domingo, 29 de janeiro de 2012

Chico Xavier: o homem, o médium e o mito


Por Maria Ribeiro

O primeiro contato com o Espiritismo de uma grande parcela de adeptos se faz através de obras como Nosso Lar e similares, o que não deve representar nenhum constrangimento, mesmo porque, são poucos os que podem se vangloriar de terem se iniciado realmente pelo começo – as obras básicas.  

Ouve-se falar, principalmente das obras de André Luiz e Emmanuel em parceria com o Chico, as melhores referências, como se estas não só complementassem, mas substituíssem as obras básicas. Particularmente, já ouvimos mais de uma vez que o livro Nos domínios da mediunidade é um tratado do assunto, deixando O Livro dos Médiuns em plano secundário, o que é um atentado violento ao trabalho de Kardec e às instruções do Espírito de Verdade. Há quem diga que, depois de O Livro dos Espíritos, o livro Nosso Lar é o segundo mais importante da Doutrina. Uma grande parte acredita que estas obras sejam basilares para a compreensão do Espiritismo, pois tudo está lá, dizem. 

Obras da série André Luiz, as de Emmanuel, bem como as de outros médiuns e Espíritos , se fazem admirar pela forma muito bem elaborada com que são produzidas, e não há que se retirar-lhes este mérito: são excelentes escritores. O dilema está quando se compara certos conceitos ditados nestas obras com os que constam no legado kardequiano, e passa-se a perceber diferenças que jamais se conciliariam. Nós, particularmente, com as profícuas trocas de idéias com companheiros e maior tempo dedicado à leitura da Obra Espírita, aos poucos, nos tornamos mais cautelosa e, felizmente, atualmente, podemos nos dizer uma estudiosa menos imprudente. 

Nos últimos tempos surgiram diversos artigos excelentes que analisam obras do Chico e de outros médiuns à luz da Doutrina Espírita; o que é extremamente oportuno e importante, afinal o Espiritismo também ensina que não se devem aceitar tudo o que vem dos Espíritos sem o crivo da razão e da lógica, pois falam segundo seu grau de evolução e em muitos casos, dão informações sem se preocuparem com a verdade, por pura fanfarrice.

O movimento espírita em vigência consagrou algumas obras sem se utilizar dos critérios estabelecidos por Kardec, critérios, aliás, resultantes das experiências do grande mestre francês em parceria com o Espírito de Verdade. Inclusive a FEB recomenda no seu estatuto a obra de Roustaing como objeto de estudos, esta rechaçada por Kardec. Vê-se que desde o início no Brasil, o Espiritismo sofre ataques violentos, sendo ultrajado de uma forma abjeta, indecente, execrável.

Segundo a Doutrina Espírita, o médium é sempre responsável pelas comunicações que recebe, daí ser imprescindível que busque se melhorar intelectual e moralmente, a fim de atrair para si os Bons Espíritos, e estar menos sujeito a mistificações. É inegável que o Chico Xavier fora grande médium, portador de muitas faculdades. Mas, como analisá-lo como Ser, como uma pessoa, como um Espírito filho de Deus igualzinho aos demais?  Sem o intuito de polemizar, mas de trazer elementos para que se crie margem a novas reflexões acerca desta personalidade, recorram-se às questões 100 e seguintes do capítulo primeiro da segunda parte de O Livro dos Espíritos, que estabelecem uma hierarquia entre eles. 

Os Espíritos Puros, classificados como de Primeira Ordem, possuem “superioridade intelectual e moral absolutas em relação aos Espíritos das outras ordens. Alcançaram a soma de perfeições de que é suscetível a criatura; não têm mais que suportar provas ou expiações; gozam de inalterável felicidade; são os mensageiros de Deus, cujas ordens executam para a manutenção da harmonia universal.” Estas são algumas das suas características, e que, na Terra, só temos notícia de um: Jesus, embora seja sabido que existam os que lhes são iguais ou superiores, e ainda, sendo perfeitos, lhes são inferiores, afinal, não se pode esquecer da relatividade nesta hierarquia.

