quinta-feira, 25 de agosto de 2016

[RE] - Mediunidade de vidência nas crianças

Por Allan Kardec

    De Caen escreve um dos nossos correspondentes:

   “Há alguns dias eu estava no hotel São Pedro, em Caen. Tomava um copo de cerveja, lendo um jornal. A filhinha da casa, de aproximadamente quatro anos, estava sentada na escadaria e comia cerejas. Ela não notava que eu a via, e parecia inteiramente envolvida numa conversa com seres invisíveis aos quais oferecia cerejas. Tudo o indicava: a fisionomia, os gestos, as inflexões da voz. Logo ela se voltava bruscamente dizendo:
    - Tu, tu não as terás, porque não és boazinha.
    - Eis para ti! dizia ela a uma outra.
    - Então, o que é que me atiras? perguntava a uma terceira.

    Dir-se-ia que ela estava rodeada por outras crianças. Ora estendia as mãos oferecendo o que tinha, ora seus olhos seguiam objetos invisíveis para mim, que a entristeciam ou faziam gargalhar. Essa pequena cena durou mais de meia hora e a conversa só terminou quando a menina percebeu que eu a observava. Sei que muitas vezes as crianças se divertem em apartes deste gênero, mas aqui era completamente diferente; o rosto e as maneiras refletiam impressões reais que não eram as de uma representação. Eu pensava que sem dúvida se tratava de uma médium vidente em seu nascedouro, e dizia, de mim para mim, que se todas as mães de família fossem iniciadas nas leis do Espiritismo, aí colheriam numerosos casos de observação e compreenderiam muitos fatos que passam desapercebidos, cujo conhecimento lhes seria útil para a direção de seus filhos.”

    É lamentável que o nosso correspondente não tenha tido a ideia de interrogar essa menina quanto às pessoas com quem conversava. Teria podido assegurar-se se a conversa realmente tinha sido com seres invisíveis. Nesse caso, daí poderia ter saído uma instrução tanto mais importante quanto, sendo espírita o nosso correspondente, e muito esclarecido, poderia dirigir utilmente essas perguntas. Seja como for, muitos outros fatos provam que a mediunidade vidente, se não é geral, é pelo menos muito comum nas crianças, e isto é providencial. Quando a criança sai da vida espiritual, seus guias vêm conduzi-la ao porto de desembarque para o mundo terreno, como vêm buscá-la em seu retorno. Eles se mostram a ela nos primeiros tempos, para que não haja transição muito brusca; depois se apagam pouco a pouco, à medida que a criança cresce e pode agir em virtude de seu livre-arbítrio. Então a deixam às suas próprias forças, desaparecendo de seus olhos, mas sem perdê-la de vista. A menina em questão, em vez de ser, como pensa o nosso correspondente, médium vidente nascente, bem poderia estar em seu declínio, e não mais gozar dessa faculdade para o resto da vida. (Vide a Revista de fevereiro de 1865: Espíritos instrutores da infância).

Fonte: Revista Espírita, setembro de 1866

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

[RE] - Espíritos barulhentos. Como livrar-se deles

Por Allan Kardec

Escrevem-nos de Gramat, no Lot: 

“Numa casa da aldeia de Coujet, comuna de Bastat, no departamento de Lot, há cerca de dois meses ouvem-se ruídos extraordinários. A princípio eram golpes secos e muito semelhantes a pancadas de um machado no soalho e escutados por todos os lados: sob os pés, acima da cabeça, nas portas, nos móveis. Depois as passadas de um homem descalço e o tamborilar de dedos nas vidraças. Os moradores ficaram amedrontados e mandaram rezar missas. A população inquieta ia até a aldeia e escutava; a polícia tomou conhecimento, fez várias pesquisas e o barulho aumentou. Em breve as portas se abriam; os objetos eram revirados; as cadeiras projetadas pela escada; os móveis transportados do rés-do-chão para o sótão. Tudo quanto informo ocorre em pleno dia e é atestado por grande número de pessoas. A casa não é um pardieiro antigo, sombrio e negro, que só pelo aspecto faz sonhar com fantasmas. É uma construção recente e risonha. Os proprietários são gente boa, incapazes de querer enganar e morrem de medo. Entretanto muitas pessoas pensam que ali não há nada de sobrenatural e procuram explicar tudo quanto se passa de extraordinário quer pela física, quer pelas más intenções que atribuem aos moradores. Eu, que vi e acredito, resolvi dirigir-me ao senhor para saber quais são os Espíritos que fazem todo esse barulho e conhecer o meio, caso exista, de silenciá-los. É um serviço que prestaria a essa boa gente, etc...”

