temos alguma chance de viver como o pobre e louco Fulton, cujo sistema o Instituto declarou um sonho vazio e impraticável, quando apenas privou a França da iniciativa do navio a vapor. Quem sabe quais as consequências que tal força, nas mãos de Napoleão I, poderia ter tido nos ulteriores acontecimentos!

Faremos um ligeiro reparo sobre a qualificação de charlatães, atribuída aos partidários das ideias novas. Ela nos parece um tanto ousada, quando se aplica a milhões de criaturas que dessas ideias não tiram nenhum lucro e quando alcança os mais altos planos da escala social. Esquecem que em poucos anos o Espiritismo fez incríveis progressos em todas as partes do mundo; que se espalha entre os ignorantes, mas também entre os letrados; que em suas fileiras conta um bom número de médicos, de magistrados, de eclesiásticos, de artistas, de homens de letras, de altos funcionários ─ pessoas às quais geralmente se atribuem algumas luzes e um pouco de bom-senso. Ora, confundi-los no mesmo anátema e remetê-los sem-cerimoniosamente para os hospícios é agir com muita petulância.

Direis, entretanto: Trata-se de gente de boa-fé. São vítimas de uma ilusão. Não negamos o efeito; apenas contestamos a causa que lhe atribuís. A ciência acaba de descobrir a verdadeira causa; torna essa causa conhecida e, por isto mesmo, faz desabar todo esse andaime místico de um mundo invisível que pode seduzir as imaginações exaltadas, mas sinceras.

Não temos a pretensão de ser tido como sábio, e ainda menos ousaríamos colocar-nos no mesmo nível de nossos ilustres adversários. Diremos apenas que os nossos estudos pessoais de Anatomia e de Ciências físicas e naturais, que tivemos a honra de ensinar, nos permitem compreender sua teoria e que de modo algum nos sentimos aturdido por essa avalanche de vocábulos técnicos. Os fenômenos de que falam nos são perfeitamente conhecidos. Em nossas observações sobre os efeitos atribuídos aos seres invisíveis, tivemos o cuidado de não negligenciar uma causa tão patentemente desprezível. Quando se apresenta um fato, não nos contentamos com uma observação apenas. Queremos vê-lo por todos os ângulos, sob todas as faces, e antes de aceitar uma teoria, verificamos se ela abarca todas as circunstâncias e se nenhum fato desconhecido poderá contradizê-la. Numa palavra, se ela resolve todas as questões. Eis o preço da verdade.

Senhores, vós admitis perfeitamente que esta maneira de proceder é absolutamente lógica. Muito bem. Não obstante todo o respeito devido ao vosso saber, há algumas dificuldades na aplicação do vosso sistema ao que se costuma chamar Espíritos batedores.

A primeira é que pode-se considerar pelo menos singular que essa faculdade até aqui excepcional e considerada como um caso patológico, que o Sr. Jobert (de Lamballe) qualifica de rara e singular afecção, de repente se tenha tornado tão comum. É verdade que o Sr. de Lamballe diz que todos podem adquiri-la pelo exercício. Mas como também diz que é acompanhada de dor e fadiga, o que é perfeitamente natural, é de convir que seja necessária uma forte dose de vontade de mistificar para fazer seu músculo estalar durante duas ou três horas seguidas, sem nenhum lucro, com o único fito de divertir algumas pessoas. Falemos sério. Isto é mais grave, porque se trata de Ciência.

Esses senhores que descobriram esta maravilhosa propriedade do longo perônio não imaginam tudo quanto podem fazer esses músculos. Ora, aqui está um belo problema a resolver. Os tendões deslocados não batem apenas nas goteiras ósseas.

Por um efeito realmente singular, batem também nas portas, nas paredes, nos tetos, e tudo isto à vontade, exatamente nos pontos designados. Eis algo de mais forte: a Ciência estava longe de suspeitar de todas as virtudes desse músculo que range. Ele tem o poder de levantar uma mesa sem tocá-la; de fazê-la bater com os pés, andar pela sala e de manter-se no espaço sem ponto de apoio; de abri-la e fechá-la! E imaginai a sua força! De quebrá-la na queda.

Pensais que se trata de uma mesa frágil e leve como uma pena, que a gente levanta com um sopro? Que ilusão! Trata-se de mesas pesadas e maciças, de cinquenta a sessenta quilos, que obedecem às mocinhas e às crianças. Mas, dirá o Sr. Schiff, eu jamais vi tais prodígios. Isto é fácil de compreender. É que só quis ver pernas.

Terá o Sr. Schiff dado às suas ideias a necessária independência? Estava isento de qualquer prevenção? Temos o direito de duvidar, e não somos nós que o dizemos.

É o Sr. Jobert. Segundo ele, o Sr. Schiff, ao falar de médiuns, se perguntou se a sede de tais ruídos não estaria de preferência neles, e não fora deles. Seus conhecimentos de Anatomia o levaram a pensar que bem podia ser na perna. Estando este modo de ver bem arraigado em seu espírito, etc. Assim, conforme a confissão do Sr. Jobert, o Sr. Schiff tomou como ponto de partida não os fatos, mas a sua própria ideia, sua ideia preconcebida e bem arraigada. Daí as pesquisas num sentido exclusivo e, consequentemente, uma teoria exclusiva, que explica perfeitamente o fato que ele viu, mas não explica os que não viu. E por que não os viu?

Porque em seu pensamento só havia um ponto de partida verdadeiro e apenas uma explicação verdadeira. Partindo daí, todo o resto deveria ser falso e não mereceria exame. Disso resultou que, no ardor de atingir os médiuns, errou o golpe. Senhores, pensais conhecer todas as propriedades do grande perônio apenas porque o surpreendestes a tocar violão na bainha? Ora esta! Temos coisa muito diferente a registrar nos anais da Anatomia. Pensastes que o cérebro fosse a sede do pensamento. Errado! Pode-se pensar pelo tornozelo. As batidas dão prova de inteligência. Logo, se essas batidas vêm exclusivamente do perônio, quer do grande perônio, segundo o Sr. Schiff, quer do pequeno, segundo o Sr. Jobert (o que exigiria um acordo entre ambos), é que o perônio é inteligente.

Isto nada tem de admirável. Fazendo estalar o seu músculo à vontade, executará aquilo que quiserdes: imitará a serra, o martelo, baterá sinais de atenção ou o compasso de uma música que se pedir. Vá lá, que seja, mas quando o ruído responde a uma coisa que o médium ignora absolutamente; quando vos revela esses pequenos segredos que só vós conheceis, esses segredos que a gente gostaria de enterrar profundamente, é preciso convir que o pensamento vem de outra parte do cérebro.

De onde virá então? Ora essa! Do grande perônio. E isto não é tudo. Ele também é poeta, pois esse grande perônio faz versos encantadores, mesmo que jamais em sua vida o médium tenha sabido fazê-los. Ele é poliglota, pois dita coisas realmente muito sensatas, em línguas de que o médium ignora a mínima palavra. Ele é músico... nós bem o sabemos, pois o Sr. Schiff fez o seu executar sons harmoniosos, com ou sem sapatos, diante de cinquenta pessoas. Sim, mas também compõe. Ora, Sr. Dorgeval, o senhor, que ultimamente nos deu uma encantadora sonata, acredita piamente que a mesma tenha sido ditada pelo Espírito de Mozart? Que esperança!

