sexta-feira, 30 de agosto de 2013

[RE] - Homero

Por Allan Kardec

Estamos há muito tempo em relação com dois médiuns de Sens, tão distintos por suas faculdades quanto recomendáveis por sua modéstia, devotamento e pureza de intenções. Evitaríamos dizê-lo se não os soubéssemos inacessíveis ao orgulho, essa pedra de tropeço de tantos médiuns, contra a qual vieram quebrar-se tantas disposições felizes. É uma qualidade bastante rara, que merece ser assinalada. Pudemos assegurar-nos pessoalmente das simpatias que eles gozam entre os bons Espíritos. Mas, longe de se prevalecerem disso; longe de se julgarem os únicos intérpretes da verdade, e sem se deixarem ofuscar por nomes imponentes, aceitam com toda humildade e prudente reserva as comunicações que recebem, sempre as submetendo ao controle da razão. É o único meio de desencorajar os Espíritos enganadores, sempre à espreita de pessoas dispostas a aceitar sob palavra tudo quanto vem do mundo dos Espíritos, desde que subscrito por um nome respeitável. Aliás, eles nunca receberam comunicações frívolas, triviais, grosseiras ou ridículas, e jamais qualquer Espírito tentou inculcar-lhes ideias excêntricas ou impor-se como regulador absoluto. Ainda mais, o que prova tudo isto em favor dos Espíritos que os assistem são os sentimentos de verdadeira benevolência e verdadeira caridade cristã que eles inspiram aos seus protegidos. Tal é a impressão que nos ficou do que vimos, e nos sentimos felizes em proclamá-lo.

No interesse da conservação e do aperfeiçoamento de sua faculdade, fazemos votos que jamais caiam no engano dos médiuns que se julgam infalíveis. Não há um só que se possa gabar de jamais ter sido enganado. As melhores intenções não garantem sempre, e muitas vezes são uma prova para exercitar o julgamento e a perspicácia. Mas, a respeito dos que têm a infelicidade de se julgarem infalíveis, os Espíritos enganadores são muito hábeis para não deixar de tirar proveito. Fazem o que fazem os homens: exploram todas as fraquezas.

Entre as comunicações que esses senhores nos enviaram, a seguinte, assinada por Homero, sem ter nada de muito saliente relativamente às ideias, pareceu-nos merecer particular atenção, em razão de um fato notável que até certo ponto pode ser considerado como prova de identidade. Esta comunicação foi obtida espontaneamente e sem que o médium absolutamente pensasse no poeta grego. Ela deu lugar a diversas perguntas que também julgamos conveniente publicar.

Um dia o médium escreveu o seguinte, sem saber quem lho ditava:

“Meu Deus! Como são profundos os vossos desígnios e impenetráveis as vossas vistas! Em todos os tempos os homens têm procurado a solução de uma porção de problemas que ainda não foram resolvidos. Eu também procurei durante toda a minha vida, e não consegui resolver o que de todos parece o mais simples: o mal, aguilhão de que vos servis para impelir o homem a fazer o bem por amor. Ainda bem jovem, conheci os maus-tratos que os homens fazem sofrer uns aos outros, sem premeditação, como se o mal para eles fosse um elemento natural, posto não seja assim, desde que todos tendem para o mesmo fim, que é o bem. Estrangulam-se uns aos outros e, ao despertarem, constatam que feriram um irmão! Mas são esses os vossos desígnios e não nos cabe mudá-los. Só temos o mérito ou o demérito de haver resistido mais ou menos à tentação e, como sanção de tudo isto, o castigo ou a recompensa.

“Passei a juventude entre os caniços do Mélès; banhei-me e embalei-me muitas vezes em suas ondas. Por isso, na minha juventude, eu era chamado Melesígeno.”

1. Sendo este nome desconhecido, rogamos ao Espírito a bondade de explicá-lo de maneira precisa.

- Minha mocidade foi embalada nas ondas; a poesia me deu cabelos brancos. Eu sou aquele a quem chamais Homero.”

OBSERVAÇÃO: Grande foi a nossa surpresa, pois nenhuma ideia tínhamos desse apelido de Homero. Encontramo-lo depois no dicionário mitológico. Continuamos as perguntas.

2. Poderíeis dizer-nos a que devemos a felicidade de vossa visita espontânea, porque - e por isso vos pedimos perdão - absolutamente não pensávamos em vós neste momento.

- É porque venho às vossas reuniões, como se vai sempre aos irmãos que têm em vista fazer o bem.