Os fatos dessa natureza não são raros. Todos eles se assemelham mais ou menos e, em geral, só diferem pela intensidade e por sua maior ou menor tenacidade. Em geral, as pessoas pouco se inquietam quando eles se limitam a alguns ruídos sem consequência, mas tornam-se verdadeira calamidade quando atingem certas proporções.

Nosso distinto correspondente pergunta-nos quais os Espíritos que fazem esse barulho. Não há dúvidas quanto à resposta. Sabe-se que só os Espíritos de uma ordem muito inferior são capazes de tanto.

Os Espíritos superiores, assim como entre nós as pessoas graves e sérias, não se divertem a fazer algazarra. Muitas vezes chamamo-los a fim de lhes perguntar por que motivo assim perturbam o repouso alheio. A maior parte não tem outro objetivo senão divertir-se. São antes Espíritos levianos do que maus. Riem-se do medo que provocam, como das inúteis pesquisas para descobrir a causa do tumulto. Muitas vezes se obstinam junto a um indivíduo que gostam de vexar e que perseguem de casa em casa; outras vezes se ligam a um determinado lugar, sem qualquer motivo, a não ser por capricho. Por vezes também é uma vingança que levam a efeito, como teremos ocasião de ver. Em certos casos, sua intenção é mais louvável: querem chamar a atenção e estabelecer contato, seja para fazer uma advertência útil à pessoa a quem se dirigem, seja para pedir algo para si mesmos. Muitas vezes vimo-los pedir preces; outros solicitavam o cumprimento, em seu nome, de promessas que não puderam cumprir; outros, enfim, no interesse de seu próprio repouso, queriam reparar alguma ação má que tinham praticado quando encarnados.

Em geral não há razão para nos amedrontarmos. Sua presença pode ser importuna, mas não é perigosa. Aliás, compreende-se que tenhamos desejo de nos desembaraçarmos deles. Entretanto, quase sempre fazemos exatamente o contrário do que deveríamos. Se são Espíritos que se divertem, quanto mais levarmos a coisa a sério, mais eles persistem, como meninos travessos que apoquentam tanto mais quanto mais veem que nos impacientamos, e que metem medo aos covardes. Se tomássemos o sábio partido de rir de suas malandrices, acabariam se cansando e deixando-nos tranquilos. Conhecemos alguém que, longe de irritar-se, os excitava, desafiava-os a fazer isto ou aquilo, de modo que ao cabo de alguns dias eles não mais apareceram. Entretanto, como dissemos, alguns têm motivos menos frívolos. Eis por que é sempre útil saber o que eles querem. Se pedem alguma coisa, podemos estar certos de que suas visitas cessarão assim que forem satisfeitos. O melhor meio de instruir-se a respeito é evocar o Espírito através de um bom médium psicógrafo. Por suas respostas veremos imediatamente com quem tratamos e, em consequência, poderemos agir. Se for um Espírito infeliz, manda a caridade que o tratemos com os cuidados que merece. Se for um brincalhão de mau gosto, poderemos agir com ele sem cerimônias. Se for malévolo, é preciso pedir a Deus que o torne melhor. Em todo caso, a prece só bons resultados poderá dar. Mas a gravidade das fórmulas de exorcismo causa-lhes riso e por elas não têm nenhum respeito. Se pudermos entrar em comunicação com eles, é necessário desconfiar das qualificações burlescas ou apavorantes que por vezes se atribuem para divertir-se com a nossa credulidade.

Em muitos casos a dificuldade está em não ter médiuns à disposição. Devemos então procurar substituí-los por nós mesmos ou interrogar o Espírito diretamente, de acordo com os preceitos que damos nas nossas Instruções Práticas sobre as Manifestações.

