quinta-feira, 22 de novembro de 2012

[Revista Época] - Os avanços da ciência da alma


Uma pesquisa inédita usa equipamentos de última geração para investigar o cérebro dos médiuns durante o transe. As conclusões surpreendem: ele funciona de modo diferente

DENISE PARANÁ, DA FILADÉLFIA, ESTADOS UNIDOS
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MEDIUNIDADE SOB INVESTIGAÇÃO Uma médium brasileira psicografa no laboratório do Hospital da Universidade da Pensilvânia (Foto: Denise Paraná/ÉPOCA)
Estávamos no mês de julho de 2008. Na Rua 34 da cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos, num quarto do Hotel Penn Tower, um grupo seleto de pesquisadores e médiuns preparava-se para algo inédito. Durante dez dias, dez médiuns brasileiros se colocariam à disposição de uma equipe de cientistas do Brasil e dos EUA, que usaria as mais modernas técnicas científicas para investigar a controversa experiência de comunicação com os mortos. Eram médiuns psicógrafos, pessoas que se identificavam como capazes de receber mensagens escritas ditadas por espíritos, seres situados além da palpável matéria que a ciência tão bem reconhece. O cérebro dos médiuns seria vasculhado por equipamentos de alta tecnologia durante o transe mediúnico e fora dele. Os resultados seriam comparados. Como jornalista, fui convidada a acompanhar o experimento. Estava ali, cercada de um grupo de pessoas que acreditam ser capazes de construir pontes com o mundo invisível. Seriam eles, de fato, capazes de tal engenharia?
A produção de exames de neuroimagem (conhecidos como tomografia por emissão de pósitrons) com médiuns psicógrafos em transe é uma experiência pioneira no mundo. Os cientistas Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico Leão e Andrew Newberg, responsáveis pela pesquisa, garantiam o uso de critérios rigorosamente científicos. Punham em jogo o peso e o aval de suas instituições. Eles pertencem às faculdades de medicina da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, da Universidade Federal de Goiás e da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. Principal autor do estudo, o psicólogo clínico e neurocientista Julio Peres, pesquisador do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser), do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, acalentava a ideia de que a experiência espiritual pudesse ser estudada por meio da neuroimagem.
Pela primeira vez, o cérebro dos médiuns foi investigado com os recursos modernos da neurociência 
Em frente ao Q.G. dos médiuns no Hotel Penn Tower, o laboratório de pesquisas do Hospital da Universidade da Pensilvânia estava pronto. Lá, o cientista Andrew Newberg e sua equipe aguardavam ansiosos. Médico, diretor de Pesquisa do Jefferson-Myrna Brind Centro de Medicina Integrativa e especialista em neuroimagem de experiências religiosas, Newberg é autor de vários livros, com títulos como Biologia da crença e Princípios de neuroteologia. Suas pesquisas são consideradas uma referência mundial na área. Ele acabou por se tornar figura recorrente nos documentários que tratam de ciência e religião. Meses antes, Newberg escrevera da Universidade da Pensilvânia ao consulado dos EUA, em São Paulo, pedindo que facilitasse a entrada dos médiuns em terras americanas. O consulado foi prestativo e organizou um arquivo especial com os nomes dos médiuns, classificando-o como “Protocolo Paranormal”.

“É conhecido o fato de experiências religiosas afetarem a atividade cerebral. Mas a resposta cerebral à mediunidade, a prática de supostamente estar em comunicação com ou sob o controle do espírito de uma pessoa morta, até então nunca tinha sido investigada”, diz Newberg. Os cientistas queriam investigar se havia alterações específicas na atividade cerebral durante a psicografia. Se houvesse, quais seriam? Os dez médiuns, quatro homens e seis mulheres, participavam do experimento voluntariamente. Foram selecionados no Brasil por meio de uma longa triagem. Entre os pré-requisitos, tinham de ser destros, saudáveis, não ter nenhum tipo de transtorno mental e não usar medicações psiquiátricas. Metade dos voluntários dizia carregar décadas de experiência no “intercâmbio espiritual”. Outros, menos experientes, apenas alguns anos.
Na Filadélfia, antes de a experiência começar, os médiuns passaram por uma fase de familiarização com os procedimentos e o ambiente do hospital onde seriam feitos os exames. O experimento só daria certo se os médiuns estivessem plenamente à vontade. Todos se perguntavam se o transe seria possível tão longe de casa, num hospital em que se podia perguntar se Dr. Gregory House, o personagem de ficção interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie, não apareceria ali a qualquer momento.
Numa sala com aviso de perigo, alta radiação, começaram os exames. Por meio do método conhecido pela sigla Spect (Single Photon Emission Computed Tomography, ou Tomografia Computadorizada de Emissão de Fóton Único), mapeou-se a atividade do cérebro por meio do fluxo sanguíneo de cada um dos médiuns durante o transe da psicografia. Como tarefa de controle, o mesmo mapeamento foi realizado novamente, desta vez durante a escrita de um texto original de própria autoria do médium, uma redação sem transe e sem a “cola espiritual”. Os autores do estudo partiam da seguinte hipótese: uma vez que tanto a psicografia como as outras escritas dos médiuns são textos planejados e inteligíveis, as áreas do cérebro associadas à criatividade e ao planejamento seriam recrutadas igualmente nas duas condições. Mas não foi o que aconteceu. Quando o mapeamento cerebral das duas atividades foi comparado, os resultados causaram espanto.
Segundo a pesquisa, a mediunidade pode ser considerada uma manifestação saudável 
Surpreendentemente, durante a psicografia os cérebros ativaram menos as áreas relacionadas ao planejamento e à criatividade, embora tenham sido produzidos textos mais complexos do que aqueles escritos sem “interferência espiritual”. Para os cientistas, isso seria compatível com a hipótese que os médiuns defendem: a autoria das psicografias não seria deles, mas dos espíritos comunicantes. Os médiuns mais experientes tiveram menor atividade cerebral durante a psicografia, quando comparada à escrita dos outros textos. Isso ocorreu apesar de a estrutura narrativa ser mais complexa nas psicografias que nos outros textos, no que diz respeito a questões gramaticais, como o uso de sujeito, verbo, predicado, capacidade de produzir texto legível, compreensível etc.
Apesar de haver várias semelhanças entre a ativação cerebral dos médiuns estudados e pacientes esquizofrênicos, os resultados deixaram claro também que aqueles voluntários não tinham esquizofrenia ou qualquer outra doença mental. Os cientistas afirmam que a descoberta de ativação da mesma área cerebral sublinha a importância de mais pesquisas para distinguir entre a dissociação (processo em que as ações e os comportamentos fogem da consciência) patológica e não patológica. Entre o que é e o que não é doença, quando alguém se diz tocado por outra entidade. Os médiuns estudados relataram ilusões aparentes, alucinações auditivas, alterações de personalidade e, ainda assim, foram capazes de usar suas experiências mediúnicas para tentar ajudar os outros. Pode haver, portanto, formas saudáveis de dissociação. Uma das conclusões a que os cientistas chegaram é que a mediunidade envolve um tipo de dissociação não patológica, ou não doentia. A mediunidade pode ser uma expressão comum à natureza humana. Essas conclusões, que ÉPOCA antecipa na edição que chegou às bancas na sexta-feira (16), foram divulgadas na revista científica americana Plos One. O estudo Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao estudo da dissociação tem acesso gratuito desde sexta-feira, dia 16, no endereço eletrônico: dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0049360.
EXPERIÊNCIA 1. Q.G. dos médiuns em quarto do Hotel Penn Tower, na Pensilvânia 2. Médium recebe marcador radioativo para captar a atividade cerebral durante o transe 3. Escaneamento cerebral por meio da técnica de tomografia computadorizada com emissão de  (Foto: Denise Paraná/ÉPOCA)


