Por Maria Aparecida Romano
Durante o período da Idade Média, o reino da França era constituído por feudos – propriedades territoriais governadas por um senhor.
Detendo os ingleses a maior parte deles, o fato originou múltiplos conflitos, gerando a Guerra dos Cem Anos entre os dois países. No ano de 1429, quando a guerra atravessava um momento decisivo, com as forças inglesas ocupando grande parte do território francês, a cidade de Órleans, um dos últimos bastiões da resistência e já sitiada, poderia cair a qualquer momento nas mãos dos invasores estrangeiros.
Curvados ao invasor inglês e sem ânimo para se reerguerem, os soldados franceses eram poucos e o moral estava enfraquecido pelas sucessivas derrotas. Além do mais, faltava um chefe, alguém capaz de conduzir as tropas e fazê-las acreditar na possibilidade de sua vitória. Refugiado na localidade de Chinon, o príncipe Carlos hesitava em tomar decisões, tinha sua autoridade contestada ao ser declarado bastardo por tantos compatriotas que negavam ser ele o legítimo herdeiro do trono da França. Naquela altura, jamais se acreditaria que a iniciativa de encetar uma campanha decisiva para renovar a confiança do povo francês para uma resistência aos ingleses partisse de uma jovem que se investiu de tão importante missão. Seu nome: Joana D’Arc.
Nascida no ano de 1412 no vilarejo de Domrèmy, Joana foi criada no seio de uma família de camponeses com três irmãos e uma irmã. Ao lado deles, auxiliava o pai no trabalho da terra tomando conta dos carneiros no pasto. Não aprendeu a ler nem a escrever. Freqüentando assiduamente a igreja do vilarejo, que ficava junto à sua casa, a menina Joana aprendeu o Pai-Nosso, tornando-se muito piedosa.
Recebendo as tarefas
Já adolescente, caia em profundos êxtases, durante os quais afirmava ter visões fantásticas de uma luz viva e que ouvia vozes celestiais a lhe ordenarem duas tarefas: salvar a pátria e coroar o rei. A história de suas visões fantásticas se espalhara rapidamente e, embora despertando controvérsias, o povo passou a acreditar na possível missão da jovem. Enquanto muitos a viam como santa, outros acreditavam que a jovem poderia ser uma enviada do mal.
Embora a notícia da guerra já tivesse se estendido por quase toda a França, a jovem só soube pela pri-meira vez o real significado de uma guerra quando as tropas inglesas estavam bem perto da cidade onde morava. Domrèmy era afastada dos campos de batalha e as notícias andavam bem devagar. Só se sabia de algum fato quando passava um cavaleiro bem informado. Como os caminhos eram ruins, o cavaleiro levava semanas para andar poucos quilômetros.
A guerra atingira um momento crítico. Órleans, a última cidade em poder dos franceses, estava cercada e a França não tinha um rei para defendê-la. Joana, que até então vivera angustiada e indecisa, resolveu procurar o Capitão de Baudricourt, pedindo-lhe uma carta de apresentação e uma escolta para acompanhá-la até o Delfim. Como a população estava ao lado da jovem, o capitão acabou cedendo ante a insistentes pedidos e, com o dinheiro de uma coleta, conseguiram-lhe uma armadura.
Mal cabendo na pesada armadura, a jovem camponesa de 17 anos de idade partiu no dia 23 de fevereiro de 1429, na direção de Chinon. Viajou dez dias decidida a procurar o príncipe herdeiro, com a missão de levá-lo ao trono como rei e salvar a França, prestes a sucumbir totalmente ao peso da invasão inglesa. A sua partida fez nascer uma nova esperança no povo místico da época. Deus a teria enviado para terminar com as guerras e misérias.
A revelação ao príncipe
No Palácio de Chinon, a notícia foi recebida com espanto. Desconfiado daquela menina que se apresentava como salvadora, contando histórias fantásticas, o príncipe resolveu se divertir aplicando um teste na recém-chegada para comprovar a veracidade dos seus relatos. Vestindo-se como um súdito qualquer, entrou por uma porta lateral, misturando-se entre os nobres. Na condição de simples camponesa, a jovem jamais poderia conhecer-lhe a fisionomia, porém, Joana D’Arc não vacilou. Caminhando até um canto dos salões onde alguns nobres fingiam conversar distraídos, ajoelhando-se aos pés do Delfim, diz-lhe humildemente: “Gentil Senhor, em nome de Deus, eu posso dizer que sois filho do rei e herdeiro legítimo do trono da França”.