Era o seu grande perônio que tocava piano. Na verdade, senhores médiuns, os senhores não suspeitavam que houvesse tanto espírito em seus calcanhares. Honra seja feita aos autores de uma tal descoberta. Que os seus nomes sejam escritos em letras garrafais, para a edificação da posteridade e para a honra de sua memória!

Dirão que brincamos com coisas sérias, pois brincadeiras não são raciocínios. De fato. Não menos racionais que tolices e grosseria.

Confessando nossa ignorância junto a esses senhores, aceitamos a sua sábia demonstração e a tomamos muito a sério. Pensávamos que certos fenômenos fossem produzidos por seres invisíveis, que se diziam Espíritos. Pode ser que nos tenhamos enganado. Como procuramos a verdade, não temos a tola pretensão de emperrar numa ideia que de modo tão peremptório nos demonstram ser falsa. A partir do momento em que o Sr. Jobert, por uma incisão subcutânea, eliminou os Espíritos, já não há mais Espíritos. Uma vez que, diz ele, todos os ruídos vêm do perônio, é preciso crê-lo e admitir todas as consequências. Assim, quando as batidas são dadas na parede ou no teto, ou o perônio lhes corresponde ou a parede tem um perônio.

Quando as batidas ditam versos por uma mesa que bate com o pé, de duas uma: ou a mesa é poetisa, ou tem um perônio. Isto nos parece lógico. Vamos mesmo mais longe. Um oficial nosso conhecido, fazendo experiências espíritas, recebeu um dia, por mão invisível, um par de bofetadas tão bem aplicadas que ainda as sentia duas horas depois. Como provocar uma reparação? Se isso acontecesse ao Sr. Jobert, ele não se inquietaria. Diria apenas ter sido esbofeteado pelo grande perônio.

Eis o que, a respeito, lemos no jornal La Mode, de 1.º de maio de 1859:

“A Academia de Medicina continua a cruzada dos espíritos positivistas contra todo gênero de maravilha. Depois de ter, com justa razão, mas um tanto desajeitadamente, fulminado o famoso doutor negro, pelo órgão do Sr. Velpeau, eis que acaba de ouvir o Sr. Jobert (de Lamballe) o qual revela, em pleno Instituto, o segredo daquilo que ele chama a grande comédia dos Espíritos batedores, representada com tanto sucesso nos dois hemisférios.

“Segundo o célebre cirurgião, todo toc-toc, todo pan-pan que de boa-fé faz arrepiar aqueles que os escutam; esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados sucessivamente e como que cadenciados, precursores da chegada, sinais certos da presença dos habitantes do outro mundo, são simplesmente o resultado de um movimento imprimido a um músculo, um nervo, um tendão! Trata-se de uma bizarria da Natureza, habilmente explorada para produzir, sem que se possa constatar, essa música misteriosa que encantou e seduziu tanta gente.

“A sede da orquestra é na perna; é o tendão do perônio, tocando na bainha, que faz todos esses ruídos que são ouvidos sob as mesas ou à distância, à vontade do prestidigitador.

“De minha parte, duvido muito que o Sr. Jobert tenha posto a mão, como ele acredita, no segredo daquilo que ele mesmo chama “uma comédia” e os artigos que foram publicados neste mesmo jornal, por nosso confrade Sr. Escande, sobre os mistérios do mundo invisível, me parecem apresentar a questão com amplitude muito mais sincera e filosófica, no verdadeiro sentido da palavra. “Se, porém, os charlatães de todos os matizes são insuportáveis com o seu toque de caixa, temos de convir que esses senhores sábios por vezes não o são menos, com o apagador que pretendem aplicar sobre tudo aquilo que brilha fora dos candelabros oficiais.

“Eles não compreendem que a sêde do maravilhoso, que devora a nossa época, tem exatamente como causa o excesso de positivismo para onde certos espíritos quiseram arrastá-la. A alma humana sente necessidade de crer, de admirar e de contemplar o infinito. Trabalharam para tapar as janelas que o catolicismo lhe abria. Ela olha pelas claraboias, sejam estas quais forem”.

HENRY DE PÈNE

“Pedimos licença ao nosso distinto amigo Sr. Henry de Pène para uma observação. Ignoramos quando o Sr. Jobert fez esta imortal descoberta e qual o dia memorável em que a comunicou ao Instituto. O que sabemos é que esta original explicação já havia sido dada por outros. Em 1854, o Doutor Rayer, célebre clínico, que então não deu mostras de grande perspicácia, também apresentou ao Instituto um alemão cuja habilidade, na sua opinião, dava a chave de todos os knokings e rappings23 dos dois mundos. Como agora, tratava-se de deslocamento de um dos tendões musculares da perna, chamado o grande perônio. A demonstração foi feita numa sessão e a Academia exprimiu o seu reconhecimento por tão interessante comunicação. Alguns dias depois, um professor substituto da Faculdade de Medicina consignou o fato no Constitutionel e teve a coragem de acrescentar que “enfim os cientistas” se tinham pronunciado e o mistério estava “esclarecido”. Isto não impediu que o mistério persistisse e aumentasse, apesar da Ciência que, ao recusarse a fazer experiências, contenta-se em atacá-lo com explicações ridículas e burlescas, como estas a que acabamos de nos referir.

Pelo respeito devido ao Sr. Jobert (de Lamballe), apraz-nos pensar que se lhe tenha atribuído uma experiência que absolutamente não lhe pertence. Algum jornal, à cata de novidades, terá encontrado nalgum recanto esquecido de sua pasta, a antiga comunicação do Sr. Rayer e a terá ressuscitado, publicando-a sob seu patrocínio, a fim de variar um pouco. Mutato nomine, de te fabula narratur. “É desagradável, por certo, mas ainda melhor do que se o jornal tivesse dito a verdade”.
A. ESCANDE.

Revista Espírita - Junho de 1859 (Da Kardecpedia)

domingo, 18 de setembro de 2016

[OLM] - Da identidade dos Espíritos - Modo de se distinguirem os bons dos maus Espíritos

De O Livro dos Médiuns, por Allan Kardec

262. Se a identidade absoluta dos Espíritos é, em muitos casos, uma questão acessória e sem importância, o mesmo já não se dá com a distinção a ser feita entre bons e maus Espíritos. Pode ser-nos indiferente a individualidade deles; suas qualidades, nunca. Em todas as comunicações instrutivas, é sobre este ponto, conseguintemente, que se deve fixar a atenção, porque só ele nos pode dar a medida da confiança que devemos ter no Espírito que se manifesta, seja qual for o nome sob que o faça. É bom, ou mau, o Espírito que se comunica? Em que grau da escala espírita se encontra? Eis as questões capitais. (Veja-se: “Escala espírita”, em O Livro dos Espíritos, nº 100.)

263. Já dissemos que os Espíritos devem ser julgados, como os homens, pela linguagem de que usam. Suponhamos que um homem receba vinte cartas de pessoas que lhe são desconhecidas; pelo estilo, pelas idéias, por uma imensidade de indícios, enfim, verificará se aquelas pessoas são instruídas ou ignorantes, polidas ou mal-educadas, superficiais, profundas, frívolas, orgulhosas, sérias, levianas, sentimentais, etc. 