Os da Segunda Ordem, denominados como Bons Espíritos, se distribuem em quatro classes: Benevolentes, Sábios, de sabedoria e Superiores. Genericamente, e entre outras, são caracterizados por possuírem “predominância do espírito sobre a matéria; desejo do bem; uns têm a ciência outros a sabedoria e a bondade. Os mais avançados reúnem o saber às qualidades morais. Não estando ainda completamente desmaterializados, conservam, mais ou menos, segundo sua categoria, os traços da existência corpórea, seja na forma da linguagem, seja nos seus hábitos, onde se descobrem mesmo algumas de suas manias; de outro modo, seriam Espíritos Perfeitos.Quando encarnados, são bons e benevolentes para com os semelhantes. Não os move nem o  orgulho, nem o egoísmo nem a ambição.“ 

Os da Terceira Ordem são os Espíritos imperfeitos distribuídos em cinco classes. “Predominância da matéria sobre o Espírito; propensão ao mal; ignorância, orgulho e todas as más paixões que lhe são conseqüências”, estas algumas de suas características gerais. 

O próprio Codificador assinalou que “de um grau para o outro a transição é insensível e sobre seus limites a pequena diferença se apaga como nos reinos da Natureza, como nas cores do arco-íris, ou ainda, como nos diferentes períodos da vida do homem.” Assim, fica menos difícil um julgamento mais apropriado acerca da personalidade em análise.

Para qualquer pessoa sensata é muito óbvio que o Chico não é um Espírito Puro, perfeito. Daí não fazer sentido o imaginar que ele esteve isento de mistificações; aliás, no Livro dos Médiuns, está esclarecido que não há médium perfeito na Terra, que “o melhor (médium) é aquele que, não simpatizando senão com os bons espíritos, foi enganado o menos freqüentemente.”(OLM- cap XX – item 9)  Ou seja, todo médium, mesmo tendo a assistência dos bons Espíritos, não está isento do assédio dos Espíritos inferiores e nem de ser enganado. No item seguinte está registrado que “os bons Espíritos o permitem, algumas vezes, com os melhores médiuns, para exercerem seu julgamento e lhes ensinarem a discernir o verdadeiro do falso...” Ou seja, nem o médium, nem seus editores, nem os adeptos seus leitores, puderam atender a esta recomendação. 

Sobre este aspecto, errou o Chico, e todo o Movimento Espírita com ele, afinal, alguém quis esclarecê-lo? Porque as editoras que o tutelaram não perceberam os erros gritantes? Das duas uma: ou houve negligência ou espaço para a ambição, já que o sucesso nas vendas era garantido. Veja-se o que o item 303 de O Livro dos Médiuns traz, em resposta sobre os meios de se preservar das mistificações: “...Os Espíritos vêm vos instruir e vos guiar no caminho do bem, e não no das honrarias e da fortuna, ou para servir às vossas paixões mesquinhas...” No item posterior, o Espírito de Verdade adverte: "...Deus permite as mistificações para provar a perseverança dos verdadeiros adeptos e punir os que dele fazem um objeto de diversão.”(nm) E em nota, Kardec assinala: ”...somos bastante felizes por termos podido abrir, a tempo, os olhos a várias pessoas que decidiram pedir nosso conselho, e lhes haver afastado de ações ridículas e comprometedoras...” Este lembrete é  para alertar que o movimento espírita acolhe outras fontes, menosprezando os ensinos kardequianos e Espíritas, dando ensejo às aberrações que já foram denunciadas desde tempos atrás pelos grandes estudiosos do passado, e agora, repetidas pelos do presente, que cada vez encontram mais e mais distorções.

Mas não ser um Espírito perfeito, conseqüentemente não ser um médium perfeito, em nada desabona a pessoa do Chico, primeiro porque ele jamais se declarou como tal, ao contrário, sempre frisava que ainda tinha muitas imperfeições; segundo porque, como se encontra em aprendizado, tem o mesmo direito de errar dos demais. 