3. Se ousássemos, pediríamos que nos falásseis dos últimos instantes de vossa vida terrena.

- Oh! meus amigos, Deus permita que não morrais tão infelizes quanto eu! Meu corpo finou-se na última das misérias humanas. A alma fica muito perturbada em tal estado. O despertar é mais difícil, mas também é muito mais belo! Oh! Como Deus é grande! Que ele vos abençoe! Eu o peço do fundo do coração.

4. Os poemas da Ilíada e da Odisseia, que nós temos, são exatamente aqueles que vós compusestes?

- Não. Eles foram alterados.

5. Várias cidades disputaram a honra de vos ter sido o berço. Poderíeis esclarecer-nos a respeito?

- Procurai a cidade da Grécia que possuía a casa do cortesão Cleanax. Foi ele que expulsou minha mãe do lugar do meu nascimento, porque ela não quis ser sua amante, e sabereis em que cidade vim à luz. Sim, elas disputaram essa suposta honra, mas não disputavam por me haverem dado hospitalidade. Oh! Eis os pobres humanos. Sempre futilidades; bons pensamentos, nunca!

OBSERVAÇÃO: O fato mais marcante desta comunicação é a revelação do apelido de Homero, e é tanto mais notável quanto os dois médiuns, que reconhecem e deploram a insuficiência de sua instrução, o que os obriga a viver do trabalho manual, não podiam ter a menor ideia a respeito. E tanto menos se pode atribuí-lo a um reflexo qualquer do pensamento, dado o fato de que no momento estavam sós.

A respeito disto, faremos outra observação: todo espírita sabe, por menos experimentado que ele seja, que alguma pessoa que soubesse o apelido de Homero e, o tendo evocado, se lhe tivesse pedido para dizê-lo, como prova de identidade, não o teria conseguido. Se as comunicações fossem apenas um reflexo do pensamento, como não diria e Espírito aquilo que sabemos, enquanto ele próprio diz aquilo que ignoramos? É que ele também tem a sua dignidade e a sua susceptibilidade, e quer provar que não está às ordens do primeiro curioso que apareça. Suponhamos que aquele que mais protesta contra o que chama capricho ou má vontade do Espírito, se apresente numa casa declinando o seu nome. Que faria, se o acolhessem e lhe pedissem à queima-roupa que provasse ser ele mesmo? Voltaria as costas. É o que fazem os Espíritos. Isto não quer dizer que se deva crer sob palavra, mas quando se querem provas de identidade, é preciso saber tratá-los tão bem como aos homens. As provas de identidade dadas espontaneamente pelos Espíritos são sempre as melhores.

Se nos estendemos tanto a propósito de um assunto que parece não comportar tantas considerações, é que nos parece útil não perder ocasião de chamar a atenção sobre a parte prática de uma ciência cercada de mais dificuldades do que se pensa, e que muitos julgam possuir porque sabem fazer bater uma mesa ou mover-se um lápis. Aliás, nós nos dirigimos aos que ainda julgam necessitar de conselhos, e não aos que, após alguns meses de estudo, pensam não mais necessitá-los. Se os conselhos que julgamos conveniente dar forem perdidos por alguns, sabemos que não o serão por todos, e que muitos os receberão com prazer.

Revista Espírita, novembro de 1860
Da equipe IPEAK

Lincoln e o Espiritismo – Parte II

Pelo Sr. Clémens

Inserimos, na edição anterior, a narrativa do Sr. Clémens, extraída do opúsculo “Da intervenção dos invisíveis na História Moderna”, sobre a primeira sessão espírita realizada na Casa Branca, com assistência do presidente Lincoln, e na qual se manifestou, pela boca da jovem médium Nettie Colburn, o Espírito do grande orador abolicionista, Daniel Webster.

A médium continuou a dar sessões em Washington, frequentadas por altas personalidades da República.

Reatamos aqui o fio da narrativa do Sr. Clémens:

“Certo dia, a Sra. Lincoln avisou a Miss Nettie que iria, em companhia de algumas pessoas, assistir a uma das suas sessões.

Na tarde desse mesmo dia, o “Espírito familiar” da médium anunciou que o presidente Lincoln compareceria também à sessão: mas as pessoas do seu círculo ficaram em dúvida, parecendo-lhes pouco provável que o presidente fosse a uma casa particular para assistir a uma “sessão espírita”.

Quando, porém, o carro presidencial parou, ao aproximar-se a hora da sessão, à porta de Miss Nettie, o Sr. Laurie foi ao encontro de Lincoln, dizendo-lhe:

– Seja bem vindo, Sr. Presidente; já o esperávamos.