A aparente dissipação da grande dúvida que pairava em torno da legitimidade do seu nascimento, pela qual o filho de um pai desconhecido não poderia ser o herdeiro do trono, deixou o príncipe aturdido, pedindo a vários bispos e cardeais que interrogassem Joana. Em pouco tempo, a segurança e a simplicidade das respostas dadas pela jovem acabaram por convencer a todos, inclusive o soberano, que, após manter com ela uma conversa cujo teor nunca seria revelado e convencido de que era preciso agir com rapidez, outorgou-lhe o título de “Chefe da Guerra” e, ao mesmo tempo, o comando de uma pequena tropa.
Mas faltava uma espada. Segundo a tradição, a jovem ouvira vozes que lhe indicaram uma excelente espada escondida atrás do altar de Santa Catarina. Enviado até lá, um pagem voltou com uma velha espada, completamente enferrujada. Contam que bastou encostar nela um pano para que a arma ficasse brilhante no mesmo instante.
A primeira vitória contra os ingleses
Liderando a tropa, Joana D’Arc partiu imediatamente com a missão de furar o cerco de Órleans e levar víveres para abastecer os soldados já famintos. Levando nas mãos um estandarte onde, ao lado de Deus, figuravam os nomes de Jesus e Maria e o símbolo do reino (a flor-de-lis), ordenou com sua voz firme uma incursão aos ingleses, devolvendo a confiança a seus compatriotas. Naquele momento, oficiais e soldados recobraram a esperança de vitória perante o exemplo de coragem daquela jovem. Depois de algumas investidas, tomou as principais bases de apoio do inimigo, que, surpreso, levantou o cerco em retirada.
A tropa de Joana entrou triunfante na cidade. Finalmente Órleans estava libertada, marcando a partir daí uma nova fase na Guerra dos Cem Anos. Julgando sua tarefa encerrada, quis se retirar, mas teve de ceder às súplicas do príncipe para dar continuidade à luta. Numa campanha rápida e fulminante, venceu os ingleses nas cidades de Patay e Troyes, apresentando ao soberano as chaves das cidades conquistadas.
Mas isto, para Joana, foi apenas a primeira etapa. Com profundo senso político, sentiu que chegara o momento de coroar solenemente o príncipe na Catedral de Reims. Ocorria que Reims estava situada em território controlado pelos ingleses e, para chegar lá, seria necessário enfrentar os batalhões dos invasores. Joana estava decidida a lutar e acabou convencendo o príncipe. Em apenas um mês de campanha, o exército comandado pela jovem, depois de infligir uma sucessão de derrotas aos ingleses, penetrou em Reims em 16 de julho de 1429.
O príncipe Carlos torna-se rei
Na época, a entrada triunfal numa cidade era o maior símbolo de uma vitória e, enquanto a população nas ruas aplaudia a cavalaria e o estandarte dos vencedores, Joana aproveitou para unir essa festa a uma outra. No dia seguinte, realizou-se solenemente na Catedral de Reims a sagração de Sua Majestade, Carlos VII, como rei da França. De pé, ao lado do rei, tendo na mão seu estandarte, ficou a “Chefe da Guerra” Joana D’Arc. Terminada a cerimônia, tomando a mão do novo soberano diz-lhe: “Gracioso rei, está cumprida a vontade de Deus. Órleans de volta ao reino e Vossa Majestade coroado como único e legítimo rei da França”.
Joana chegou ao apogeu da glória, porém, não estava satisfeita. A França não poderia ser considerada livre se Paris continuava governada por um regente inglês. Mas as coisas mudaram. Na condição de rei coroado, Carlos VII estava finalmente numa posição de força e não mostrava entusiasmo por outras aventuras. Alegava que a missão da jovem estava concluída e que não se poderia confiar eternamente na heroína, tratando-se de uma mulher.