Assim, também, com os Espíritos. Devemos considerá-los correspondentes que nunca vimos e procurar conhecer o que pensaríamos do saber e do caráter de um homem que dissesse ou escrevesse tais coisas. Pode estabelecer-se como regra invariável e sem exceção que —a linguagem dos Espíritos está sempre em relação com o grau de elevação a que já tenham chegado. Os Espíritos realmente superiores não só dizem unicamente coisas boas, como também as dizem em termos isentos, de modo absoluto, de toda trivialidade. Por melhores que sejam essas coisas, se uma única expressão denotando baixeza as macula, isto constitui um sinal indubitável de inferioridade; com mais forte razão, se o conjunto do ditado fere as conveniências pela sua grosseria. A linguagem revela sempre a sua procedência, quer pelos pensamentos que exprime, quer pela forma, e, ainda mesmo que algum Espírito queira iludir-nos sobre a sua pretensa superioridade, bastará conversemos algum tempo com ele para a apreciarmos.

264. A bondade e a afabilidade são atributos essenciais dos Espíritos depurados. Não têm ódio, nem aos homens, nem aos outros Espíritos. Lamentam as fraquezas, criticam os erros, mas sempre com moderação, sem fel e sem animosidade. Admita-se que os Espíritos verdadeiramente bons não podem querer senão o bem e dizer senão coisas boas e se concluirá que tudo o que denote, na linguagem dos Espíritos, falta de bondade e de benignidade não pode provir de um bom Espírito.

265. A inteligência longe está de constituir um indício certo de superioridade, porquanto a inteligência e a moral nem sempre andam emparelhadas. Pode um Espírito ser bom, afável, e ter conhecimentos limitados, ao passo que outro, inteligente e instruído, pode ser muito inferior em moralidade. 

É crença bastante generalizada que, interrogando-se o Espírito de um homem que, na Terra, foi sábio em certa especialidade, com mais segurança se obterá a verdade. Isto é lógico; entretanto, nem sempre é o que se dá. A experiência demonstra que os sábios, tanto quanto os demais homens, sobretudo os desencarnados de pouco tempo, ainda se acham sob o império dos preconceitos da vida corpórea; eles não se despojam imediatamente do espírito de sistema. Pode, pois, acontecer que, sob a influência das ideias que esposaram em vida e das quais fizeram para si um título de glória, vejam com menos clareza do que supomos. Não apresentamos este princípio como regra; longe disso. Dizemos apenas que o fato se dá e que, por conseguinte, a ciência humana que eles possuem não constitui sempre uma prova da sua infalibilidade, como Espíritos.

266. Em se submetendo todas as comunicações a um exame escrupuloso, em se lhes perscrutando e analisando o pensamento e as expressões, como é de uso fazer-se quando se trata de julgar uma obra literária, rejeitando-se, sem hesitação, tudo o que peque contra a lógica e o bom-senso, tudo o que desminta o caráter do Espírito que se supõe ser o que se está manifestando, leva-se o desânimo aos Espíritos mentirosos, que acabam por se retirar, uma vez fiquem bem convencidos de que não lograrão iludir. Repetimos: este meio é único, mas é infalível, porque não há comunicação má que resista a uma crítica rigorosa.

Os bons espíritos nunca se ofendem com esta, pois que eles próprios a aconselham e porque nada têm que temer do exame. Apenas os maus se formalizam e procuram evitá-lo, porque tudo têm a perder. Só com isso provam o que são. Eis aqui o conselho que a tal respeito nos deu São Luís:

“Qualquer que seja a confiança legítima que vos inspirem os Espíritos que presidem aos vossos trabalhos, uma recomendação há que nunca será demais repetir e que deveríeis ter presente sempre na vossa lembrança, quando vos entregais aos vossos estudos: é a de pesar e meditar, é a de submeter ao cadinho da razão mais severa todas as comunicações que receberdes; é a de não deixardes de pedir as explicações necessárias a formardes opinião segura, desde que um ponto vos pareça suspeito, duvidoso ou obscuro.”

267. Podem resumir-se nos princípios seguintes os meios de se reconhecer a qualidade dos Espíritos:

1º Não há outro critério, senão o bom-senso, para se aquilatar do valor dos Espíritos. Absurda será qualquer fórmula que eles próprios deem para esse efeito e não poderá provir de Espíritos superiores.

2º Apreciam-se os Espíritos pela linguagem de que usam e pelas suas ações. Estas se traduzem pelos sentimentos que eles inspiram e pelos conselhos que dão.

3º Admitido que os bons Espíritos só podem dizer e fazer o bem, de um bom Espírito não pode provir o que tenda para o mal.

4º Os Espíritos superiores usam sempre de uma linguagem digna, nobre, elevada, sem eiva de trivialidade; tudo dizem com simplicidade e modéstia, jamais se vangloriam, nem se jactam de seu saber, ou da posição que ocupam entre os outros. A dos Espíritos inferiores ou vulgares sempre algo refletem das paixões humanas. Toda expressão que denote baixeza, pretensão, arrogância, fanfarronice, acrimônia, é indício característico de inferioridade e de embuste, se o Espírito se apresenta com um nome respeitável e venerado.

5º Não se deve julgar da qualidade do Espírito pela forma material, nem pela correção do estilo. É preciso sondar-lhe o íntimo, analisar-lhe as palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção. Qualquer ofensa à lógica, à razão e à ponderação não pode deixar dúvida sobre a sua procedência, seja qual for o nome com que se ostente o Espírito. (Nº 224.)

6º A linguagem dos Espíritos elevados é sempre idêntica, senão quanto à forma, pelo menos quanto ao fundo. Os pensamentos são os mesmos, em qualquer tempo e em todo lugar. Podem ser mais ou menos desenvolvidos, conforme as circunstâncias, as necessidades e as faculdades que encontrem para se comunicar; porém, jamais serão contraditórios. Se duas comunicações, firmadas pelo mesmo nome, se mostram em contradição, uma das duas é evidentemente apócrifa e a verdadeira será aquela em que nada desminta o conhecido caráter da personagem. Sobre duas comunicações assinadas, por exemplo, com o nome de São Vicente de Paulo, uma das quais propendendo para a união e a caridade e a outra tendendo para a discórdia, nenhuma pessoa sensata poderá equivocar-se.

7º Os bons Espíritos só dizem o que sabem; calam-se ou confessam a sua ignorância sobre o que não sabem. Os maus falam de tudo com desassombro, sem se preocuparem com a verdade. Toda heresia científica notória, todo princípio que choque o bom-senso, aponta a fraude, desde que o Espírito se dê por ser um Espírito esclarecido.

8º Reconhecem-se ainda os Espíritos levianos, pela facilidade com que predizem o futuro e precisam fatos materiais de que não nos é dado ter conhecimento. Os bons Espíritos fazem que as coisas futuras sejam pressentidas, quando esse pressentimento convenha; nunca, porém, determinam datas. A previsão de qualquer acontecimento para uma época determinada é indício de mistificação.