Embora produzidos por Espíritos inferiores, esses fenômenos são, muitas vezes, provocados por Espíritos de ordem mais elevada, com o fito de nos convencer da existência de seres incorpóreos e de um poder superior ao do homem. A repercussão daí resultante, o próprio medo que causam, chamam a atenção e acabarão por abrir os olhos dos mais incrédulos. Esses acham mais fácil levar tais fenômenos para o plano da imaginação, explicação muito cômoda, que dispensa quaisquer outras. Entretanto, quando os objetos são desarrumados ou atirados à nossa cabeça, fora necessária uma imaginação muito complacente para supor que tais coisas acontecem, quando de fato não acontecem. Se observamos um efeito qualquer, ele terá, necessariamente, uma causa. Se uma observação calma e fria nos demonstra que tal efeito independe de toda vontade humana e de toda causa material; se, além disso, nos dá indícios evidentes de inteligência e de livre vontade, o que constitui o mais característico dos sinais, somos então forçados a atribuí-lo a uma inteligência oculta.

Quem são esses seres misteriosos? Eis o que os estudos espíritas nos ensinam da maneira menos contestável, através dos meios que nos apresentam de com eles nos comunicarmos. Além disso, esses estudos nos ensinam a separar o que é real daquilo que é falso ou exagerado nos fenômenos cujas causas não percebemos. Se se produz um efeito insólito ─ ruído, movimento, até mesmo uma aparição ─ o primeiro pensamento que devemos ter é que seja devido a uma causa absolutamente natural, que é o mais provável. Então é preciso investigar essa causa com o maior cuidado e não admitir a intervenção dos Espíritos senão com conhecimento de causa. É o meio de não nos iludirmos.

Fonte: Revista Espírita, Fevereiro de 1859  

[RE] - Escolhos dos médiuns

Por Allan Kardec

A mediunidade é uma faculdade multiforme. Apresenta uma infinidade de nuanças em seus meios e em seus efeitos. Quem quer que seja apto a receber ou transmitir as comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, seja qual for o meio empregado ou o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até a produção dos mais insólitos fenômenos. Contudo, no uso corrente, o vocábulo tem uma acepção mais restrita e se diz geralmente das pessoas dotadas de um poder mediúnico muito grande, tanto para produzir efeitos físicos como para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra.

Embora não seja a faculdade um privilégio exclusivo, é certo que encontra refratários, pelo menos no sentido que se lhe dá. Também é certo que não deixa de apresentar escolhos aos que a possuem: pode ser alterada e até perder-se e, muitas vezes, ser uma fonte de graves desilusões. Sobre tal ponto julgamos útil chamar a atenção de todos quantos se ocupam de comunicações espíritas, quer diretamente, quer através de terceiros. Através de terceiros, dizemos, porque importa aos que se servem de médiuns poderem apreciar o valor e a confiança que merecem suas comunicações.

O dom da mediunidade depende de causas ainda imperfeitamente conhecidas e nas quais parece que o físico tem uma grande parte. À primeira vista pareceria que um dom tão precioso não devesse ser partilhado senão por almas de escol. Ora, a experiência prova o contrário, pois encontramos mediunidade potente em criaturas cuja moral deixa muito a desejar, enquanto outras, estimáveis sob todos os aspectos, não a possuem. Aquele que fracassa, a despeito de seus desejos, esforços e perseverança, não deve tirar conclusões desfavoráveis à sua pessoa nem julgar-se indigno da benevolência dos Espíritos. Se tal favor lhe não é concedido, outros há, sem dúvida, que lhe podem oferecer ampla compensação. Pela mesma razão, aquele que a desfruta não poderia dela prevalecer-se, pois a mediunidade não é nenhum sinal de mérito pessoal. O mérito, portanto, não está na posse da faculdade medianímica, que a todos pode ser dada, mas no uso que dela fazemos. Eis uma distinção capital, que jamais se deve perder de vista: a boa qualidade do médium não está na facilidade das comunicações, mas unicamente na sua aptidão para só receber as boas. Ora, é nisto que as suas condições morais são onipotentes; é nisso também que ele encontra os maiores escolhos.

Para perceber este estado de coisas e compreender o que vamos dizer é necessário reportar-se ao princípio fundamental de que entre os Espíritos há todos os graus de bondade e de maldade, de conhecimento e de ignorância; que os Espíritos pululam em redor de nós e que, quando nos julgamos sós, estamos incessantemente rodeados de seres que nos acotovelam, uns com indiferença, como estranhos, outros que nos observam com intenções mais ou menos benevolentes, conforme a sua natureza.