Conspirações contra Joana
Assim, a guerreira passou a se tornar uma personagem incômoda. Entretanto, ante a sua insistência, o soberano acabou lhe concedendo uma pequena tropa para conquistar Paris. A fama de Joana D’Arc era enorme e os ingleses temiam também o prestígio do novo rei. Para impedir que a jovem, de algum modo, cativasse a população de Paris, do outro lado da muralha foi preparada uma longa resistência. Cinqüenta mil pessoas desfilaram de tochas acesas nas mãos, afirmando que Joana D’Arc era instrumento das forças do mal.
Quando o ataque começou, os ingleses deram uma resposta fulminante: a própria Joana é atingida por uma flecha que lhe varou a coxa, abalando muito seu prestígio, sendo necessário retirá-la do campo de batalha, pois ela não queria recuar de modo algum. Mal havia se recuperado de sua ferida, recomeçou a luta na tentativa de libertar Compiègne, enquanto Carlos VII decidiu conciliar os inimigos.
Inicialmente, mandou a jovem evacuar o Castelo de Compiègne, missão sem grande importância, mas perigosa. A jovem penetra no castelo e começa a proteger a retirada das tropas. De repente, quando quase todos haviam saído, a ponte do castelo foi levantada. Joana D’Arc estava prisioneira. Encerrada no alto de uma torre, ficou totalmente só, talvez teria sido traída por seus próprios compatriotas. Na tentativa de escapar, caiu no fosso do castelo.
Foi quando decidiram vendê-la aos ingleses por 10 mil escudos. Colocada numa jaula de ferro, os pés e as mãos amarradas “como uma enviada do mal”, foi entregue para o mais elevado tribunal da Igreja existente na França.
Condenada pela inquisição
A permanência de Joana D’Arc na Terra deu-se na Idade Média, em pleno advento do Cristianismo. Contudo, a Igreja já se deparava com o aparecimento de novas seitas e o misticismo surgia como força importante. Como em religião o sentimento místico e o sentimento religioso acabam se confundindo, havia uma grande preocupação da Igreja em manter os dogmas de fé e um ideal moral, sentindo haver na época uma forte tendência em se acreditar no sobrenatural.
Para patentear sua força, a Igreja precisava de um órgão mais eficaz que os tradicionais tribunais de conventos e acabou encontrando no Tribunal da Santa Inquisição, existente em todas as partes da Europa da Idade Média, um meio de punir os hereges, como eram chamados todos aqueles que, sob qualquer forma, faziam oposição a uma verdade de fé ou a um dogma já firmado. A morte na fogueira tornou-se a punição. Em diversas vezes, a severidade com que as normas foram aplicadas levou à fogueira pessoas inocentes declaradas hereges.
Joana foi entregue ao Tribunal da Santa Inquisição objetivando-se provar que a guerreira não era nada, nem mesmo uma enviada do mal. Sob a presidência de Pierre Cauchon, bispo de Beauvois e aliado dos ingleses, liderando um juri composto por 70 conselheiros religiosos, o tribunal reuniu-se em fevereiro de 1431. Sob a acusação de usar roupas masculinas e dar um cunho de revelação divina às suas visões e profecias, o interrogatório da acusada foi uma verdadeira tortura mental, destinado a confundi-la e levá-la ao desespero. A jovem enfrentou com inteligência e coragem seus inquisidores, sustentando até o fim que as vozes não a haviam enganado.
Considerados os representantes de Deus na Terra, os membros do Tribunal da Santa Inquisição jamais aceitariam o fato de uma mulher obedecer diretamente a vozes celestiais sem o devido respeito à Igreja. Declarada bruxa e herética, foi condenada à morte na fogueira, sob a alegação de que só pelas chamas se destrói uma feiticeira. Carlos VII, o príncipe que ela conduziu ao trono da França, nada fez para libertá-la. Uma santa guerreira poderia ser uma personagem incômoda às combinações diplomáticas.
No dia 30 de maio de 1431, uma grande multidão se aglomerou na Praça Vieux de Marché, em Rouem, palco do suplício de Joana D’Arc. Embora na época a execução se constituisse num espetáculo público, os membros do tribunal, temendo uma manifestação favorável à condenada, tomaram as devidas precauções. Escoltada por 120 homens armados com lanças e espadas, a brava guerreira, com a cabeça raspada, foi conduzida até a praça e amarrada a um poste. Para seus juizes, queimando-a e espalhando suas cinzas estariam destruindo o símbolo da resistência francesa. Naquele momento, o olhar da jovem, mais do que cansaço, demonstrava a dignidade conferida a todos aqueles que são conscientes do dever cumprido.