9º Os Espíritos superiores se exprimem com simplicidade, sem prolixidade. Têm o estilo conciso, sem exclusão da poesia das ideias e das expressões, claro, inteligível a todos, sem demandar esforço para ser compreendido. Têm a arte de dizer muitas coisas em poucas palavras, porque cada palavra é empregada com exatidão. Os Espíritos inferiores, ou falsos sábios, ocultam sob o empolamento, ou a ênfase, o vazio de suas ideias. Usam de uma linguagem pretensiosa, ridícula, ou obscura, à força de quererem pareça profunda.

10º Os bons Espíritos nunca ordenam; não se impõem, aconselham e, se não são escutados, retiram-se. Os maus são imperioso; dão ordens, querem ser obedecidos e não se afastam, haja o que houver. Todo Espírito que impõe trai a sua inferioridade. São exclusivistas e absolutos em suas opiniões; pretendem ter o privilégio da verdade. Exigem crença cega e jamais apelam para a razão, por saberem que a razão os desmascararia.

11º Os bons Espíritos não lisonjeiam; aprovam o bem feito, mas sempre com reserva. Os maus prodigalizam exagerados elogios, estimulam o orgulho e a vaidade, embora pregando a humildade, e procuram exaltar a importância pessoal daqueles a quem desejam captar.

12º Os Espíritos superiores desprezam,em tudo,as puerilidades da forma. Só os Espíritos vulgares ligam importância a particularidades mesquinhas, incompatíveis com ideias verdadeiramente elevadas.Toda prescrição meticulosa é sinal certo de inferioridade e de fraude, da parte de um Espírito que tome um nome imponente.

13º Deve-se desconfiar dos nomes singulares e ridículos, que alguns Espíritos adotam, quando querem impor-se à credulidade; fora soberanamente absurdo tomar a sério semelhantes nomes.

14º Deve-se igualmente desconfiar dos Espíritos que com muita facilidade se apresentam, dando nomes extremamente venerados, e não lhes aceitar o que digam, senão com muita reserva. Aí, sobretudo, é que uma verificação severa se faz indispensável, porquanto isso não passa muitas vezes de uma máscara que eles tomam, para dar a crer que se acham em relações íntimas com os Espíritos excelsos. Por esse meio, lisonjeiam a vaidade do médium e dela se aproveitam frequentemente para induzi-lo a atitudes lamentáveis e ridículas.

15º Os bons Espíritos são muito escrupulosos no tocante às atitudes que hajam de aconselhar. Elas, qualquer que seja o caso, nunca deixam de objetivar um fim sério e eminentemente útil. Devem, pois, ter-se por suspeitas todas as que não apresentam este caráter, ou sejam condenáveis perante a razão, e cumpre refletir maduramente antes de tomá-las, a fim de evitarem-se mistificações desagradáveis.

16º Também se reconhecem os bons Espíritos pela prudente reserva que guardam sobre todos os assuntos que possam trazer comprometimento. Repugna-lhes desvendar o mal, enquanto que aos Espíritos levianos, ou malfazejos apraz pô-lo em evidência. Ao passo que os bons procuram atenuar os erros e pregam a indulgência, os maus os exageram e sopram a cizânia, por meio de insinuações pérfidas.

17º Os bons Espíritos só prescrevem o bem. Máxima nenhuma, nenhum conselho, que se não conformem estritamente com a pura caridade evangélica, podem ser obra de bons Espíritos.

18º Jamais os bons Espíritos aconselham senão o que seja perfeitamente racional. Qualquer recomendação que se afaste dalinha reta do bom-senso, ou das leis imutáveis da Natureza,denuncia um Espírito atrasado e, portanto, pouco merecedor de confiança.

19º Os Espíritos maus, ou simplesmente imperfeitos, ainda se traem por indícios materiais, a cujo respeito ninguém se pode enganar. A ação deles sobre o médium é às vezes violenta e provoca movimentos bruscos e intermitentes, uma agitação febril e convulsiva, que destoa da calma e da doçura dos bons Espíritos.

20º Muitas vezes, os Espíritos imperfeitos se aproveitam dos meios de que dispõem, de comunicar-se, para dar conselhos pérfidos. Excitam a desconfiança e a animosidade contra os que lhes são antipáticos. Especialmente os que lhes podem desmascarar as imposturas são objeto da maior animadversão da parte deles. Alvejam os homens fracos, para os induzir ao mal. Empregando alternativamente, para melhor convencê-los, os sofismas, os sarcasmos, as injúrias e até demonstrações materiais do poder oculto de que dispõem, se empenham em desviá-los da senda da verdade.

21º Os Espíritos dos que na Terra tiveram uma única preocupação, material ou moral, se se não desprenderam da influência da matéria, continuam sob o império das ideias terrenas e trazem consigo uma parte dos preconceitos, das predileções e mesmo das manias que tinham neste mundo. Fácil é isso de reconhecer-se pela linguagem de que se servem.

22º Os conhecimentos de que alguns Espíritos se enfeitam, às vezes, com uma espécie de ostentação, não constituem sinal da superioridade deles. A inalterável pureza dos sentimentos morais é, a esse respeito, a verdadeira pedra de toque.

23º Não basta se interrogue um Espírito para conhecer-se a verdade. Precisamos, antes de tudo, saber a quem nos dirigimos; porquanto, os Espíritos inferiores, ignorantes que são, tratam frivolamente das questões mais sérias. Também não basta que um Espírito tenha sido na Terra um grande homem, para que, no mundo espírita, se ache de posse da soberana ciência. Só a virtude pode, purificando-o, aproximá-lo de Deus e dilatar-lhe os conhecimentos.

24º Da parte dos Espíritos superiores, o gracejo é muitas vezes fino e vivo, nunca, porém, trivial. Nos Espíritos zombadores, quando não são grosseiros, a sátira mordaz é, não raro, muito propositada.

25º Estudando-se cuidadosamente o caráter dos Espíritos que se apresentam, sobretudo do ponto de vista moral, reconhecer-lhes a natureza e o grau de confiança que devem merecer. O bom-senso não poderia enganar.

26º Para julgar os Espíritos, como para julgar os homens, é preciso, primeiro, que cada um saiba julgar-se a si mesmo. Muita gente há, infelizmente, que toma suas próprias opiniões pessoais como paradigma exclusivo do bom e do mau, do verdadeiro e do falso; tudo o que lhes contradiga a maneira de ver, a suas ideias e ao sistema que conceberam, ou adotaram, lhes parece mau. A semelhante gente evidentemente falta a qualidade primacial para uma apreciação sã: a retidão do juízo. Disso, porém, nem suspeitam. É o defeito sobre que mais se iludem os homens.

Todas estas instruções decorrem da experiência e dos ensinos dos Espíritos. Vamos completá-las com as próprias respostas que eles deram, sobre os pontos mais importantes.

Fonte: Kardecpedia

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

[RE] - Mediunidade de vidência nas crianças

Por Allan Kardec

    De Caen escreve um dos nossos correspondentes:

   “Há alguns dias eu estava no hotel São Pedro, em Caen. Tomava um copo de cerveja, lendo um jornal. A filhinha da casa, de aproximadamente quatro anos, estava sentada na escadaria e comia cerejas. Ela não notava que eu a via, e parecia inteiramente envolvida numa conversa com seres invisíveis aos quais oferecia cerejas. Tudo o indicava: a fisionomia, os gestos, as inflexões da voz. Logo ela se voltava bruscamente dizendo:
    - Tu, tu não as terás, porque não és boazinha.
    - Eis para ti! dizia ela a uma outra.
    - Então, o que é que me atiras? perguntava a uma terceira.