O provérbio “Cada ovelha busca a sua parelha” tem sua aplicação entre os Espíritos, como entre nós, e mais ainda entre eles, se possível, porque não estão, como nós, sob a influência de preceitos sociais. Contudo, se entre nós esses preceitos algumas vezes confundem homens de costumes e gostos muito diversos, tal confusão, de certo modo, é apenas material e transitória. A similitude ou a divergência de pensamentos será sempre a causa das atrações e repulsões.

Nossa alma, que afinal de contas não é mais que um Espírito encarnado, não deixa por isso de ser um Espírito. Se se revestiu momentaneamente de um envoltório material, suas relações com o mundo incorpóreo, embora menos fáceis do que quando no estado de liberdade, nem por isto são interrompidas de modo absoluto. O pensamento é o laço que nos une aos Espíritos, e pelo pensamento atraímos os que simpatizam com as nossas ideias e inclinações. Representemos, pois, a massa de Espíritos que nos envolvem, como a multidão que encontramos no mundo. Em todos os lugares aonde preferimos ir encontramos homens atraídos pelos mesmos gostos e pelos mesmos desejos. Às reuniões que têm objetivo sério vão homens sérios; às que são frívolas, vão os frívolos. Por toda parte encontram-se Espíritos atraídos pelo pensamento dominante. Se lançarmos um olhar sobre o estado moral da Humanidade em geral, compreenderemos sem dificuldade que nessa multidão oculta os Espíritos elevados não devem constituir a maioria. É esta uma das consequências do estado de inferioridade do nosso globo.

 Os Espíritos que nos cercam não são passivos. Formam uma  população essencialmente inquieta, que pensa e age sem cessar;  que nos influencia, malgrado nosso; que nos excita e nos dissuade; que nos impulsiona para o bem ou para o mal, o que não  nos tira o livre-arbítrio mais do que os bons ou maus conselhos que recebemos de nossos semelhantes. Entretanto, quando os Espíritos imperfeitos incitam alguém a fazer uma coisa má, sabem muito bem a quem se dirigem e não vão perder o tempo onde veem que serão mal recebidos. Eles nos excitam conforme as nossas inclinações ou conforme os germens que em nós veem e segundo as nossas disposições para escutá-los. Eis por que o homem firme nos princípios do bem não lhes dá oportunidade.

Estas considerações nos levam naturalmente ao problema dos médiuns. Como todas as criaturas, eles são submetidos à influência oculta dos Espíritos bons e maus; atraem-nos e repelem-nos conforme as simpatias de seu próprio Espírito e os  Espíritos maus aproveitam-se de todas as falhas, como de uma falta de couraça, para introduzir-se junto a eles, intrometendo-se, malgrado seu, em todos os atos de sua vida particular. Além disso, tais Espíritos, encontrando no médium um meio de expressar seu pensamento de modo inteligível e de atestar sua presença, intrometem-se nas comunicações e as provocam, porque esperam ter mais influência por este meio e acabam por assenhorear-se dele. Consideram-se como se estivessem em sua própria casa, afastando os Espíritos que lhes poderiam criar embaraços e, conforme a necessidade, lhes tomam os nomes e mesmo a linguagem, com o fito de enganar. Mas não podem representar esse papel por muito tempo. Com um pouco de contato com um observador experimentado e prevenido, logo são desmascarados. Se o médium se deixa dominar por essa influência, os bons Espíritos se afastam dele, ou absolutamente não vêm quando chamados, ou vêm com certa repugnância, porque veem que o Espírito que se identificou com o médium e que por assim dizer nele estabeleceu domicílio, pode alterar as suas instruções. Se tivermos que escolher um intérprete, um secretário, um mandatário qualquer, é evidente que escolheremos não um homem apenas capaz, mas, além disso, digno de nossa estima; que não confiaremos uma delicada missão, bem como nossos interesses a um insano ou a um frequentador de uma sociedade suspeita. Dá-se o mesmo com os Espíritos. Os Espíritos superiores não escolherão, para transmitir instruções sérias, um médium que tenha familiaridade com Espíritos levianos, a menos que haja necessidade e que não encontrem, no momento, outros médiuns à disposição; a menos, ainda, que queiram dar uma lição ao próprio médium, como por vezes acontece; mas, então, dele se servem só acidentalmente e o abandonam, se assim lhes convier, deixando-o entregue às suas simpatias, se ele faz questão de conservá-las. O médium perfeito seria, pois, o que nenhum acesso desse aos maus Espíritos, por um descuido qualquer. Essa condição é muito difícil de preencher, mas se a perfeição absoluta não é dada ao homem, sempre lhe é possível por seus esforços aproximar-se dela, e os Espíritos levam em conta sobretudo os esforços, a força de vontade e a perseverança.