O maior de todos os psicógrafos
Naquele verão, na Filadélfia, os dez médiuns produziram psicografias espelhadas – escritas de trás para a frente –, redigiram em línguas que não dominavam bem, descreveram corretamente ancestrais dos cientistas que os próprios pesquisadores diziam desconhecer, entre outras tantas histórias. Convivendo com eles naquele experimento, colhendo suas histórias, ouvindo os dramas e prazeres de viver entre dois mundos, encontrei diferentes biografias. Todos eles compartilham, porém, a crença de que aquilo que veem e ouvem é, de fato, algo real. Outro ponto em comum: todos nutriam enorme respeito por Chico Xavier, considerado o modelo de excelência da prática psicográfica.

Mineiro de família pobre, fala mansa e sorriso tímido, Chico Xavier recebeu apenas o ensino básico. Isso não o impediu de publicar mais de 400 livros, alguns em dez idiomas diferentes, cobrindo variados gêneros literários e amplas áreas do conhecimento. Ao final da vida, vendera cerca de 40 milhões de exemplares, cujos direitos autorais foram doados. Psicografou por sete décadas. Nenhum tipo de fraude foi comprovada. Isso não significa que seus feitos mediúnicos sejam absoluta unanimidade. Há controvérsias. O pesquisador Alexandre Caroli Rocha, doutor em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chegou a conclusões que parecem favorecer a hipótese de que Chico fosse mesmo uma grande e sintonizada antena. Em seu mestrado, ele analisou o primeiro livro publicado pelo médium,Parnaso de além-túmulo, que trazia 259 poemas atribuídos a 83 autores já mortos.
Seu estudo considerou os aspectos estilísticos, formais e interpretativos dos poemas e concluiu que a antologia não era um produto de imitação literária simples. Rocha descobriu, por exemplo, que Guerra Junqueiro (1850-1923), um dos autores mortos, assinava a continuação de um poema inacabado em vida. Não havia indício de que Chico tivesse tido acesso ao poema antes de psicografar sua continuação. No doutorado, Rocha concluiu que Chico reproduzia perfeitamente o estilo do popular escritor Humberto de Campos (1886-1934). Nos textos que saíam da ponta de seu lápis havia, segundo Rocha, um estilo intrincado e sofisticado, detectável apenas por aqueles que conhecem bem como Humberto de Campos funciona. Muitos dos textos atribuídos a Campos continham informações que estavam fora do domínio público. Encerradas num diário secreto, tais informações só foram reveladas 20 anos depois da morte de Campos e do início da produção mediúnica de Chico.
Cérebro mediúnico (Foto: Reprodução/Revista ÉPOCA)
A ciência pode desvendar a natureza da alma? 
“Se eu pudesse recomeçar minha vida, deixaria de lado tudo o que fiz, para estudar a paranormalidade.” Essa confissão de Sigmund Freud a seu biógrafo oficial, Ernest Jones, marca um dos capítulos pouco conhecidos da história do pensamento humano. Pouca gente sabe também que muitas das teorias reconhecidas hoje pela ciência sobre o inconsciente e a histeria baseiam-se em trabalhos de pesquisadores que se dedicaram ao estudo da mediunidade. Talvez menos gente saiba que Marie Curie, a primeira cientista a ganhar dois prêmios Nobel, e seu marido, Pierre Curie, também Nobel, dedicaram espaço em suas atribuladas agendas ao estudo de médiuns. No Instituto de Metapsíquica em Paris, no início do século passado, Madame Curie inquiriu com seus assombrados olhos azuis a médium de efeitos físicos Eusapia Palladino. O casal Curie supôs que os segredos da radioatividade poderiam ser revelados por meio de uma fonte de energia espiritual. Quem seria capaz de imaginar isso hoje?