Heroína nacional e santa
À medida que a nação francesa foi se formando, a figura da guerreira foi cada vez mais sendo glorificada. No ano de 1450, decorridos 37 anos de seu desencarne, concretizou-se o objetivo de Joana D’Arc: Paris reocupada por Carlos VII e os ingleses expulsos de toda a França, determinando o fim da Guerra dos Cem Anos. Porém, a nação só se consolidaria com a Revolução Francesa de 1789.
O reconhecimento do governo e do povo francês veio em 1803, quando foi proclamada heroína nacional. Nesse ano, o imperador Napoleão Bonaparte inaugurou um monumento como justa homenagem àquela considerada a glória mais pura da história da França.
Também a Igreja repararia seu erro. Embora desde a Idade Média, Joana D’Arc tenha sido objeto de veneração popular, somente no ano de 1909 foi beatificada. No ano de 1929 foi canonizada e proclamada Santa Padroeira da França, por decisão do Vaticano.
Para os ingleses, ela continuaria por muito tempo sendo considerada “a bruxa” que os expulsou da França. Entretanto, quase seis séculos após seu martírio, aqueles que visitarem a Catedral de Westminster, em Londres, verão colocada num local de honra uma estátua da santa guerreira. Certamente, é o último lugar onde a camponesa de Domrèmy um dia pensaria estar.
Um dos prepostos da codificação
A passagem de Joana D’Arc pela Terra apresentou traços característicos tão diversificados que, de imediato, parecem fugir do currículo normal das faculdades humanas. Suas visões e pressentimentos, a viagem para Chinon, a autoridade no comando das tropas, a audácia para os padrões femininos da época, a notável inteligência e a coragem perante a morte tornaram-na, ao longo dos tempos, a personagem histórica que mais sofreu estudos contraditórios.
Para os mais crentes, Joana seria venerada como uma santa. Os estudiosos preferiram reconhecê-la como uma valorosa guerreira que representou a personificação do patriotismo popular francês da época, conseguindo arrancar os ingleses da terra natal. Já os indiferentes, embora admirassem a sua figura de certa forma sobrenatural, preferiram ignorar os verdadeiros objetivos de sua missão.
No século XIX, o codificador da doutrina espírita, Allan Kardec, de naturalidade francesa como Joana, trouxe para o mundo um novo conceito do sobrenatural, revelando que somos espíritos eternos e imortais. Desde a sua criação, o espírito percorre uma trajetória evolutiva, habitando sucessivamente dois planos: o visível (encarnado) e o invisível (desencarnado). Como há necessidade da comunicação entre os dois planos, ela é feita por intermediários conhecidos como “médiuns”. Essa comunicação é conhecida como “fenômeno mediúnico”. A partir dessas revelações, constatou-se que Joana D’Arc está bem longe de ser um mistério.
A mediunidade é um talento do qual todos os espíritos são dotados indistintamente a partir da criação e acompanha a sua evolução. Portanto, todos somos médiuns em potencial e os fenômenos mediúnicos sempre existiram em todas as épocas e lugares, independentemente da cultura ou da classe social. Na sua estada terrena como espírito encarnado, Joana D’Arc foi muito mais que uma intrépida guerreira, apresentou faculdades mediúnicas já caracterizadas, mas até então incompreendidas e, por essa razão, rejeitadas. Representando um papel de suma importância para o Espiritismo, tornou-se um de seus prepostos.
A sua vidência se manifestava quando via seus interlocutores, através da audiência ouvia vozes, por pressentimento reconheceu Carlos VII e, sobretudo, provou que inteligência, fé, perseverança e dinamismo são atributos do espírito. Saindo da obscuridade, cumpriu um mandato mediúnico confiado pelo plano superior, que lhe delegou a responsabilidade de direcionar seu povo. Sem renegar sua missão e suas crenças, apresentou em julgamento a firmeza de todos aqueles espíritos evoluídos que encarnaram com tarefa definida, dando um exemplo não só para a França, mas para a humanidade em geral.