Assim, o médium perfeito não teria senão comunicações perfeitas, em termos de verdade e de moralidade. Desde que a perfeição é impossível, o melhor médium seria o que desse as melhores comunicações. É pelas obras que eles podem ser julgados. As comunicações constantemente boas e elevadas, nas quais nenhum indício de inferioridade fosse notado, seriam incontestavelmente uma prova da superioridade moral do médium, porque atestariam simpatias felizes. Pelo simples fato de que o médium não é perfeito, Espíritos levianos, embusteiros e mentirosos podem imiscuir-se em suas comunicações, alterando-lhes a pureza e induzindo em erro o médium e aqueles que o procuram. Eis o maior escolho do Espiritismo, cuja gravidade não dissimulamos. É possível evitá-lo? Dizemos alto e bom som: sim, é possível. O meio não é difícil, exigindo apenas discernimento.

As boas intenções e a própria moralidade do médium nem sempre bastam para preservá-lo da intromissão dos Espíritos levianos, mentirosos e pseudo-sábios nas comunicações. Além das falhas de seu próprio Espírito, ele pode dar-lhes entrada por outras causas das quais a principal é a fraqueza de caráter e uma confiança excessiva na invariável superioridade dos Espíritos que com ele se comunicam. Essa confiança cega reside numa causa que a seguir explicaremos.

Se não quisermos ser vítimas desses Espíritos levianos, é necessário julgá-los, e para isso temos um critério infalível: o bom-senso e a razão. Sabemos que as qualidades da linguagem que caracteriza entre nós os homens realmente bons e superiores são as mesmas para os Espíritos. Devemos julgá-los por sua linguagem. Nunca seria demais repetir o que a caracteriza nos Espíritos elevados: é constantemente digna, nobre, sem bazofia nem contradição, isenta de trivialidades e marcada por um cunho de inalterável benevolência. Os bons Espíritos aconselham; não ordenam; não se impõem; calam-se naquilo que ignoram. Os Espíritos levianos falam com a mesma segurança do que sabem e do que não sabem; a tudo respondem sem se preocuparem com a verdade. Em um ditado supostamente sério, vimo-los, com imperturbável audácia, colocar César no tempo de Alexandre; outros afirmavam que não é a Terra que gira em redor do Sol. Resumindo: toda expressão grosseira ou apenas inconveniente; toda marca de orgulho e de presunção; toda máxima contrária à sã moral; toda notória heresia científica é, nos Espíritos, como nos homens, inconteste sinal de natureza má, de ignorância ou, pelo menos, de leviandade. Daí deduz-se que é necessário pesar tudo quanto eles dizem, passando-o pelo crivo da lógica e do bom-senso. Eis uma recomendação feita incessantemente pelos bons Espíritos. Dizem eles: “Deus não vos deu o raciocício sem propósito. Servi-vos dele a fim de saber com quem estais a vos relacionar.” Os maus Espíritos temem o exame. Dizem eles: “Aceitai nossas palavras e não as julgueis”. Se tivessem consciência de estar com a verdade, não temeriam a luz.

O hábito de perscrutar cada palavra dos Espíritos, de lhes pesar o valor - do ponto de vista do conteúdo e não da forma gramatical, com que pouco se preocupam eles -naturalmente afasta os Espíritos mal intencionados, que então não vi­riam inutilmente perder seu tempo, de vez que rejeitamos tudo quanto é mau ou tem origem suspeita. Mas quando aceitamos cegamente tudo quanto dizem, quando, por assim dizer, nos ajoelhamos ante sua pretensa sabedoria, eles fazem o que fariam os homens. Abusam de nós.