Outros cientistas laureados com o Nobel consagraram parte de sua vida buscando respostas para os mistérios da alma e a possibilidade de comunicação com os mortos. Pesquisas que hoje seriam consideradas assombrosas, como materialização de espíritos, movimentação de objetos à distância, levitação etc., foram realizadas na passagem entre os séculos XIX e XX. Houve forte oposição materialista. Experimentos frustrados e a comprovação de fraude de alguns médiuns lançaram um manto de ceticismo e silêncio sobre o tema. Essa linha de pesquisa entrou em crise. Experimentos com mediunidade aos poucos se tornaram uma mácula nos currículos oficiais dos eminentes cientistas. E a ciência moderna acabou por condenar ao esquecimento inúmeras pesquisas científicas sobre o assunto, algumas rigorosas. Enquanto o cinema, a TV e a literatura cada vez se apropriam mais das questões do espírito, a ciência dominante tem torcido o nariz e deixado essas reflexões fora de seu campo.
A questão tem sido esquecida, mas não totalmente. Apesar de ainda tímidas, pesquisas científicas sobre comunicações mediúnicas, como a da Filadélfia, têm sido realizadas recentemente. Basicamente, encontraram que, além de fenômenos que revelam fraude proposital ou inconsciente do médium, há muito a explicar. Muita coisa não cabe dentro do discurso que prevalece hoje na ciência. Pesquisadores da área acreditam que a telepatia do médium com o consciente ou o inconsciente daquele que deseja uma comunicação espiritual não explica psicografias nas quais se revelam informações desconhecidas das pessoas que o procuram.
A mensagem
Para os céticosA ciência precisa investigar a sério a hipótese da comunicação entre médiuns e mortos
Para os crentes
Essa hipótese ainda precisa passar por mais investigações para ser comprovada  
 Muitas informações fornecidas por médiuns, dizem eles, se confirmaram verdadeiras só mais tarde, após pesquisa sobre o morto. Como pensar então em telepatia se só o morto detinha as informações? Seria possível a ideia de comunicação direta com os mortos? Alguns cientistas que estudam as percepções mediúnicas discordam dessa hipótese. Acreditam que é possível não haver limite de espaço e tempo para percepções mediúnicas. O médium poderia andar para a frente e para trás no tempo e no espaço, coletando as informações que desejasse, quando e onde elas estivessem. Num fenômeno em que comprovadamente não houvesse fraude ou sugestão inconsciente, sobrariam apenas duas hipóteses: ou haveria a capacidade do médium de captar informações em outro espaço e tempo; ou existiria mesmo a capacidade de comunicação entre o médium e o espírito de um morto.
Atuais referências no estudo científico de fenômenos tidos como espirituais, cientistas como Robert Cloninger, Mario Beauregard, Erlendur Haraldsson, Stuart Hameroff e Peter Fenwick aplaudem a iniciativa de Julio Peres em seu estudo. Esse neurocientista brasileiro, que tem colhido apoio em seus pares, afirma que seus achados “compõem um conjunto de dados interessantes para a compreensão da mente e merecem futuras investigações, tanto em termos de replicação como de hipóteses explicativas”. Outro coautor do estudo, o psiquiatra Frederico Camelo Leão, coordenador do Proser, defende mais estudos acerca das experiências tidas como espirituais. “O impacto das pesquisas despertará a comunidade científica para como esse desafio tem sido negligenciado”, diz.
O QUE É MATÉRIA E O QUE NÃO É? Da esquerda para a direita, os cientistas Alexander Moreira-Almeida, Júlio Peres e Andrew Newberg discutem os exames em 2008. O artigo final com todos os achados só foi publicado quatro anos depois (Foto: Denise Paraná/ÉPOCA)
O pesquisador Alexander Moreira-Almeida, coautor do estudo e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora, é o principal responsável por colocar o Brasil em destaque nessa área no cenário internacional. Moreira-Almeida recebeu o Prêmio Top Ten Cited, como o primeiro autor do artigo mais citado na Revista Brasileira de Psiquiatria, com Francisco Lotufo Neto e Harold G Koenig. É editor do livro Exploring frontiers of the mind-brain relantionship (Explorando as fronteiras da relação mente-cérebro, em tradução livre), pela reputada editora científica Springer.
Ele afirma que a alma, ou como prefere dizer, a personalidade ou a mente, está intimamente ligada ao cérebro, mas pode ser algo além dele. Para esse psiquiatra fluminense, pesquisas sobre experiências espirituais, como a mediunidade, são importantes para entendermos a mente e testarmos a hipótese materialista de que a personalidade seja um simples produto do cérebro. Moreira-Almeida lembra que Galileu e Darwin só puderam revolucionar a ciência porque passaram a analisar fenômenos que antes não eram considerados. “O materialismo é uma hipótese, não é ainda um fato cientificamente comprovado, como muitos acreditam”, diz Moreira-Almeida.
Apesar de todos os avanços da ciência materialista, a humanidade continua aceitando as dimensões espirituais. Dados do World Values Survey revelam que a maioria da população mundial acredita na vida após a morte. Em todo o planeta, um número expressivo de pessoas declara ter se sentido em contato com mortos: são 24% dos franceses, 34% dos italianos, 26% dos britânicos, 30% dos americanos e 28% dos alemães. Não há dúvida de que o materialismo científico foi instrumento de enorme progresso para a humanidade. A dúvida é se ele, sozinho, seria capaz de explicar toda a experiência humana. Para a maioria da população, a visão materialista parece deixar um vazio atrás de si. Na busca de respostas para nossas principais questões, muitos assinariam embaixo da frase de Albert Einstein: o homem que não tem os olhos abertos para o mistério passará pela vida sem ver nada.

* Denise Paraná é jornalista, doutora em ciências humanas pela Universidade de São Paulo e pós-doutora, como visiting scholar, pela Universidade de Cambridge, Inglaterra 
Revista Época - 19 de Novembro de 2012 - Número 757

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Jornalismo: Consolo, Drama ou Informação?


Por José Rodrigues

Informação e jornalismo são especialidades da comunicação. Esta, caracteriza-se pela formação da comunidade, o resultado de tornar comuns, do conhecimento de maior número de receptores, os fatos, descobertas, fenômenos. Na verdade, quem comunica faz uma partilha, distribui ou redistribui alguma coisa, exercita um processo que pode ter múltiplas consequências, de ordem econômica, social, política, moral, comportamental e que sofre censuras ou estímulos, conforme os interesses em jogo. 

Comunicar, no entanto, não é tudo. Buzinar é uma forma de comunicação, como o é uma placa de contramão no trânsito. Quando se buzina, pode-se apenas estar dando um sinal de alerta, como de um aviso “cheguei”. Muitas buzinadas podem demonstrar impaciência, irritação, má-educação; pode-se até estabelecer um código de sons ou de ruídos com o mesmo instrumento, dando forma à comunicação: eis o conceito de informação.