    Dir-se-ia que ela estava rodeada por outras crianças. Ora estendia as mãos oferecendo o que tinha, ora seus olhos seguiam objetos invisíveis para mim, que a entristeciam ou faziam gargalhar. Essa pequena cena durou mais de meia hora e a conversa só terminou quando a menina percebeu que eu a observava. Sei que muitas vezes as crianças se divertem em apartes deste gênero, mas aqui era completamente diferente; o rosto e as maneiras refletiam impressões reais que não eram as de uma representação. Eu pensava que sem dúvida se tratava de uma médium vidente em seu nascedouro, e dizia, de mim para mim, que se todas as mães de família fossem iniciadas nas leis do Espiritismo, aí colheriam numerosos casos de observação e compreenderiam muitos fatos que passam desapercebidos, cujo conhecimento lhes seria útil para a direção de seus filhos.”

    É lamentável que o nosso correspondente não tenha tido a ideia de interrogar essa menina quanto às pessoas com quem conversava. Teria podido assegurar-se se a conversa realmente tinha sido com seres invisíveis. Nesse caso, daí poderia ter saído uma instrução tanto mais importante quanto, sendo espírita o nosso correspondente, e muito esclarecido, poderia dirigir utilmente essas perguntas. Seja como for, muitos outros fatos provam que a mediunidade vidente, se não é geral, é pelo menos muito comum nas crianças, e isto é providencial. Quando a criança sai da vida espiritual, seus guias vêm conduzi-la ao porto de desembarque para o mundo terreno, como vêm buscá-la em seu retorno. Eles se mostram a ela nos primeiros tempos, para que não haja transição muito brusca; depois se apagam pouco a pouco, à medida que a criança cresce e pode agir em virtude de seu livre-arbítrio. Então a deixam às suas próprias forças, desaparecendo de seus olhos, mas sem perdê-la de vista. A menina em questão, em vez de ser, como pensa o nosso correspondente, médium vidente nascente, bem poderia estar em seu declínio, e não mais gozar dessa faculdade para o resto da vida. (Vide a Revista de fevereiro de 1865: Espíritos instrutores da infância).

Fonte: Revista Espírita, setembro de 1866

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

[RE] - Espíritos barulhentos. Como livrar-se deles

Por Allan Kardec

Escrevem-nos de Gramat, no Lot: 

“Numa casa da aldeia de Coujet, comuna de Bastat, no departamento de Lot, há cerca de dois meses ouvem-se ruídos extraordinários. A princípio eram golpes secos e muito semelhantes a pancadas de um machado no soalho e escutados por todos os lados: sob os pés, acima da cabeça, nas portas, nos móveis. Depois as passadas de um homem descalço e o tamborilar de dedos nas vidraças. Os moradores ficaram amedrontados e mandaram rezar missas. A população inquieta ia até a aldeia e escutava; a polícia tomou conhecimento, fez várias pesquisas e o barulho aumentou. Em breve as portas se abriam; os objetos eram revirados; as cadeiras projetadas pela escada; os móveis transportados do rés-do-chão para o sótão. Tudo quanto informo ocorre em pleno dia e é atestado por grande número de pessoas. A casa não é um pardieiro antigo, sombrio e negro, que só pelo aspecto faz sonhar com fantasmas. É uma construção recente e risonha. Os proprietários são gente boa, incapazes de querer enganar e morrem de medo. Entretanto muitas pessoas pensam que ali não há nada de sobrenatural e procuram explicar tudo quanto se passa de extraordinário quer pela física, quer pelas más intenções que atribuem aos moradores. Eu, que vi e acredito, resolvi dirigir-me ao senhor para saber quais são os Espíritos que fazem todo esse barulho e conhecer o meio, caso exista, de silenciá-los. É um serviço que prestaria a essa boa gente, etc...”

Os fatos dessa natureza não são raros. Todos eles se assemelham mais ou menos e, em geral, só diferem pela intensidade e por sua maior ou menor tenacidade. Em geral, as pessoas pouco se inquietam quando eles se limitam a alguns ruídos sem consequência, mas tornam-se verdadeira calamidade quando atingem certas proporções.

Nosso distinto correspondente pergunta-nos quais os Espíritos que fazem esse barulho. Não há dúvidas quanto à resposta. Sabe-se que só os Espíritos de uma ordem muito inferior são capazes de tanto.

Os Espíritos superiores, assim como entre nós as pessoas graves e sérias, não se divertem a fazer algazarra. Muitas vezes chamamo-los a fim de lhes perguntar por que motivo assim perturbam o repouso alheio. A maior parte não tem outro objetivo senão divertir-se. São antes Espíritos levianos do que maus. Riem-se do medo que provocam, como das inúteis pesquisas para descobrir a causa do tumulto. Muitas vezes se obstinam junto a um indivíduo que gostam de vexar e que perseguem de casa em casa; outras vezes se ligam a um determinado lugar, sem qualquer motivo, a não ser por capricho. Por vezes também é uma vingança que levam a efeito, como teremos ocasião de ver. Em certos casos, sua intenção é mais louvável: querem chamar a atenção e estabelecer contato, seja para fazer uma advertência útil à pessoa a quem se dirigem, seja para pedir algo para si mesmos. Muitas vezes vimo-los pedir preces; outros solicitavam o cumprimento, em seu nome, de promessas que não puderam cumprir; outros, enfim, no interesse de seu próprio repouso, queriam reparar alguma ação má que tinham praticado quando encarnados.

Em geral não há razão para nos amedrontarmos. Sua presença pode ser importuna, mas não é perigosa. Aliás, compreende-se que tenhamos desejo de nos desembaraçarmos deles. Entretanto, quase sempre fazemos exatamente o contrário do que deveríamos. Se são Espíritos que se divertem, quanto mais levarmos a coisa a sério, mais eles persistem, como meninos travessos que apoquentam tanto mais quanto mais veem que nos impacientamos, e que metem medo aos covardes. Se tomássemos o sábio partido de rir de suas malandrices, acabariam se cansando e deixando-nos tranquilos. Conhecemos alguém que, longe de irritar-se, os excitava, desafiava-os a fazer isto ou aquilo, de modo que ao cabo de alguns dias eles não mais apareceram. Entretanto, como dissemos, alguns têm motivos menos frívolos. Eis por que é sempre útil saber o que eles querem. Se pedem alguma coisa, podemos estar certos de que suas visitas cessarão assim que forem satisfeitos. O melhor meio de instruir-se a respeito é evocar o Espírito através de um bom médium psicógrafo. Por suas respostas veremos imediatamente com quem tratamos e, em consequência, poderemos agir. Se for um Espírito infeliz, manda a caridade que o tratemos com os cuidados que merece. Se for um brincalhão de mau gosto, poderemos agir com ele sem cerimônias. Se for malévolo, é preciso pedir a Deus que o torne melhor. Em todo caso, a prece só bons resultados poderá dar. Mas a gravidade das fórmulas de exorcismo causa-lhes riso e por elas não têm nenhum respeito. Se pudermos entrar em comunicação com eles, é necessário desconfiar das qualificações burlescas ou apavorantes que por vezes se atribuem para divertir-se com a nossa credulidade.