Fonte: Revista Cristã de Espiritismo - edição 12
Durante o período da Idade Média, o reino da França era constituído por feudos – propriedades territoriais governadas por um senhor.
Detendo os ingleses a maior parte deles, o fato originou múltiplos conflitos, gerando a Guerra dos Cem Anos entre os dois países. No ano de 1429, quando a guerra atravessava um momento decisivo, com as forças inglesas ocupando grande parte do território francês, a cidade de Órleans, um dos últimos bastiões da resistência e já sitiada, poderia cair a qualquer momento nas mãos dos invasores estrangeiros.
Curvados ao invasor inglês e sem ânimo para se reerguerem, os soldados franceses eram poucos e o moral estava enfraquecido pelas sucessivas derrotas. Além do mais, faltava um chefe, alguém capaz de conduzir as tropas e fazê-las acreditar na possibilidade de sua vitória. Refugiado na localidade de Chinon, o príncipe Carlos hesitava em tomar decisões, tinha sua autoridade contestada ao ser declarado bastardo por tantos compatriotas que negavam ser ele o legítimo herdeiro do trono da França. Naquela altura, jamais se acreditaria que a iniciativa de encetar uma campanha decisiva para renovar a confiança do povo francês para uma resistência aos ingleses partisse de uma jovem que se investiu de tão importante missão. Seu nome: Joana D’Arc.
Nascida no ano de 1412 no vilarejo de Domrèmy, Joana foi criada no seio de uma família de camponeses com três irmãos e uma irmã. Ao lado deles, auxiliava o pai no trabalho da terra tomando conta dos carneiros no pasto. Não aprendeu a ler nem a escrever. Freqüentando assiduamente a igreja do vilarejo, que ficava junto à sua casa, a menina Joana aprendeu o Pai-Nosso, tornando-se muito piedosa.
Recebendo as tarefas
Já adolescente, caia em profundos êxtases, durante os quais afirmava ter visões fantásticas de uma luz viva e que ouvia vozes celestiais a lhe ordenarem duas tarefas: salvar a pátria e coroar o rei. A história de suas visões fantásticas se espalhara rapidamente e, embora despertando controvérsias, o povo passou a acreditar na possível missão da jovem. Enquanto muitos a viam como santa, outros acreditavam que a jovem poderia ser uma enviada do mal.
Embora a notícia da guerra já tivesse se estendido por quase toda a França, a jovem só soube pela pri-meira vez o real significado de uma guerra quando as tropas inglesas estavam bem perto da cidade onde morava. Domrèmy era afastada dos campos de batalha e as notícias andavam bem devagar. Só se sabia de algum fato quando passava um cavaleiro bem informado. Como os caminhos eram ruins, o cavaleiro levava semanas para andar poucos quilômetros.
A guerra atingira um momento crítico. Órleans, a última cidade em poder dos franceses, estava cercada e a França não tinha um rei para defendê-la. Joana, que até então vivera angustiada e indecisa, resolveu procurar o Capitão de Baudricourt, pedindo-lhe uma carta de apresentação e uma escolta para acompanhá-la até o Delfim. Como a população estava ao lado da jovem, o capitão acabou cedendo ante a insistentes pedidos e, com o dinheiro de uma coleta, conseguiram-lhe uma armadura.
Mal cabendo na pesada armadura, a jovem camponesa de 17 anos de idade partiu no dia 23 de fevereiro de 1429, na direção de Chinon. Viajou dez dias decidida a procurar o príncipe herdeiro, com a missão de levá-lo ao trono como rei e salvar a França, prestes a sucumbir totalmente ao peso da invasão inglesa. A sua partida fez nascer uma nova esperança no povo místico da época. Deus a teria enviado para terminar com as guerras e misérias.
A revelação ao príncipe
No Palácio de Chinon, a notícia foi recebida com espanto. Desconfiado daquela menina que se apresentava como salvadora, contando histórias fantásticas, o príncipe resolveu se divertir aplicando um teste na recém-chegada para comprovar a veracidade dos seus relatos. Vestindo-se como um súdito qualquer, entrou por uma porta lateral, misturando-se entre os nobres. Na condição de simples camponesa, a jovem jamais poderia conhecer-lhe a fisionomia, porém, Joana D’Arc não vacilou. Caminhando até um canto dos salões onde alguns nobres fingiam conversar distraídos, ajoelhando-se aos pés do Delfim, diz-lhe humildemente: “Gentil Senhor, em nome de Deus, eu posso dizer que sois filho do rei e herdeiro legítimo do trono da França”.