Informar, informação (do latim informatio) significa organizar, dar forma à mensagem que se quer transmitir.

Pode-se passar a informação por vários meios, um deles o jornal, base da atividade chamada jornalística. Esses processos se tornaram tão importantes no mundo que se criaram em seu torno novas ciências e se buscam sempre novas tecnologias para aperfeiçoá-los, torná-los mais rápidos, precisos, nítidos, e o quanto possível, ao alcance da maioria.

Arthur Clark, tido como o pai da comunicação, diz: “Não se locomova, comunique-se”. Para ele, o homem é um animal comunicativo por excelência, e que pode passar mais tempo sem beber água do que sem informações.

Mas ao contrário de outras formas de comunicação, que podem ser estáticas, como a placa do trânsito, a jornalística tem uma exigência essencial, a bilateralidade, tanto que Tristão de Athayde classificou o jornalismo como literatura sob pressão. Portanto, fazer jornal é entrar em uma via de mão dupla, contar com o feedback (o retorno) para continuar, corrigir rumos, formas, pois do contrário se estará fazendo apenas divulgação, propaganda ou propagação.

JORNALISMO ESPÍRITA

O jornalismo espírita, nascido com a Revista Espirita, de Allan Kardec, em 1858, procurou desenvolver-se, diria, com preocupações laicas e dentro de padrões de bilateralidade. No número um da Revista, Kardec dá ampla abertura ao objeto do novo mundo que descobria, ao afirmar: “A consequência capital que se destaca desses fenômenos (espíritas) é a comunicação que os homens podem estabelecer com os seres do mundo incorpóreo e, dentro de certos limites, o conhecimento que podem adquirir de seu estado futuro”. Não se preocupava, como se vê, com ideias catequistas, de mão única, em termos de comunicação.

Ainda explicando os objetivos da publicação e assim caracterizando o seu sentido jornalístico, delineia: “No que concerne às manifestações atuais, relataremos todos os fenômenos patentes que testemunharmos ou que chegarem ao nosso conhecimento, sempre que nos parecerem merecedores da atenção dos nossos leitores. (...) À citação dos fatos ajuntaremos a pesquisa das causas que os poderiam ter produzido”.

Autores espíritas que se seguiram a Allan Kardec desde o final do século passado ao início deste, mantiveram a mesma linha prioritariamente informativa dos fenômenos, objeto de suas investigações. Conhecer e informar caracteriza qualquer ciência, mesmo a filosófica, tal como Allan Kardec definiu o Espiritismo. Tratava-se, para Kardec e seus contemporâneos, de pegar os fios da meada da história do homem, pois aí também estaria a história da Doutrina Espírita, um grande mergulho no Ser para que, dos conhecimentos do presente e do passado, se perscrutasse o futuro.

Mas, esse entendimento original teria modificações profundas ao longo do tempo, antecipando-se o consolo, que seria uma consequência, à informação. Talvez pela forte prevalência do pensamento católico na vida brasileira, não apenas a literatura espírita, como o jornalismo espírita, penetraram por linhas de comparação e confronto, abrindo então escolas nada investigativas e muito afirmativas sobre posições doutrinárias. Não se queria provar o Espírito, mas destruir o inferno ou o céu católicos, os rituais e o profissionalismo religioso. Essa postura ganhou muito corpo, direcionando o interesse dos espíritas, marcadamente os de formação religiosa. De forma imperceptível criava-se uma nova religião e, como tal, desprezava-se a pesquisa, sem a qual ideia alguma consegue subsistir e avançar.

INFORMAÇÃO X CONSOLO

Quando se coloca o consolo à frente da informação, supõe-se que há uma ideia de hegemonia, de lavagem cerebral, talvez disfarçada. Um desconsolado é alguém carente de muitas coisas, de afeto, carinho, compreensão e também de conhecimentos específicos sobre o universo que não lhe atendeu as expectativas e o frustrou. Nem Jesus preocupou-se em ser um modelo de consolo. Ao contrário, não perdeu as oportunidades de fixar posições que implicassem em mudanças, como quando se dirigiu ao jovem rico para que vendesse tudo o que tinha e desse o resultado aos pobres, ou quando expulsou os vendilhões do templo. Os hipócritas, coitados, não tiveram vez: “ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! porque rodeais o mar e a terra para fazer um prosélito; e, uma vez feito, o tornais filho do inferno duas vezes mais do que vós”.

O recado era claro, nada de proselitismo, aliciamento nem venda de ameaças, como se tem feito em nome de supostas mediunidades, através de diagnósticos apressados, que procuram sobrecarregar pessoas com responsabilidades acima de suas compreensões e possibilidades. E ainda se chama a isso de consolo!

A imprensa espírita, o nosso jornalismo, refletiria esse estágio limitado, aprisionador do verdadeiro pensamento doutrinário do Espiritismo e indo mais além. Fez-se a escola do não-questionamento, do oba-oba, quer dizer, o Espiritismo é o maior e estamos conversados. Foi a longa fase dos estereótipos, da voz modulada, das imitações de grandes oradores, das confrarias e endeusamentos de médiuns. Não foi por menos que J. Herculano Pires, com rasgos de independência, bradou: “chega de pieguice religiosa, de palestras sem fim sobre a fraternidade impossível no meio de lobos vestidos de ovelhas. Chega de caridade interesseira, de imprensa condicionada à crença simplória, de falações emotivas que não passam de formas de chantagem emocional”.

Foi também por causa desse modelo que a imprensa espírita desdenhou a modernização de sua imagem, mantendo-se por muitos anos sem preocupações de forma, sem diagramar as páginas, sem utilizar ilustrações como fotos e desenhos. Sinônimo de pobre, esse trabalho não avançaria para uma temática aberta, onde o pensamento espírita pudesse ser cotejado com o de outras escolas. Fez-se o espírita sem problemas. Mas existiria mesmo esse personagem? Ou na hora do vamos ver, o mundo se apresentaria com toda sua realidade e peso?