Em muitos casos a dificuldade está em não ter médiuns à disposição. Devemos então procurar substituí-los por nós mesmos ou interrogar o Espírito diretamente, de acordo com os preceitos que damos nas nossas Instruções Práticas sobre as Manifestações.

Embora produzidos por Espíritos inferiores, esses fenômenos são, muitas vezes, provocados por Espíritos de ordem mais elevada, com o fito de nos convencer da existência de seres incorpóreos e de um poder superior ao do homem. A repercussão daí resultante, o próprio medo que causam, chamam a atenção e acabarão por abrir os olhos dos mais incrédulos. Esses acham mais fácil levar tais fenômenos para o plano da imaginação, explicação muito cômoda, que dispensa quaisquer outras. Entretanto, quando os objetos são desarrumados ou atirados à nossa cabeça, fora necessária uma imaginação muito complacente para supor que tais coisas acontecem, quando de fato não acontecem. Se observamos um efeito qualquer, ele terá, necessariamente, uma causa. Se uma observação calma e fria nos demonstra que tal efeito independe de toda vontade humana e de toda causa material; se, além disso, nos dá indícios evidentes de inteligência e de livre vontade, o que constitui o mais característico dos sinais, somos então forçados a atribuí-lo a uma inteligência oculta.

Quem são esses seres misteriosos? Eis o que os estudos espíritas nos ensinam da maneira menos contestável, através dos meios que nos apresentam de com eles nos comunicarmos. Além disso, esses estudos nos ensinam a separar o que é real daquilo que é falso ou exagerado nos fenômenos cujas causas não percebemos. Se se produz um efeito insólito ─ ruído, movimento, até mesmo uma aparição ─ o primeiro pensamento que devemos ter é que seja devido a uma causa absolutamente natural, que é o mais provável. Então é preciso investigar essa causa com o maior cuidado e não admitir a intervenção dos Espíritos senão com conhecimento de causa. É o meio de não nos iludirmos.

Fonte: Revista Espírita, Fevereiro de 1859  

[RE] - Escolhos dos médiuns

Por Allan Kardec

A mediunidade é uma faculdade multiforme. Apresenta uma infinidade de nuanças em seus meios e em seus efeitos. Quem quer que seja apto a receber ou transmitir as comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, seja qual for o meio empregado ou o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até a produção dos mais insólitos fenômenos. Contudo, no uso corrente, o vocábulo tem uma acepção mais restrita e se diz geralmente das pessoas dotadas de um poder mediúnico muito grande, tanto para produzir efeitos físicos como para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra.

Embora não seja a faculdade um privilégio exclusivo, é certo que encontra refratários, pelo menos no sentido que se lhe dá. Também é certo que não deixa de apresentar escolhos aos que a possuem: pode ser alterada e até perder-se e, muitas vezes, ser uma fonte de graves desilusões. Sobre tal ponto julgamos útil chamar a atenção de todos quantos se ocupam de comunicações espíritas, quer diretamente, quer através de terceiros. Através de terceiros, dizemos, porque importa aos que se servem de médiuns poderem apreciar o valor e a confiança que merecem suas comunicações.

O dom da mediunidade depende de causas ainda imperfeitamente conhecidas e nas quais parece que o físico tem uma grande parte. À primeira vista pareceria que um dom tão precioso não devesse ser partilhado senão por almas de escol. Ora, a experiência prova o contrário, pois encontramos mediunidade potente em criaturas cuja moral deixa muito a desejar, enquanto outras, estimáveis sob todos os aspectos, não a possuem. Aquele que fracassa, a despeito de seus desejos, esforços e perseverança, não deve tirar conclusões desfavoráveis à sua pessoa nem julgar-se indigno da benevolência dos Espíritos. Se tal favor lhe não é concedido, outros há, sem dúvida, que lhe podem oferecer ampla compensação. Pela mesma razão, aquele que a desfruta não poderia dela prevalecer-se, pois a mediunidade não é nenhum sinal de mérito pessoal. O mérito, portanto, não está na posse da faculdade medianímica, que a todos pode ser dada, mas no uso que dela fazemos. Eis uma distinção capital, que jamais se deve perder de vista: a boa qualidade do médium não está na facilidade das comunicações, mas unicamente na sua aptidão para só receber as boas. Ora, é nisto que as suas condições morais são onipotentes; é nisso também que ele encontra os maiores escolhos.

Para perceber este estado de coisas e compreender o que vamos dizer é necessário reportar-se ao princípio fundamental de que entre os Espíritos há todos os graus de bondade e de maldade, de conhecimento e de ignorância; que os Espíritos pululam em redor de nós e que, quando nos julgamos sós, estamos incessantemente rodeados de seres que nos acotovelam, uns com indiferença, como estranhos, outros que nos observam com intenções mais ou menos benevolentes, conforme a sua natureza.

O provérbio “Cada ovelha busca a sua parelha” tem sua aplicação entre os Espíritos, como entre nós, e mais ainda entre eles, se possível, porque não estão, como nós, sob a influência de preceitos sociais. Contudo, se entre nós esses preceitos algumas vezes confundem homens de costumes e gostos muito diversos, tal confusão, de certo modo, é apenas material e transitória. A similitude ou a divergência de pensamentos será sempre a causa das atrações e repulsões.

Nossa alma, que afinal de contas não é mais que um Espírito encarnado, não deixa por isso de ser um Espírito. Se se revestiu momentaneamente de um envoltório material, suas relações com o mundo incorpóreo, embora menos fáceis do que quando no estado de liberdade, nem por isto são interrompidas de modo absoluto. O pensamento é o laço que nos une aos Espíritos, e pelo pensamento atraímos os que simpatizam com as nossas ideias e inclinações. Representemos, pois, a massa de Espíritos que nos envolvem, como a multidão que encontramos no mundo. Em todos os lugares aonde preferimos ir encontramos homens atraídos pelos mesmos gostos e pelos mesmos desejos. Às reuniões que têm objetivo sério vão homens sérios; às que são frívolas, vão os frívolos. Por toda parte encontram-se Espíritos atraídos pelo pensamento dominante. Se lançarmos um olhar sobre o estado moral da Humanidade em geral, compreenderemos sem dificuldade que nessa multidão oculta os Espíritos elevados não devem constituir a maioria. É esta uma das consequências do estado de inferioridade do nosso globo.

 Os Espíritos que nos cercam não são passivos. Formam uma  população essencialmente inquieta, que pensa e age sem cessar;  que nos influencia, malgrado nosso; que nos excita e nos dissuade; que nos impulsiona para o bem ou para o mal, o que não  nos tira o livre-arbítrio mais do que os bons ou maus conselhos que recebemos de nossos semelhantes. Entretanto, quando os Espíritos imperfeitos incitam alguém a fazer uma coisa má, sabem muito bem a quem se dirigem e não vão perder o tempo onde veem que serão mal recebidos. Eles nos excitam conforme as nossas inclinações ou conforme os germens que em nós veem e segundo as nossas disposições para escutá-los. Eis por que o homem firme nos princípios do bem não lhes dá oportunidade.