Se o médium for senhor de si; se não se deixar dominar por um entusiasmo irrefletido, poderá fazer o que aconselhamos. Mas acontece frequentemente que o Espírito o subjuga a ponto de fasciná-lo, levando-o a considerar admiráveis as coisas mais ridículas. Então ele se entrega cada vez mais a essa perniciosa confiança e, estribado em suas boas intenções e em seus bons sentimentos, julga isto suficiente para afastar os maus Espíritos. Não, isso não basta, pois esses Espíritos ficam satisfeitos por fazê-lo cair na cilada, para o que se aproveitam de sua fraqueza e de sua credulidade. Que fazer, então? Expor tudo a uma terceira pessoa desinteressada, para que essa, julgando com calma e sem prevenção, possa ver um argueiro onde o médium não via uma trave.

A ciência espírita exige uma grande experiência que só se adquire, como em todas as ciências, filosóficas ou não, através de um estudo longo, assíduo e perseverante, e por numerosas observações. Ela não abrange apenas o estudos dos fenômenos propriamente ditos, mas também e sobretudo os costumes, se assim podemos dizer, do mundo oculto, desde o mais baixo ao mais alto grau da escala. Seria presunção julgar-se suficientemente esclarecido e graduado como mestre depois de alguns ensaios. Não seria esta a pretensão de um homem sério, pois quem quer que lance um golpe de vista investigador sobre esses estranhos mistérios, vê desdobrar-se à sua frente um horizonte tão vasto que longos anos não bastam para abrangê-lo. Há entretanto quem o queira fazer em alguns dias!

De todas as disposições morais, a que maior entrada oferece aos Espíritos imperfeitos é o orgulho. Este é para os médiuns um escolho tanto mais perigoso quanto menos o reconhecem. É o orgulho que lhes dá a crença cega na superioridade dos Espíritos que a ele se ligam porque se vangloriam de certos nomes que eles lhes impõem. Desde que um Espírito lhes diz: Eu sou Fulano, inclinam-se e não admitem dúvidas, porque seu amor próprio sofreria se, sob tal máscara, encontrasse um Espírito de condição inferior ou de baixo quilate. O Espírito percebe e aproveita o lado fraco; lisonjeia seu pretenso protegido; fala-lhe de origens ilustres que o enfunam ainda mais; promete-lhe um futuro brilhante, honra e fortuna, de que parece ser o distribuidor; se for necessário, mostra por ele uma ternura hipócrita. Como resistir a tanta generosidade? Numa palavra, ele o embrulha e o leva no beiço, como se diz vulgarmente; sua felicidade é ter alguém sob sua dependência.

Interrogamos vários deles sobre os motivos de sua obsessão. Um deles assim nos respondeu. “Quero ter um homem que me faça a vontade. É o meu prazer”. Quando lhe dissemos que íamos fazer tudo para descobrir os seus artifícios e tirar a venda dos olhos de seu oprimido, disse: “Lutarei contra vós e não tereis resultado, porque farei tantas coisas que ele não vos acreditará.” É, com efeito, uma das táticas desses Espíritos malfazejos: inspiram a desconfiança e o afastamento das pessoas que podem desmascará-los e dar bons conselhos. Jamais acontece coisa semelhante com os bons Espíritos. Todo Espírito que insufla a discórdia, que excita a animosidade, que entretém os dissentimentos revela, por isso mesmo, sua natureza má. Seria preciso ser cego para não compreender isso e para crer que um bom Espírito pudesse arrastar à discórdia.

Muitas vezes o orgulho se desenvolve no médium à medida que cresce a sua faculdade. Ela lhe dá importância. Procuram-no e ele acaba por sentir-se indispensável. Daí, muitas vezes, um tom de jactância e de pretensão ou uns ares de suficiência e de desdém, incompatíveis com a influência de um bom Espírito. Aquele que cai em tal engano está perdido, porque Deus lhe deu sua faculdade para o bem e não para satisfazer sua vaidade ou transformá-la em escada para a sua ambição. Esquece que esse poder, de que se orgulha, pode ser retirado e que, muitas vezes, só lhe foi dado como prova, assim como a fortuna para certas pessoas. Se dele abusa, os bons Espíritos pouco a pouco o abandonam e o médium se torna um joguete de  Espíritos levianos, que o embalam com suas ilusões, satisfeitos por terem vencido aquele que se julgava forte. Foi assim que vimos o aniquilamento e a perda das mais preciosas faculdades que sem isso ter-se-iam tornado os mais poderosos e os mais úteis auxiliares.