LINGUAGEM DOUTRINÁRIA

Ao tratar da teoria do conhecimento, Johannes Hessen, professor da Universidade de Colônia, Alemanha Ocidental, coloca que a verdade resulta do relacionamento entre o pensamento e o objeto. O pensamento pode correr pelo dogmatismo, pelo cepticismo, subjetivismo e relativismo, como pelo pragmatismo ou através do criticismo. Há um valor fundamental para a experiência na acumulação do conhecimento, que, todavia, não é absoluto. O pensamento, conforme coloca Hessen, goza de uma autonomia sem limites e que nem sempre segue os parâmetros da razão. Para em algum momento torná-lo lógico, há que se recorrer ao criticismo, um meio termo entre o dogmatismo e o ceticismo. É preciso pedir contas, saber dos motivos, perguntar à razão, para que o conhecimento se incorpore ao saber e se chegue à verdade.

Naturalmente que, em termos espíritas, o objeto do jornalismo depende do objeto espírita em si. Em outros termos, o que é o Espiritismo e qual sua utilidade no mundo? Aqueles que se satisfizerem com os conceitos salvacionistas de Espiritismo farão um jornalismo consolativo, talvez dramático, sancionador de penas e castigos. Não diria que esses comunicadores desprezam os porquês, mas se caracterizam pela utilização de estereótipos, de textos padronizados pela literatura mediúnica, com teses conformistas e de efeitos superficiais.

O conceito evolucionista de Espiritismo, bem posto por Manuel S. Porteiro ao tratar da vida como um fenômeno dínamo-genético e da história como expressão do dínamo- psiquismo dos seres vivos até o homem, certamente produzirá um jornalismo no qual a informação terá antecedência ao consolo. Da função-drama nem há o que falar. Se consolo houver, será resultado da exposição de ideias, em linguagem doutrinária e não doutrinante, da pesquisa, do debate, do estudo, da exposição dos fatos seguindo uma argumentação desapaixonada.

A imprensa maior, mesmo com suas linhas ideológicas, preocupa-se hoje e muito em trabalhar com textos mais abertos, sem a intenção de fazer a cabeça do leitor. Jornais que têm adotado essa linha ganharam mais leitores, enquanto os carrancudos, de pautas fechadas, tratam de modificar-se naquela direção.

Se o jornalismo espírita quiser sobreviver, de certo modo respeitando o intelecto de quem lê, terá que, primeiro, auscultar de novo seu objeto — para que existo? — e depois avançar em direção ao debate, mesmo porque não há conhecimentos acabados por definitivo. Terá que ir atrás da informação, no sentido jornalístico do termo, numa busca permanente e incessante; senão, deixará de fazer jornal e de praticar jornalismo.

Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, junho de 1990. Licespe – Santos-SP.

José Rodrigues (1937-2010), economista e jornalista, um dos fundadores e editores do site Pense - Pensamento Social Espírita e fundador da ARS - Ação de Recuperação Social, de Santos-SP, foi redator do periódico Espiritismo e Unificação e membro do conselho de redação do Abertura - jornal de cultura espírita. É autor do livro “Vila Socó: Uma Tragédia Programada”.

Retirado do site PENSE - Pensamento Social Espírita - http://viasantos.com/pense/arquivo/1376.html

Espíritos de Crianças na Erraticidade


Por Maria das Graças Cabral

O tema do presente artigo adveio do questionamento feito por um leitor do blog Um Olhar Espírita, quando indagou se seria possível a existência de crianças na erraticidade, posto que, no grupo espírita que frequenta muito comumente elas se apresentam nas reuniões mediúnicas desenhando flores.

Para alcançarmos o entendimento do assunto em pauta, precisamos pontuar e analisar alguns aspectos propostos em O Livro dos Espíritos. Inicialmente trataremos de “períspirito”. Asseveram os Mestres da Espiritualidade, que o Espírito é envolvido por uma substância vaporosa, denominada por Kardec de “períspirito”, que é retirado do “fluido universal de cada globo”.

Pode-se atribuir ao períspirito duas finalidades. Lembrando que ainda estamos longe de conhecer todos os seus atributos. Dizem-nos os Espíritos da Codificação, que na condição de encarnado, ele serve de liame entre o Espírito e o corpo material.

Já para o desencarnado, o períspirito funciona como o envoltório semimaterial, que toma a forma ao “arbítrio” do Espírito. Portanto, afirmam os Mestres Espirituais que é através do períspirito que aquele “aparece algumas vezes, seja nos sonhos, seja no estado de vigília, podendo tomar uma forma visível e mesmo palpável”. (O Livro dos Espíritos, questão 95)

Importante tais elucidações, para clarificar que o Espírito se apresentará tomando a forma a seu alvedrio, objetivando ser reconhecido por aqueles que o conheceram sob tal roupagem, ou para atender outras questões de seu interesse. Entretanto, comumente será visto sob a forma e identidade de sua última encarnação.

Senão vejamos o questionamento feito por Kardec a respeito: - “Como a alma constata a sua individualidade, se não tem mais o corpo material”. Respondem os Espíritos que através do períspirito representará a aparência da sua última encarnação. (O Livro dos Espíritos, pergunta 150-a) (grifos nosso)

No que tange a volta ao mundo espiritual, oportuno ressaltar que a consciência de si mesmo e de sua condição espiritual não se faz de pronto. Daí, grande parte dos Espíritos vivenciam o chamado “estado de perturbação”. Asseveram os Espíritos da Codificação, que tal estado varia de acordo com o grau evolutivo do desencarnado. “Aquele que já está depurado se reconhece quase imediatamente, porque se desprendeu da matéria durante a vida corpórea enquanto o homem carnal, cuja consciência não é pura, conserva por muito tempo mais a impressão da matéria”. (O Livro dos Espíritos, p.164)

Pode-se inferir de tal assertiva, que as pessoas mais espiritualizadas, esclarecidas, moralizadas, se desvincularão mais rapidamente do corpo físico e das questões próprias da vida material, tomando consciência de si mesmas, e da realidade espiritual que as envolve.

Em contrapartida, a grande parte dos que vivem às voltas apenas com as questões próprias da vida material, levará um tempo considerável para se libertar das sensações e impressões do corpo físico, como das questões cotidianas que dizem respeito ao mundo dos encarnados.