Estas considerações nos levam naturalmente ao problema dos médiuns. Como todas as criaturas, eles são submetidos à influência oculta dos Espíritos bons e maus; atraem-nos e repelem-nos conforme as simpatias de seu próprio Espírito e os  Espíritos maus aproveitam-se de todas as falhas, como de uma falta de couraça, para introduzir-se junto a eles, intrometendo-se, malgrado seu, em todos os atos de sua vida particular. Além disso, tais Espíritos, encontrando no médium um meio de expressar seu pensamento de modo inteligível e de atestar sua presença, intrometem-se nas comunicações e as provocam, porque esperam ter mais influência por este meio e acabam por assenhorear-se dele. Consideram-se como se estivessem em sua própria casa, afastando os Espíritos que lhes poderiam criar embaraços e, conforme a necessidade, lhes tomam os nomes e mesmo a linguagem, com o fito de enganar. Mas não podem representar esse papel por muito tempo. Com um pouco de contato com um observador experimentado e prevenido, logo são desmascarados. Se o médium se deixa dominar por essa influência, os bons Espíritos se afastam dele, ou absolutamente não vêm quando chamados, ou vêm com certa repugnância, porque veem que o Espírito que se identificou com o médium e que por assim dizer nele estabeleceu domicílio, pode alterar as suas instruções. Se tivermos que escolher um intérprete, um secretário, um mandatário qualquer, é evidente que escolheremos não um homem apenas capaz, mas, além disso, digno de nossa estima; que não confiaremos uma delicada missão, bem como nossos interesses a um insano ou a um frequentador de uma sociedade suspeita. Dá-se o mesmo com os Espíritos. Os Espíritos superiores não escolherão, para transmitir instruções sérias, um médium que tenha familiaridade com Espíritos levianos, a menos que haja necessidade e que não encontrem, no momento, outros médiuns à disposição; a menos, ainda, que queiram dar uma lição ao próprio médium, como por vezes acontece; mas, então, dele se servem só acidentalmente e o abandonam, se assim lhes convier, deixando-o entregue às suas simpatias, se ele faz questão de conservá-las. O médium perfeito seria, pois, o que nenhum acesso desse aos maus Espíritos, por um descuido qualquer. Essa condição é muito difícil de preencher, mas se a perfeição absoluta não é dada ao homem, sempre lhe é possível por seus esforços aproximar-se dela, e os Espíritos levam em conta sobretudo os esforços, a força de vontade e a perseverança.

Assim, o médium perfeito não teria senão comunicações perfeitas, em termos de verdade e de moralidade. Desde que a perfeição é impossível, o melhor médium seria o que desse as melhores comunicações. É pelas obras que eles podem ser julgados. As comunicações constantemente boas e elevadas, nas quais nenhum indício de inferioridade fosse notado, seriam incontestavelmente uma prova da superioridade moral do médium, porque atestariam simpatias felizes. Pelo simples fato de que o médium não é perfeito, Espíritos levianos, embusteiros e mentirosos podem imiscuir-se em suas comunicações, alterando-lhes a pureza e induzindo em erro o médium e aqueles que o procuram. Eis o maior escolho do Espiritismo, cuja gravidade não dissimulamos. É possível evitá-lo? Dizemos alto e bom som: sim, é possível. O meio não é difícil, exigindo apenas discernimento.

As boas intenções e a própria moralidade do médium nem sempre bastam para preservá-lo da intromissão dos Espíritos levianos, mentirosos e pseudo-sábios nas comunicações. Além das falhas de seu próprio Espírito, ele pode dar-lhes entrada por outras causas das quais a principal é a fraqueza de caráter e uma confiança excessiva na invariável superioridade dos Espíritos que com ele se comunicam. Essa confiança cega reside numa causa que a seguir explicaremos.

Se não quisermos ser vítimas desses Espíritos levianos, é necessário julgá-los, e para isso temos um critério infalível: o bom-senso e a razão. Sabemos que as qualidades da linguagem que caracteriza entre nós os homens realmente bons e superiores são as mesmas para os Espíritos. Devemos julgá-los por sua linguagem. Nunca seria demais repetir o que a caracteriza nos Espíritos elevados: é constantemente digna, nobre, sem bazofia nem contradição, isenta de trivialidades e marcada por um cunho de inalterável benevolência. Os bons Espíritos aconselham; não ordenam; não se impõem; calam-se naquilo que ignoram. Os Espíritos levianos falam com a mesma segurança do que sabem e do que não sabem; a tudo respondem sem se preocuparem com a verdade. Em um ditado supostamente sério, vimo-los, com imperturbável audácia, colocar César no tempo de Alexandre; outros afirmavam que não é a Terra que gira em redor do Sol. Resumindo: toda expressão grosseira ou apenas inconveniente; toda marca de orgulho e de presunção; toda máxima contrária à sã moral; toda notória heresia científica é, nos Espíritos, como nos homens, inconteste sinal de natureza má, de ignorância ou, pelo menos, de leviandade. Daí deduz-se que é necessário pesar tudo quanto eles dizem, passando-o pelo crivo da lógica e do bom-senso. Eis uma recomendação feita incessantemente pelos bons Espíritos. Dizem eles: “Deus não vos deu o raciocício sem propósito. Servi-vos dele a fim de saber com quem estais a vos relacionar.” Os maus Espíritos temem o exame. Dizem eles: “Aceitai nossas palavras e não as julgueis”. Se tivessem consciência de estar com a verdade, não temeriam a luz.

O hábito de perscrutar cada palavra dos Espíritos, de lhes pesar o valor - do ponto de vista do conteúdo e não da forma gramatical, com que pouco se preocupam eles -naturalmente afasta os Espíritos mal intencionados, que então não vi­riam inutilmente perder seu tempo, de vez que rejeitamos tudo quanto é mau ou tem origem suspeita. Mas quando aceitamos cegamente tudo quanto dizem, quando, por assim dizer, nos ajoelhamos ante sua pretensa sabedoria, eles fazem o que fariam os homens. Abusam de nós.

Se o médium for senhor de si; se não se deixar dominar por um entusiasmo irrefletido, poderá fazer o que aconselhamos. Mas acontece frequentemente que o Espírito o subjuga a ponto de fasciná-lo, levando-o a considerar admiráveis as coisas mais ridículas. Então ele se entrega cada vez mais a essa perniciosa confiança e, estribado em suas boas intenções e em seus bons sentimentos, julga isto suficiente para afastar os maus Espíritos. Não, isso não basta, pois esses Espíritos ficam satisfeitos por fazê-lo cair na cilada, para o que se aproveitam de sua fraqueza e de sua credulidade. Que fazer, então? Expor tudo a uma terceira pessoa desinteressada, para que essa, julgando com calma e sem prevenção, possa ver um argueiro onde o médium não via uma trave.

A ciência espírita exige uma grande experiência que só se adquire, como em todas as ciências, filosóficas ou não, através de um estudo longo, assíduo e perseverante, e por numerosas observações. Ela não abrange apenas o estudos dos fenômenos propriamente ditos, mas também e sobretudo os costumes, se assim podemos dizer, do mundo oculto, desde o mais baixo ao mais alto grau da escala. Seria presunção julgar-se suficientemente esclarecido e graduado como mestre depois de alguns ensaios. Não seria esta a pretensão de um homem sério, pois quem quer que lance um golpe de vista investigador sobre esses estranhos mistérios, vê desdobrar-se à sua frente um horizonte tão vasto que longos anos não bastam para abrangê-lo. Há entretanto quem o queira fazer em alguns dias!