– Como me esperavam, se há poucos minutos, eu não sabia que tinha de vir aqui?

Lincoln acabara de conferenciar com os ministros, e encontrando-se com a esposa, prestes a sair com alguns amigos, perguntou-lhe maquinalmente onde ia.

– A uma sessão, em casa de Nettie – foi a resposta.

– Espere um pouco; irei também. Assim narrou Lincoln o incidente, sublinhando a surpresa que lhe causaram as palavras do Sr. Laurie. Foi-lhe comunicada então a referida passagem, anunciando antecipadamente a sua vinda.

Mostrando-se satisfeito, Lincoln, depois de ouvir um pouco de música, perguntou a Miss Nettie “se não tinha alguma comunicação a fazer-lhe”.

– Talvez “os outros” queiram falar-vos, respondeu a moça.

Um “terceiro”, com efeito, falou, e não era um desconhecido. Era aquele que na Terra foi o Dr. Bamford, e que agora, Espírito liberto, se incorporava à médium, falando com o seu antigo modo de falar. A sua linguagem franca inspirava confiança a todos, Lincoln inclusive.

Veremos como essa confiança era bem fundada, como a sessão, de que ora nos ocupamos, é digna de ser rememorada. Um invisível dá conselhos ao chefe de um grande Estado e prescreve-lhe um ato de que ninguém havia cogitado, e, caso notável, o supremo magistrado da República, na plenitude de suas forças, com a sua vasta e culta inteligência e largo descortino de estadista, julga bons os conselhos, segue-os à risca, reconhecendo a intervenção direta de uma potência extra-normal, obedecendo-lhe.

Dupla lição.

Naqueles dias, grande era o desassossego do povo americano. A situação do exército não era a de quem vencia...

O presidente estava sitiado por todos os lados, sofrendo pressão do seu próprio partido, para ceder às exigências dos escravagistas. O Congresso não era favorável à libertação.

Tempos verdadeiramente sombrios.

Foi então que o “Dr. Bamford” tomou a palavra.

Falou longamente, pela boca de Miss Nettie, sobre a situação do exército. Declarou que regimentos inteiros estavam dispostos a depor as armas e voltar para os lares; que a ordem e a disciplina haviam abandonado as fileiras, estando iminentes gravíssimas perturbações...

Os assistentes pareciam consternados, salvo Lincoln que, reconhecendo exatas as informações sobre o exército, perguntou ao Dr. Bamford se não podia indicar algum remédio para melhorar-lhe a situação.

– Sim, disse o doutor, se tiverdes a coragem de empregá-lo.

– Ponha-me à prova, respondeu Lincoln, sorrindo.

– “O que vos tenho a dizer, continuou o Dr. Bamford, é tão simples que sereis levado a supor que a medida é insuficiente, à vista das atuais circunstâncias. O que é, entretanto, certo é que o meio para conjurar o perigo só de vós depende; está em vossas mãos. Ide, em pessoa, visitar o exército; ide só, levando apenas vossa mulher e filhos. Nada de oficiais convosco; nenhuma escolta.

“Ide com toda a simplicidade e falai aos soldados. Perguntai-lhes quais são as suas queixas; mostrai-vos como sois na realidade: o pai do vosso povo.

“Procurai fazer compreender aos soldados que vos interessam as suas provações, as suas queixas, as suas mágoas, as suas desventuras, depois de tantos combates, depois de tantas marchas difíceis através das regiões pantanosas, onde caíram mortos tantos companheiros.

“E, para evitar o perigo iminente, é preciso que amanhã mesmo seja publicada a notícia de vossa visita ao exército.

O Dr. Bamford discorreu em seguida sobre a guerra, em geral; predisse-lhe o fim e que Lincoln, dentro de dois anos, seria reeleito (1).

Quando o doutro acabou de falar, perguntaram a Lincoln se os negócios do país estavam assim tão comprometidos.

O presidente respondeu que não havia exageração, e, exigindo dos assistentes que guardassem silêncio e nada revelassem, acrescentou, apontando para um oficial:

– Este oficial bem sabe, porque acaba de dar-me informações sobre a situação do exército. É exato o que nos disse o Dr. Bamford. Sobre esse assunto versou hoje a conferência ministerial, e, ao encerrá-la, não sei porque resolvi acompanhar minha mulher até aqui. Julgo ser o conselho do doutor o melhor possível; tenho observado que fatos aparentemente de pequena importância têm muitas vezes grande influência nos acontecimentos...