Ao tratar do “retorno à vida espiritual”, Kardec indaga na questão 149 de O Livro dos Espíritos, em que se transforma a alma no instante da morte. Respondem os Espíritos Superiores que “volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos que ela havia deixado temporariamente”. Argui então o Codificador na questão 150 da referida obra, se “a alma conserva a sua individualidade após a morte”, ao que os Mestres respondem que o Espírito não a perde jamais.

Portanto, pelo desenvolver das ideias, fica claro que é através do períspirito que o Espírito tomará a forma que lhe convém, buscando retratar a sua individualidade. Entretanto, a consciência de si mesmo e de sua condição de desencarnado vai depender do tempo de duração do seu estado de perturbação, que por sua vez dependerá de uma maior ou menor ligação com a vida material. Esse é um preceito geral aplicável a todos os Espíritos que desencarnam no planeta Terra.

Depois da regra geral apresentada, vamos adequá-la aos indivíduos que desencarnam na infância. A esse respeito, vale ressaltar que tais crianças poderão ser Espíritos com muito mais experiência do que os adultos que ficaram no plano físico.

Aliás, asseveram os Mestres da Espiritualidade que tal evento é bastante comum, e que “a duração da vida da criança pode ser, para o seu Espírito, o complemento de uma vida interrompida antes do tempo devido, e sua morte é frequentemente uma prova ou uma expiação para os pais”. (O Livro dos Espíritos, perguntas 197/199)

Faz-se por oportuno observar que o Espírito que desencarna criança, não é um “Espírito criança”. Já tem uma longa bagagem de experiências a ponto de já encarnar em um corpo de grande complexidade, que é o caso do corpo humano. Portanto, como dito anteriormente, pode até ser um Espírito muito mais experiente e evoluído do que os pais.

Adiante questiona Kardec em que se transforma o Espírito de uma criança morta em tenra idade. Aliás, particularmente nos países subdesenvolvidos, é grande número de crianças que vivem poucas horas, dias, meses ou alguns anos, vindo precocemente a desencarnar pelas mais diversas causas. Ao que respondem os Espíritos: - “Recomeçar uma nova existência”. Ou seja, serão preparados para uma nova encarnação. (O Livro dos Espíritos, pergunta 199-a)

Por fim, o Codificador indaga: - “Com a morte da criança o Espírito retoma imediatamente o seu vigor primitivo”? Respondem os Mestres Espirituais: – “Assim deve ser, pois que está desembaraçado do seu envoltório carnal; entretanto, ele não retorna a sua lucidez primitiva enquanto a separação não estiver completa, ou seja, enquanto não desaparecer toda a ligação entre o Espírito e o corpo”. (O Livro dos Espíritos, pergunta 381) (grifos nosso)

Observa-se, portanto, que a forma infantil de se apresentar, se deve ao estado de perturbação. Ou seja, é a forte ligação com o corpo material, que não permite ao Espírito identificar-se no “vigor primitivo” como dizia Kardec.   

Diante do exposto, pode-se concluir que passado o estado de perturbação, onde o Espírito tomará consciência de si mesmo e de sua condição espiritual, não haverá porque se fazer representar tomando a forma infantil.

Não obstante, vale pontuar algumas hipóteses. Um Espírito evoluído que passou por um breve período de perturbação ao desencarnar, poderá tomar a forma de criança para confortar e ser reconhecido pelos pais, familiares ou amigos encarnados que sofrem a saudade de sua partida precoce.

Muito comumente, pais que perderam filhos a mais de vinte, trinta anos, relatam que viram, sonharam, falaram com suas crianças que se mostravam com a mesma aparência que tinham ao desencarnar. Nesse caso, pode-se entender que tais Espíritos, caso não mais estejam em estado de perturbação, procurassem retratar a forma infantil para serem reconhecidos por genitores e/ou familiares.

Mas, e as crianças que comparecem às reuniões mediúnicas espíritas, ou são vistas transitando por casas, ruas, hospitais, templos, etc.? Já sabemos a resposta. São Espíritos em estado de perturbação, ainda fortemente ligados ao corpo material, sem consciência de si e de sua condição de desencarnado.

Não obstante, pode-se considerar uma nova hipótese. Somos sabedores que em razão da plasticidade do períspirito, e da capacidade que tem o Espírito de moldá-lo ao seu arbítrio, Espíritos inferiores, não mais em estado de perturbação, poderão apresentar-se como crianças, objetivando outros interesses. Por que não? É outra possibilidade a se aventar.

E então o que fazer? Orar por todos, conversar mentalmente, e buscar ajudá-los a se perceberem como Espíritos que são. Afinal não existem “Espíritos crianças”, pois o período de infância, adolescência, maturidade e envelhecimento, é uma condição do corpo físico, que obedece a esse processo orgânico de maturação, próprio dos nativos do planeta Terra.

No que concerne ao Espírito, este tem a sua infância espiritual dimensionada pelo grau de inexperiência diante das Leis Universais. A infância espiritual se faz identificar pelo estado de ignorância. Como dizem os Mestres Espirituais todos os Espíritos são criados simples e ignorantes.

Pode-se asseverar que será mediante o processo de evolução moral e intelectual que o Espírito alcançará a maturidade. O corpo físico é apenas um instrumento necessário para o aprendizado no planeta Terra. Morre o corpo infantil, e sobrevive o Espírito imortal e eterno, com toda uma bagagem de aquisições intelectuais e morais, advindas das múltiplas experiências reencarnatórias, e que integram a sua individualidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Editora LAKE. São Paulo/SP. 62ª edição. 2001.

A mediunidade e a inspiração


Revista Espírita, março de 1869 - Dissertações espíritas

(Paris, grupo Desliens, 16 de fevereiro de 1869) 

Sob suas formas variadas ao infinito, a mediunidade abarca a Humanidade inteira, como um feixe ao qual ninguém poderá escapar. Cada um, estando em contato diário, saiba-o ou não, queira-o ou se revolte, com inteligências livres, não há um homem que possa dizer: Não fui, não sou ou não serei médium. Sob a forma intuitiva, modo de comunicação ao qual vulgarmente se deu o nome de voz da consciência, cada um está em relação com várias influências espirituais, que aconselham num ou noutro sentido, e muitas vezes simultaneamente, o bem puro, absoluto; acomodações com o interesse; o mal em toda a sua nudez.