De todas as disposições morais, a que maior entrada oferece aos Espíritos imperfeitos é o orgulho. Este é para os médiuns um escolho tanto mais perigoso quanto menos o reconhecem. É o orgulho que lhes dá a crença cega na superioridade dos Espíritos que a ele se ligam porque se vangloriam de certos nomes que eles lhes impõem. Desde que um Espírito lhes diz: Eu sou Fulano, inclinam-se e não admitem dúvidas, porque seu amor próprio sofreria se, sob tal máscara, encontrasse um Espírito de condição inferior ou de baixo quilate. O Espírito percebe e aproveita o lado fraco; lisonjeia seu pretenso protegido; fala-lhe de origens ilustres que o enfunam ainda mais; promete-lhe um futuro brilhante, honra e fortuna, de que parece ser o distribuidor; se for necessário, mostra por ele uma ternura hipócrita. Como resistir a tanta generosidade? Numa palavra, ele o embrulha e o leva no beiço, como se diz vulgarmente; sua felicidade é ter alguém sob sua dependência.

Interrogamos vários deles sobre os motivos de sua obsessão. Um deles assim nos respondeu. “Quero ter um homem que me faça a vontade. É o meu prazer”. Quando lhe dissemos que íamos fazer tudo para descobrir os seus artifícios e tirar a venda dos olhos de seu oprimido, disse: “Lutarei contra vós e não tereis resultado, porque farei tantas coisas que ele não vos acreditará.” É, com efeito, uma das táticas desses Espíritos malfazejos: inspiram a desconfiança e o afastamento das pessoas que podem desmascará-los e dar bons conselhos. Jamais acontece coisa semelhante com os bons Espíritos. Todo Espírito que insufla a discórdia, que excita a animosidade, que entretém os dissentimentos revela, por isso mesmo, sua natureza má. Seria preciso ser cego para não compreender isso e para crer que um bom Espírito pudesse arrastar à discórdia.

Muitas vezes o orgulho se desenvolve no médium à medida que cresce a sua faculdade. Ela lhe dá importância. Procuram-no e ele acaba por sentir-se indispensável. Daí, muitas vezes, um tom de jactância e de pretensão ou uns ares de suficiência e de desdém, incompatíveis com a influência de um bom Espírito. Aquele que cai em tal engano está perdido, porque Deus lhe deu sua faculdade para o bem e não para satisfazer sua vaidade ou transformá-la em escada para a sua ambição. Esquece que esse poder, de que se orgulha, pode ser retirado e que, muitas vezes, só lhe foi dado como prova, assim como a fortuna para certas pessoas. Se dele abusa, os bons Espíritos pouco a pouco o abandonam e o médium se torna um joguete de  Espíritos levianos, que o embalam com suas ilusões, satisfeitos por terem vencido aquele que se julgava forte. Foi assim que vimos o aniquilamento e a perda das mais preciosas faculdades que sem isso ter-se-iam tornado os mais poderosos e os mais úteis auxiliares.

Isto se aplica a todos os gêneros de médiuns, quer de manifestações físicas, quer de comunicações inteligentes. Infelizmente o orgulho é um dos defeitos que somos menos inclinados a reconhecer em nós e menos ainda a acusar nos outros, porque eles não acreditariam. Ide dizer a um médium que ele se deixa conduzir como uma criança. Ele virará as costas, dizendo que sabe conduzir-se e que não vedes as coisas claramente. Podeis dizer a um homem que ele é bêbado, debochado, preguiçoso, desajeitado e imbecil, e ele rirá disso ou concordará; dizei-lhe que é orgulhoso e ficará zangado. É a prova evidente de que tereis dito a verdade. Neste caso, os conselhos são tanto mais difíceis quanto mais o médium evita as pessoas que os possam dar. Ele foge de uma intimidade que teme. Os Espíritos, sentindo que os conselhos são golpes desferidos no seu poder, empurram o médium, ao contrário, para quem lhe alimente as ilusões. Preparam-se, assim, muitas decepções, com o que sofrerá muito o amor próprio do médium. Feliz dele se não lhe resultarem ainda coisas mais graves.

Se insistimos longamente sobre este ponto foi porque nos demonstrou a experiência, em muitas ocasiões, que isto constitui uma das grandes pedras de tropeço para a pureza e a sinceridade das comunicações dos médiuns. Diante disto, é quase inútil falar das outras imperfeições morais, tais como o egoísmo, a inveja, o ciúme, a ambição, a cupidez, a dureza de coração, a ingratidão, a sensualidade, etc. Cada um compreende que elas são outras tantas portas abertas aos Espíritos imperfeitos ou, pelo menos, causas de fraqueza. Para repelir esses Espíritos não basta dizer-lhes que se vão; nem mesmo basta querer e ainda menos conjurá-los. É necessário fechar-lhes a porta e os ouvidos; provar-lhes que somos mais fortes do que eles ─ e o somos, incontestavelmente pelo amor do bem, pela caridade, pela doçura, pela simplicidade, pela modéstia e pelo desinteresse, qualidades que granjeiam a benevolência dos bons Espíritos. É o apoio deles que nos dá força. Se por vezes nos deixam a braços com os maus, é isso uma prova para a nossa fé e para o nosso caráter.

Que os médiuns não se arreceiem demasiado da severidade das condições de que acabamos de falar. Elas são lógicas, havemos de convir, mas seria erro desanimar. É certo que as más comunicações que podemos receber são indício de alguma fraqueza, mas nem sempre sinal de indignidade. Podemos ser fracos, mas bons. Em qualquer caso, temos nelas um meio de reconhecer as próprias imperfeições. Já dissemos no outro artigo que não é necessário ser médium para estar sob a influência de maus Espíritos, que agem na sombra. Com a faculdade mediúnica, o inimigo se mostra e se trai. Ficamos sabendo com quem tratamos e poderemos combatê-lo. É assim que uma comunicação má pode tornar-se uma lição útil, se soubermos aproveitá-la.

Seria injusto, aliás, atribuir todas as más comunicações à conta do médium. Falamos daquelas que ele obtém sozinho, sem qualquer outra influência, e não das que são produzidas num meio qualquer. Ora, todos sabem que os Espíritos, atraídos por esse meio, podem prejudicar as manifestações, quer pela diversidade de caracteres, quer pela falta de recolhimento. É regra geral que as melhores comunicações ocorrem na intimidade e num círculo recolhido e homogêneo. Em toda comunicação acham-se em jogo várias influências: a do médium, a do meio e a da pessoa que interroga. Essas influências podem reagir umas sobre as outras, neutralizar-se ou corroborar-se. Isto depende do fim a que nos propomos e do pensamento dominante. Vimos excelentes comunicações obtidas em reuniões e com médiuns que não possuíam todas as condições desejáveis. Nesse caso os bons Espíritos vinham por causa de uma pessoa em particular, porque isso era útil. Vimos também más comunicações obtidas por bons médiuns, unicamente porque o interrogante não tinha intenções sérias e atraía Espíritos levianos, que dele zombavam.

Tudo isto requer tato e observação. Compreende-se facilmente a preponderância que devem ter todas essas condições reunidas.

Fonte: Revista Espírita, Fevereiro de 1859