O Chico sempre trabalhou muito, em dedicação à família e ao próximo; ainda muito jovem sua saúde começou a ser comprometida, e, com o passar dos anos, foi se debilitando ainda mais. Aos poucos também foi perdendo a visão, o que o impossibilitava de ler, e talvez isto explique o fato de não ter passado em revista as psicografias recebidas. Ao que consta, era de uma personalidade doce, delicada, ingênua mesmo. Definitivamente, não era o tipo de pessoa que tem a sagacidade dos grandes gênios, tanto que confiara todos os seus originais a uma instituição sem garantia alguma, e tudo isso junto põe em dúvida a autenticidade do conteúdo das publicações.

Porém, querer classificá-lo na ordem dos Espíritos imperfeitos não parece muito adequado. Apesar de suas obras serem de conteúdo roustainguista, e isto está mais que provado através de estudos minuciosos de pessoas muito sérias, mas é preciso separar o homem do médium e o médium do Espírita. A influência católica esteve presente em toda a sua vida, portanto talvez o Chico nunca tenha sido um adepto convicto do Espiritismo, o que também não o desmoraliza, pois o título de Espírita jamais oferecerá benefícios espirituais a alguém. Também, não ter sido fiel aos postulados da Doutrina Espírita, se deixando influenciar pelo Roustainguismo, não diminuiu em nada suas conquistas morais. O Chico viveu mais de noventa anos, e ninguém jamais, em tempo algum testemunhou um gesto ou uma palavra má saída de sua boca. Só os loucos quererão imaginar se alguma vez tenha ele pensado algo indigno, afinal, só Deus pode apreciar os pensamentos de suas criaturas. Tinha o desejo do bem; seu Espírito predominava sobre a matéria; era bom e benevolente para com os seus semelhantes; não era movido nem pelo orgulho, nem pelo egoísmo nem pela ambição. A vida dele demonstra isso: morava numa casa simples, nunca angariou nada para si mesmo, nunca pretendeu honrarias, vivia de sua aposentadoria que era de um salário mínimo; sem ter a ciência completa, tinha a bondade. Porque para alguns é tão desconfortável admiti-lo como um homem bom? Ou será que está reservada somente aos profundos conhecedores do Espiritismo a capacidade de alcançar a virtude da bondade?! Erro grave, pois as conquistas intelectivas são muito mais fáceis de ser conseguidas do que as morais. Seria uma pusilanimidade frisar a passagem do Chico nesta última reencarnação apenas pelo seu lado fraco, pois se o médium falhou, o homem cresceu, sedimentou valores cristãos. O verdadeiro espírita não tem que se preocupar apenas com as aquisições intelectuais, mas acima de tudo as morais, cristãs.

Como médium o Chico deixou a desejar, por ter sido muito crédulo em encarnados e desencarnados mal intencionados ou ignorantes, mas como homem foi e é um exemplo de vida, e querer negar isto é forçar uma falsa realidade. A mediunidade está desvinculada do Espiritismo, assim como também o está da Moral. O Espírita sincero tem, necessariamente, obrigações morais a cumprir, especialmente consigo mesmo, aliás, exclusivamente consigo mesmo. E como negar que moralmente falando o Chico Xavier se encontrava quites com sua própria consciência por cumprir seus deveres cristãos com seu próximo?  

A abundância de publicações com suas histórias sedutoras foram fazendo do Chico um ícone da mediunidade, um best seller e, claro, renderam muitos milhões, não para ele mesmo, mas para diversas instituições, inclusive a própria FEB. Outra vez pergunta-se: porque não o esclareceram sobre os equívocos recorrentes? O que faziam, ou onde se encontravam os que se diziam seus amigos, os que estavam com ele no trabalho mediúnico incluindo a própria editora de seus livros? Quais os interesses envolvidos? A quem interessou fazê-lo mito? Há que se considerar, inclusive que, sendo um Espírito em evolução como qualquer outro filho de Deus, pôde se enganar de boa fé. Isto representa para todos mais um aprendizado, e não um motivo para execrá-lo. Em seus ensinamentos, Jesus acolheu a todos, e seus discípulos mais fiéis não eram necessariamente modelos nem de saber nem de virtude. Acolheu em seus braços amorosos uma prostituta, incluiu um cobrador de impostos no seu grupo discipular, comeu com o chefe destes; Jesus era o médico que estava sempre ao lado dos doentes. Portanto, questione-se: quem possui autoridade para querer a exclusão deste trabalhador que até podia não ser Espírita, segundo a acepção reservada ao termo, mas certamente era cristão, da Doutrina? O movimento espírita vigente criou um mito como a mídia comum cria os seus mitos, mas com a diferença de que os resultados para o segundo caso abrangem tanto uma como outros. O Chico não tirou nenhum proveito para si mesmo de tudo o que ocorreu, do uso que fizeram dele. Há várias estórias que envolvem o seu nome, como que para imprimir autoridade, justificando atitudes nem sempre sensatas. Tem “causos” que pecam pelo forte teor fanático não merecendo nenhuma credibilidade. Para nós, particularmente, o Chico foi explorado tanto por encarnados como pelos Espíritos que ele mesmo tanto respeitava, na sua simplicidade ingênua, pueril. Foi mistificado principalmente pela instituição que o tutelou. Enganou-se de boa fé, por acreditar que os que o cercavam eram como ele - desprovido da maldade que azeda o coração; por enxergar em todos, irmãos credores de seu respeito. 