O homem evoca essas vozes; elas respondem ao seu apelo, e ele escolhe, mas escolhe entre essas diversas inspirações e o seu próprio sentimento.

Os inspiradores são amigos invisíveis; como os amigos da Terra, são sérios ou volúveis, interesseiros ou verdadeiramente guiados pela afeição.

Nós os consultamos ou eles aconselham espontaneamente, mas, como os conselhos dos amigos da Terra, seus conselhos são ouvidos ou rejeitados; por vezes provocam um resultado contrário ao que se espera; muitas vezes não produzem qualquer efeito. - Que concluir daí? Não que o homem esteja sob o poder de uma mediunidade incessante, mas que ele obedece livremente à própria vontade, modificada por avisos que jamais podem, no estado normal, ser imperativos.

Quando o homem faz mais do que ocupar-se com os mínimos detalhes de sua existência, e quando se trata de trabalhos que ele veio realizar mais especialmente, de provas decisivas que ele deve suportar, ou de obras destinadas à instrução e à elevação geral, as vozes da consciência não se fazem mais somente e simplesmente conselheiras, mas atraem o Espírito para certos assuntos, provocam certos estudos e colaboram na obra, fazendo ressoar certos escaninhos cerebrais pela inspiração. Eis aqui uma obra a dois, a três, a dez, a cem, se quiserdes; mas se cem nela tomaram parte, só um pode e deve assiná-la, porque só um a fez e é o responsável por ela!

Que é uma obra, afinal de contas, seja qual for? Jamais é uma criação; é sempre uma descoberta. O homem nada faz, tudo descobre. É preciso não confundir estes dois termos. Inventar, no seu verdadeiro sentido, é pôr à luz uma lei existente, um conhecimento até então desconhecido, mas posto em germe no berço do Universo. Aquele que inventa levanta a ponta do véu que oculta a verdade, mas não cria a verdade. Para inventar é preciso procurar e procurar muito; é preciso compulsar livros, cavar no fundo das inteligências, pedir a um a Mecânica, a outro a Geometria, a um terceiro o conhecimento das relações musicais, a outro ainda as leis históricas, e do todo fazer algo de novo, de interessante, de não imaginado.

Aquele que foi explorar os recantos das bibliotecas, que ouviu falarem os mestres, que perscrutou a Ciência, a Filosofia, a Arte, a Religião, da Antiguidade mais remota até os nossos dias, é ele o médium da Arte, da História, da Filosofia e da Religião? É ele o médium dos tempos passados, quando, por sua vez, escreve? Não, porque não conta os outros, mas ensinou outros a contar, e ele enriquece os seus relatos com tudo o que lhe é pessoal.

Por muito tempo o músico ouviu a toutinegra e o rouxinol, antes de inventar a música; Rossini escutou a Natureza antes de traduzi-la para o mundo civilizado. É ele o médium do rouxinol e da toutinegra? Não, ele compõe e escreve. Ele escutou o Espírito que lhe veio cantar as melodias do Céu; ele ouviu o Espírito que clamou a paixão ao seu ouvido; ele ouviu gemerem a virgem e a mãe, deixando cair, em pérolas harmoniosas, sua prece sobre a cabeça do filho. O amor e a poesia, a liberdade, o ódio, a vingança e numerosos Espíritos que possuem esses sentimentos diversos, cada um por sua vez cantou sua partitura ao seu lado. Ele as escutou e as estudou, no mundo e na inspiração, e de um e outro fez as suas obras. Mas ele não era médium, como não o é o médico que ouve os doentes contando o que sofrem, e que dá um nome às suas doenças. A mediunidade despendeu suas horas como qualquer outro, mas fora desses momentos muito curtos para a sua glória, o que ele fez, fez apenas à custa dos estudos colhidos dos homens e dos Espíritos.

Assim sendo, é-se médium de todos; é-se o médium da Natureza, médium da verdade, e médium muito imperfeito, porque muitas vezes ela aparece de tal modo desfigurada pela tradução, que é irreconhecível e desconhecida.

HALÉVY.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A carne é fraca - Estudo fisiológico e moral


Por Allan Kardec

Há inclinações viciosas que evidentemente são mais inerentes ao espírito, porque têm a ver mais com a moral do que com o físico; outras mais parecem consequência do organismo e, por este motivo, a gente se julga menos responsável. Tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.

Está hoje perfeitamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais correspondentes às diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à atividade do espírito; que esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas tem a bossa da música porque seu espírito é músico (Revista de julho de 1860 e abril de 1862).

Se a atividade do espírito reage sobre o cérebro, deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. Assim, o espírito é o artífice de seu próprio corpo, por assim dizer, modela-o, a fim de apropriá-lo às suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Assim sendo, a perfeição do corpo nas raças adiantadas seria o resultado do trabalho do espírito que aperfeiçoa o seu utensílio à medida que aumentam as suas faculdades. (A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XI, Gênese Espiritual).

Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou de outros fluidos. É assim, por exemplo, que o glutão sente vir a saliva, ou, como se diz vulgarmente, vir água à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o alimento que pode superexcitar o órgão do paladar, pois não há contato; é, portanto, o espírito, cuja sensualidade é despertada, que age pelo pensamento sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro Espírito, a visão daquele prato nada produz. Dá-se o mesmo em todas as cobiças, todos os desejos provocados pela visão. A diversidade das emoções não pode ser compreendida, numa porção de casos, senão pela diversidade das qualidades do espírito. Tal é a razão pela qual uma pessoa sensível facilmente derrama lágrimas; não é a abundância das lágrimas que dá a sensibilidade ao espírito, mas a sensibilidade do espírito que provoca a abundante secreção de lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo modelou-se sob esta disposição normal do espírito, como se modelou sob a do espírito glutão.

Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um espírito irascível deve levar ao temperamento bilioso, de onde se segue que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. Assim acontece com todas as outras disposições instintivas; um espírito mole e indolente deixará o seu organismo num estado de atonia em relação com o seu caráter, ao passo que, se ele for ativo e enérgico, dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades bem diferentes. A ação do espírito sobre o físico é de tal modo evidente, que por vezes se veem graves desordens orgânicas produzidas por efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: A emoção lhe fez subir o sangue, não é assim despida de sentido quanto se podia crer. Ora, o que pôde alterar o sangue senão as disposições morais do espírito?

Este efeito é sensível sobretudo nas grandes dores, nas grandes alegrias, nos grandes pavores, cuja reação pode chegar a causar a morte. Vemos pessoas que morrem do medo de morrer. Ora, que relação existe entre o corpo do indivíduo e o objeto que causa pavor, objeto que, muitas vezes, não tem qualquer realidade? Diz-se que é o efeito da imaginação; seja, mas o que é a imaginação senão um atributo, um modo de sensibilidade do espírito? Parece difícil atribuir à imaginação, aos músculos e aos nervos, pois então não compreenderíamos por que esses músculos e esses nervos não têm imaginação sempre; por que não a têm após a morte; por que o que nuns causa um pavor mortal, noutros excita a coragem.

Seja qual for a sutileza que usemos para explicar os fenômenos morais exclusivamente pelas propriedades da matéria, cairemos inevitavelmente num impasse, no fundo do qual se percebe, com toda a evidência, e como única solução possível, o ser espiritual independente, para quem o organismo não é senão um meio de manifestação, como o piano é o instrumento das manifestações do pensamento do músico. Assim como o músico afina o seu piano, pode-se dizer que o Espírito afina o seu corpo para pô-lo no diapasão de suas disposições morais.

É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente da necessidade de elevar a dignidade do homem, quando se esforça para reduzi-lo a um pedaço de carne que apodrece e desaparece sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para si a liberdade como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, marchando como um boneco, sem responsabilidade por seus atos.

Com o ser espiritual independente, preexistente e sobrevivente ao corpo, a responsabilidade é absoluta. Ora, para a maioria, o primeiro, o principal móvel da crença no niilismo, é o pavor que causa essa responsabilidade, fora da lei humana, e à qual crê escapar fechando os olhos. Até hoje essa responsabilidade nada tinha de bem definido; não era senão um medo vago, fundado, há que reconhecer, em crenças nem sempre admissíveis pela razão. O Espiritismo a demonstra como uma realidade patente, efetiva, sem restrição, como uma consequência natural da espiritualidade do ser. Eis por que certas pessoas temem o Espiritismo, que as perturbaria em sua quietude, erguendo à sua frente o temível tribunal do futuro. Provar que o homem é responsável por todos os seus atos é provar a sua liberdade de ação, e provar a sua liberdade é revelar a sua dignidade. A perspectiva da responsabilidade fora da lei humana é o mais poderoso elemento moralizador: é o objetivo ao qual conduz o Espiritismo pela força das coisas.

Portanto, conforme as observações fisiológicas que precedem, podemos admitir que o temperamento é, pelo menos em parte, determinado pela natureza do espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico evidentemente influi sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode, então, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.

Escusar-se de suas más ações com a fraqueza da carne não é senão um subterfúgio para eximir-se da responsabilidade. A carne não é fraca senão porque o espírito é fraco, o que derruba a questão e deixa ao espírito a responsabilidade de todos os seus atos. A carne, que não tem nem pensamento nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e voluntarioso. É o espírito que dá à carne as qualidades correspondentes aos instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. Liberto dos instintos da bestialidade, o espírito modela um corpo que não é mais um tirano para as suas aspirações à espiritualidade de seu ser; então o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive para comer.

A responsabilidade moral dos atos da vida, portanto, permanece íntegra. Mas, diz a razão que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito, pois quanto mais esclarecido ele for, menos escusável será, porque, com a inteligência e o senso moral, nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. O selvagem, ainda vizinho da animalidade, que cede ao instinto do animal, comendo o seu semelhante, é, sem contradita, menos culpável que o homem civilizado que comete uma simples injustiça.

Esta lei ainda encontra sua aplicação na Medicina e dá a razão do seu insucesso em certos casos. Considerando-se que o temperamento é um efeito, e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo podem ser paralisados pelas disposições morais do espírito que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, pois, sobre a causa primeira que devemos agir; se se consegue mudar as disposições morais do espírito, o temperamento modificar-se-á por si mesmo, sob o império de uma vontade diferente ou, pelo menos, a ação do tratamento médico será ajudada, em vez de ser tolhida. Se possível, dai coragem ao poltrão, e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo. Dá-se o mesmo com as outras disposições.

Mas, perguntarão, pode o médico do corpo fazer-se médico da alma? Está em suas atribuições fazer-se moralizador de seus doentes? Sim, sem dúvida, em certos limites; é mesmo um dever que um bom médico jamais negligencia, desde o instante que vê no estado da alma um obstáculo ao restabelecimento da saúde do corpo. O essencial é aplicar o remédio moral com tato, prudência e convenientemente, conforme as circunstâncias. Deste ponto de vista, sua ação é forçosamente circunscrita, porque, além de ele ter sobre o seu doente apenas uma ascendência moral, em certa idade é difícil uma transformação do caráter. É, pois, à educação, e sobretudo à primeira educação, que incumbem os cuidados dessa natureza. Quando a educação, desde o berço, for dirigida nesse sentido; quando nos aplicarmos em abafar, em seus germes, as imperfeições morais, como fazemos com as imperfeições físicas, o médico não mais encontrará no temperamento um obstáculo contra o qual a sua ciência muitas vezes é impotente.

Como se vê, é todo um estudo, mas um estudo completamente estéril, enquanto não levarmos em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. Participação incessantemente ativa do elemento espiritual nos fenômenos da vida, tal é a chave da maior parte dos problemas contra os quais se choca a Ciência. Quando ela levar em consideração a ação desse princípio, verá abrir-se à sua frente horizontes completamente novos. É a demonstração desta verdade que o Espiritismo traz.

Revista Espírita, março de 1869