A aparente dissipação da grande dúvida que pairava em torno da legitimidade do seu nascimento, pela qual o filho de um pai desconhecido não poderia ser o herdeiro do trono, deixou o príncipe aturdido, pedindo a vários bispos e cardeais que interrogassem Joana. Em pouco tempo, a segurança e a simplicidade das respostas dadas pela jovem acabaram por convencer a todos, inclusive o soberano, que, após manter com ela uma conversa cujo teor nunca seria revelado e convencido de que era preciso agir com rapidez, outorgou-lhe o título de “Chefe da Guerra” e, ao mesmo tempo, o comando de uma pequena tropa.
Mas faltava uma espada. Segundo a tradição, a jovem ouvira vozes que lhe indicaram uma excelente espada escondida atrás do altar de Santa Catarina. Enviado até lá, um pagem voltou com uma velha espada, completamente enferrujada. Contam que bastou encostar nela um pano para que a arma ficasse brilhante no mesmo instante.
A primeira vitória contra os ingleses
Liderando a tropa, Joana D’Arc partiu imediatamente com a missão de furar o cerco de Órleans e levar víveres para abastecer os soldados já famintos. Levando nas mãos um estandarte onde, ao lado de Deus, figuravam os nomes de Jesus e Maria e o símbolo do reino (a flor-de-lis), ordenou com sua voz firme uma incursão aos ingleses, devolvendo a confiança a seus compatriotas. Naquele momento, oficiais e soldados recobraram a esperança de vitória perante o exemplo de coragem daquela jovem. Depois de algumas investidas, tomou as principais bases de apoio do inimigo, que, surpreso, levantou o cerco em retirada.
A tropa de Joana entrou triunfante na cidade. Finalmente Órleans estava libertada, marcando a partir daí uma nova fase na Guerra dos Cem Anos. Julgando sua tarefa encerrada, quis se retirar, mas teve de ceder às súplicas do príncipe para dar continuidade à luta. Numa campanha rápida e fulminante, venceu os ingleses nas cidades de Patay e Troyes, apresentando ao soberano as chaves das cidades conquistadas.
Mas isto, para Joana, foi apenas a primeira etapa. Com profundo senso político, sentiu que chegara o momento de coroar solenemente o príncipe na Catedral de Reims. Ocorria que Reims estava situada em território controlado pelos ingleses e, para chegar lá, seria necessário enfrentar os batalhões dos invasores. Joana estava decidida a lutar e acabou convencendo o príncipe. Em apenas um mês de campanha, o exército comandado pela jovem, depois de infligir uma sucessão de derrotas aos ingleses, penetrou em Reims em 16 de julho de 1429.
O príncipe Carlos torna-se rei
Na época, a entrada triunfal numa cidade era o maior símbolo de uma vitória e, enquanto a população nas ruas aplaudia a cavalaria e o estandarte dos vencedores, Joana aproveitou para unir essa festa a uma outra. No dia seguinte, realizou-se solenemente na Catedral de Reims a sagração de Sua Majestade, Carlos VII, como rei da França. De pé, ao lado do rei, tendo na mão seu estandarte, ficou a “Chefe da Guerra” Joana D’Arc. Terminada a cerimônia, tomando a mão do novo soberano diz-lhe: “Gracioso rei, está cumprida a vontade de Deus. Órleans de volta ao reino e Vossa Majestade coroado como único e legítimo rei da França”.
Joana chegou ao apogeu da glória, porém, não estava satisfeita. A França não poderia ser considerada livre se Paris continuava governada por um regente inglês. Mas as coisas mudaram. Na condição de rei coroado, Carlos VII estava finalmente numa posição de força e não mostrava entusiasmo por outras aventuras. Alegava que a missão da jovem estava concluída e que não se poderia confiar eternamente na heroína, tratando-se de uma mulher.