Embora não caiba a ninguém a autoridade para julgar em que patamar evolutivo os outros estão, pode-se acreditar o Chico como um Ser entrando na quinta classe da segunda ordem – um Espírito benevolente, cujos caracteres são: “sua qualidade dominante é a bondade. Alegram-se em prestar serviço aos homens e protegê-los, mas seu saber é limitado. Seu progresso é mais efetivo no sentido moral do que no sentido intelectual.”

Repitam-se os esclarecimentos da Codificação: ”Quando encarnados, são bons e benevolentes para com os semelhantes. Não os move nem o  orgulho, nem o egoísmo nem a ambição. Não experimentam ódio, rancor, inveja ou ciúme, e fazem o bem pelo bem.“ 

Vale também lembrar as palavras indeléveis do Mestre Jesus: “É pelos frutos que se reconhece a árvore.”

É evidente que os livros, mais de quatrocentos, têm utilidade para muitas pessoas: levam consolo, levam lições moralizantes, embora algumas repletas de remanescentes católicos; além de desenvolver o gosto pela leitura, devido à facilidade que muitos encontram de compreensão dessas obras. Há que se considerar que  os adeptos do Espiritismo, não estão todos no mesmo nível de discernimento; há que se ter tolerância para com aqueles que não conseguem ler e estudar Kardec ainda, mas buscam se melhorar interiormente. Muitos não dominam o conteúdo Espírita, mas se preocupam em adquirir novos valores para nortear suas vidas. O cuidado que se tem que ter é com aqueles que, de alguma forma, manipulam e distorcem pessoas e situações, para tirar algum proveito. Aliás, a leitura por si mesma, é inofensiva: ela é a ferramenta para se discernir o que é válido ou não, segundo os parâmetros Espíritas, estando o grande problema na assimilação dos conceitos que ela traz.  E enquanto não houver um Movimento realmente Espírita, dificilmente seu conteúdo será assimilado e compreendido, senão por todos, mas ao menos por uma maior parcela.

A comunidade espírita está acomodada, dir-se-ia, muito acomodada, numa inação que beira a morbidez, e como todo estado mórbido é preocupante, pergunta-se: quem realmente está preocupado com este estado de coisas?  Ou por outra: é lícito que isto seja objeto de preocupação? Se cada um cumprir o seu papel, o que lhes cobra a consciência, não será suficiente para que as coisas se ajeitem? Mas, e o movimento espírita que só se movimenta usando a antonomásia de espírita sem promover um passo real rumo ao estudo e divulgação séria do Espiritismo?

Criticar o Chico Xavier ou tomá-lo por bode expiatório não resolverá o problema das mistificações que foi e é exposto todo o movimento espírita vigente. Outros médiuns publicaram, publicam e publicarão histórias inverídicas e ensinamentos os mais absurdos se não houver uma real movimentação do Espiritismo no Brasil, no mundo. Por enquanto, os estudos e investigações isolados é que podem abrir caminho para que um dia surja um Movimento Espírita de verdade. 

Um comentário:

  1. Excelente análise, altamente sensata e coerente, além da profundidade com que entende o MOVESP no Brasil e no mundo. Sempre quis ler e articular algo assim.

    Obrigado!

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