Isto se aplica a todos os gêneros de médiuns, quer de manifestações físicas, quer de comunicações inteligentes. Infelizmente o orgulho é um dos defeitos que somos menos inclinados a reconhecer em nós e menos ainda a acusar nos outros, porque eles não acreditariam. Ide dizer a um médium que ele se deixa conduzir como uma criança. Ele virará as costas, dizendo que sabe conduzir-se e que não vedes as coisas claramente. Podeis dizer a um homem que ele é bêbado, debochado, preguiçoso, desajeitado e imbecil, e ele rirá disso ou concordará; dizei-lhe que é orgulhoso e ficará zangado. É a prova evidente de que tereis dito a verdade. Neste caso, os conselhos são tanto mais difíceis quanto mais o médium evita as pessoas que os possam dar. Ele foge de uma intimidade que teme. Os Espíritos, sentindo que os conselhos são golpes desferidos no seu poder, empurram o médium, ao contrário, para quem lhe alimente as ilusões. Preparam-se, assim, muitas decepções, com o que sofrerá muito o amor próprio do médium. Feliz dele se não lhe resultarem ainda coisas mais graves.

Se insistimos longamente sobre este ponto foi porque nos demonstrou a experiência, em muitas ocasiões, que isto constitui uma das grandes pedras de tropeço para a pureza e a sinceridade das comunicações dos médiuns. Diante disto, é quase inútil falar das outras imperfeições morais, tais como o egoísmo, a inveja, o ciúme, a ambição, a cupidez, a dureza de coração, a ingratidão, a sensualidade, etc. Cada um compreende que elas são outras tantas portas abertas aos Espíritos imperfeitos ou, pelo menos, causas de fraqueza. Para repelir esses Espíritos não basta dizer-lhes que se vão; nem mesmo basta querer e ainda menos conjurá-los. É necessário fechar-lhes a porta e os ouvidos; provar-lhes que somos mais fortes do que eles ─ e o somos, incontestavelmente pelo amor do bem, pela caridade, pela doçura, pela simplicidade, pela modéstia e pelo desinteresse, qualidades que granjeiam a benevolência dos bons Espíritos. É o apoio deles que nos dá força. Se por vezes nos deixam a braços com os maus, é isso uma prova para a nossa fé e para o nosso caráter.

Que os médiuns não se arreceiem demasiado da severidade das condições de que acabamos de falar. Elas são lógicas, havemos de convir, mas seria erro desanimar. É certo que as más comunicações que podemos receber são indício de alguma fraqueza, mas nem sempre sinal de indignidade. Podemos ser fracos, mas bons. Em qualquer caso, temos nelas um meio de reconhecer as próprias imperfeições. Já dissemos no outro artigo que não é necessário ser médium para estar sob a influência de maus Espíritos, que agem na sombra. Com a faculdade mediúnica, o inimigo se mostra e se trai. Ficamos sabendo com quem tratamos e poderemos combatê-lo. É assim que uma comunicação má pode tornar-se uma lição útil, se soubermos aproveitá-la.

Seria injusto, aliás, atribuir todas as más comunicações à conta do médium. Falamos daquelas que ele obtém sozinho, sem qualquer outra influência, e não das que são produzidas num meio qualquer. Ora, todos sabem que os Espíritos, atraídos por esse meio, podem prejudicar as manifestações, quer pela diversidade de caracteres, quer pela falta de recolhimento. É regra geral que as melhores comunicações ocorrem na intimidade e num círculo recolhido e homogêneo. Em toda comunicação acham-se em jogo várias influências: a do médium, a do meio e a da pessoa que interroga. Essas influências podem reagir umas sobre as outras, neutralizar-se ou corroborar-se. Isto depende do fim a que nos propomos e do pensamento dominante. Vimos excelentes comunicações obtidas em reuniões e com médiuns que não possuíam todas as condições desejáveis. Nesse caso os bons Espíritos vinham por causa de uma pessoa em particular, porque isso era útil. Vimos também más comunicações obtidas por bons médiuns, unicamente porque o interrogante não tinha intenções sérias e atraía Espíritos levianos, que dele zombavam.

Tudo isto requer tato e observação. Compreende-se facilmente a preponderância que devem ter todas essas condições reunidas.

Fonte: Revista Espírita, Fevereiro de 1859