Conspirações contra Joana
Assim, a guerreira passou a se tornar uma personagem incômoda. Entretanto, ante a sua insistência, o soberano acabou lhe concedendo uma pequena tropa para conquistar Paris. A fama de Joana D’Arc era enorme e os ingleses temiam também o prestígio do novo rei. Para impedir que a jovem, de algum modo, cativasse a população de Paris, do outro lado da muralha foi preparada uma longa resistência. Cinqüenta mil pessoas desfilaram de tochas acesas nas mãos, afirmando que Joana D’Arc era instrumento das forças do mal.
Quando o ataque começou, os ingleses deram uma resposta fulminante: a própria Joana é atingida por uma flecha que lhe varou a coxa, abalando muito seu prestígio, sendo necessário retirá-la do campo de batalha, pois ela não queria recuar de modo algum. Mal havia se recuperado de sua ferida, recomeçou a luta na tentativa de libertar Compiègne, enquanto Carlos VII decidiu conciliar os inimigos.
Inicialmente, mandou a jovem evacuar o Castelo de Compiègne, missão sem grande importância, mas perigosa. A jovem penetra no castelo e começa a proteger a retirada das tropas. De repente, quando quase todos haviam saído, a ponte do castelo foi levantada. Joana D’Arc estava prisioneira. Encerrada no alto de uma torre, ficou totalmente só, talvez teria sido traída por seus próprios compatriotas. Na tentativa de escapar, caiu no fosso do castelo.
Foi quando decidiram vendê-la aos ingleses por 10 mil escudos. Colocada numa jaula de ferro, os pés e as mãos amarradas “como uma enviada do mal”, foi entregue para o mais elevado tribunal da Igreja existente na França.
Condenada pela inquisição
A permanência de Joana D’Arc na Terra deu-se na Idade Média, em pleno advento do Cristianismo. Contudo, a Igreja já se deparava com o aparecimento de novas seitas e o misticismo surgia como força importante. Como em religião o sentimento místico e o sentimento religioso acabam se confundindo, havia uma grande preocupação da Igreja em manter os dogmas de fé e um ideal moral, sentindo haver na época uma forte tendência em se acreditar no sobrenatural.
Para patentear sua força, a Igreja precisava de um órgão mais eficaz que os tradicionais tribunais de conventos e acabou encontrando no Tribunal da Santa Inquisição, existente em todas as partes da Europa da Idade Média, um meio de punir os hereges, como eram chamados todos aqueles que, sob qualquer forma, faziam oposição a uma verdade de fé ou a um dogma já firmado. A morte na fogueira tornou-se a punição. Em diversas vezes, a severidade com que as normas foram aplicadas levou à fogueira pessoas inocentes declaradas hereges.
Joana foi entregue ao Tribunal da Santa Inquisição objetivando-se provar que a guerreira não era nada, nem mesmo uma enviada do mal. Sob a presidência de Pierre Cauchon, bispo de Beauvois e aliado dos ingleses, liderando um juri composto por 70 conselheiros religiosos, o tribunal reuniu-se em fevereiro de 1431. Sob a acusação de usar roupas masculinas e dar um cunho de revelação divina às suas visões e profecias, o interrogatório da acusada foi uma verdadeira tortura mental, destinado a confundi-la e levá-la ao desespero. A jovem enfrentou com inteligência e coragem seus inquisidores, sustentando até o fim que as vozes não a haviam enganado.
Considerados os representantes de Deus na Terra, os membros do Tribunal da Santa Inquisição jamais aceitariam o fato de uma mulher obedecer diretamente a vozes celestiais sem o devido respeito à Igreja. Declarada bruxa e herética, foi condenada à morte na fogueira, sob a alegação de que só pelas chamas se destrói uma feiticeira. Carlos VII, o príncipe que ela conduziu ao trono da França, nada fez para libertá-la. Uma santa guerreira poderia ser uma personagem incômoda às combinações diplomáticas.
No dia 30 de maio de 1431, uma grande multidão se aglomerou na Praça Vieux de Marché, em Rouem, palco do suplício de Joana D’Arc. Embora na época a execução se constituisse num espetáculo público, os membros do tribunal, temendo uma manifestação favorável à condenada, tomaram as devidas precauções. Escoltada por 120 homens armados com lanças e espadas, a brava guerreira, com a cabeça raspada, foi conduzida até a praça e amarrada a um poste. Para seus juizes, queimando-a e espalhando suas cinzas estariam destruindo o símbolo da resistência francesa. Naquele momento, o olhar da jovem, mais do que cansaço, demonstrava a dignidade conferida a todos aqueles que são conscientes do dever cumprido.
Heroína nacional e santa
À medida que a nação francesa foi se formando, a figura da guerreira foi cada vez mais sendo glorificada. No ano de 1450, decorridos 37 anos de seu desencarne, concretizou-se o objetivo de Joana D’Arc: Paris reocupada por Carlos VII e os ingleses expulsos de toda a França, determinando o fim da Guerra dos Cem Anos. Porém, a nação só se consolidaria com a Revolução Francesa de 1789.
O reconhecimento do governo e do povo francês veio em 1803, quando foi proclamada heroína nacional. Nesse ano, o imperador Napoleão Bonaparte inaugurou um monumento como justa homenagem àquela considerada a glória mais pura da história da França.
Também a Igreja repararia seu erro. Embora desde a Idade Média, Joana D’Arc tenha sido objeto de veneração popular, somente no ano de 1909 foi beatificada. No ano de 1929 foi canonizada e proclamada Santa Padroeira da França, por decisão do Vaticano.
Para os ingleses, ela continuaria por muito tempo sendo considerada “a bruxa” que os expulsou da França. Entretanto, quase seis séculos após seu martírio, aqueles que visitarem a Catedral de Westminster, em Londres, verão colocada num local de honra uma estátua da santa guerreira. Certamente, é o último lugar onde a camponesa de Domrèmy um dia pensaria estar.
Um dos prepostos da codificação
A passagem de Joana D’Arc pela Terra apresentou traços característicos tão diversificados que, de imediato, parecem fugir do currículo normal das faculdades humanas. Suas visões e pressentimentos, a viagem para Chinon, a autoridade no comando das tropas, a audácia para os padrões femininos da época, a notável inteligência e a coragem perante a morte tornaram-na, ao longo dos tempos, a personagem histórica que mais sofreu estudos contraditórios.
Para os mais crentes, Joana seria venerada como uma santa. Os estudiosos preferiram reconhecê-la como uma valorosa guerreira que representou a personificação do patriotismo popular francês da época, conseguindo arrancar os ingleses da terra natal. Já os indiferentes, embora admirassem a sua figura de certa forma sobrenatural, preferiram ignorar os verdadeiros objetivos de sua missão.
No século XIX, o codificador da doutrina espírita, Allan Kardec, de naturalidade francesa como Joana, trouxe para o mundo um novo conceito do sobrenatural, revelando que somos espíritos eternos e imortais. Desde a sua criação, o espírito percorre uma trajetória evolutiva, habitando sucessivamente dois planos: o visível (encarnado) e o invisível (desencarnado). Como há necessidade da comunicação entre os dois planos, ela é feita por intermediários conhecidos como “médiuns”. Essa comunicação é conhecida como “fenômeno mediúnico”. A partir dessas revelações, constatou-se que Joana D’Arc está bem longe de ser um mistério.
A mediunidade é um talento do qual todos os espíritos são dotados indistintamente a partir da criação e acompanha a sua evolução. Portanto, todos somos médiuns em potencial e os fenômenos mediúnicos sempre existiram em todas as épocas e lugares, independentemente da cultura ou da classe social. Na sua estada terrena como espírito encarnado, Joana D’Arc foi muito mais que uma intrépida guerreira, apresentou faculdades mediúnicas já caracterizadas, mas até então incompreendidas e, por essa razão, rejeitadas. Representando um papel de suma importância para o Espiritismo, tornou-se um de seus prepostos.
A sua vidência se manifestava quando via seus interlocutores, através da audiência ouvia vozes, por pressentimento reconheceu Carlos VII e, sobretudo, provou que inteligência, fé, perseverança e dinamismo são atributos do espírito. Saindo da obscuridade, cumpriu um mandato mediúnico confiado pelo plano superior, que lhe delegou a responsabilidade de direcionar seu povo. Sem renegar sua missão e suas crenças, apresentou em julgamento a firmeza de todos aqueles espíritos evoluídos que encarnaram com tarefa definida, dando um exemplo não só para a França, mas para a humanidade em geral.
Fonte: Revista Cristã de Espiritismo - edição 12
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