O presidente assim falou, como se estivesse pensando em voz alta, em solilóquio, sem se preocupar com as pessoas que, em respeitoso silêncio, o ouviam.

No dia seguinte – era um domingo – a Gazeta anunciou, em grandes letras, a próxima visita do presidente, com a família, ao exército, demonstrando assim que os conselhos do Dr. Bamford tinham sido seguidos à risca.
Essa visita é um fato histórico e produziu os melhores resultados.

Os soldados ouviram Lincoln e o carregaram sobre os ombros através do acampamento, fazendo-lhe extraordinária ovação.

Grande foi o entusiasmo popular.

O presidente deixou o exército unido, tendo-o animado e fortalecido.

As intrigas oposicionistas tinham-se infiltrado nas fileiras. Os adversários haviam assoalhado que os representantes do governo levavam, em Washington, uma vida de luxo, de dissipação e de prazeres, enquanto as tropas eram sacrificadas nessa terrível luta.

Eis aí porque o Dr. Bamford aconselhou a visita nos termos indicados para que Lincoln se apresentasse ao exército com a sua grande simplicidade e bondade, com toda a grandeza de sua alma.

Registremos aqui que a Sra. Lincoln, que tinha grande confiança na predição do Espírito e concorrido para a visita, ficou realmente satisfeita com o feliz resultado obtido.”

Clémens

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(1) O presidente foi efetivamente reeleito, em 1865.

Fonte: Reformador, ano LXV, número 5, Maio de 1947, páginas 17-18.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Lincoln e o Espiritismo

Pelo Sr. Clémens

Miss Nettie Colburn morava em Albany, onde fazia sessões, falando os Espíritos por seu intermédio.

Era considerada pessoa muito simples, tímida e perfeitamente honesta.

Durante a guerra de secessão, seu irmão, havendo adoecido, obteve licença, mas perdeu o respectivo documento. Nettie, que tinha vindo a Washington, em companhia da mãe, para cuidar do enfermo, ficou muito aflita, porque a perda da licença o obrigava a voltar ao serviço para justificar a falta.

Achava-se ela em casa de correligionários, e estes conheciam alguém que, na Casa Branca, muito se interessava pelos fenômenos espíritas. 

Era a própria esposa do presidente, a qual entretinha relações com alguns médiuns.

Falaram-lhe na jovem Nettie que, em estado de inconsciência, fazia curiosas revelações.

A mulher do presidente manifestou desejo de vê-la, e como Nettie se lhe apresentasse com os olhos avermelhados pelas lágrimas, que a ocorrência relativa ao irmão fazia-a verter, foram logo tomadas as necessárias providências para ser sanada a falta. 

Miss Nettie, a quem essa boa notícia restituiu a tranqüilidade, achava-se em ótimas condições para realizar a sessão, e, depois de ouvi-la, a senhora Lincoln pediu-lhe que ficasse em Washington, a fim de apresentá-la ao marido.

Refere a nossa médium, na história de sua vida, a grande comoção que sentira, quando, toda trêmula, se apresentou nessa recepção, em palácio, no qual devia encontrar o primeiro magistrado da República.

Entretanto, quem a recebia com muita amabilidade era a senhora Lincoln, e a apresentava em seguida a duas outras pessoas.

Esperavam o presidente, que já tardava.

A amiga de Nettie, a senhora Milles, que também era médium de fenômenos físicos, sentiu-se impelida para o piano, que se achava aberto.

Sentou-se ao mesmo e, durante algum tempo, ficou com os dedos imóveis sobre as teclas à espera da ação dos Espíritos...De repente, fez ouvir uma marcha triunfal, tocada como se fosse por mão de mestre. Às últimas notas, Miss Nettie olha fixamente para a porta: entrava o presidente.

Ele fez algumas perguntas à médium que, perturbada e confusa, como uma acanhada menina de escola, respondeu-lhe com os monossílabos “sim” e “não”.

- Afinal, inquire o presidente, de que modo procedeis para falar “aos Espíritos”?

Intervém então a amiga de Nettie, sugerindo a ideia de formar-se um círculo, não havendo, porém, a necessidade da cadeia de mãos, como se costumava praticar. Foram estas as últimas palavras ouvidas pela jovem Nettie, que caiu logo em estado de inconsciência.

Eis o que se passou em seguida:

Essa franzina mocinha, que, ainda há pouco, comovida e tímida, não ousava articular outras palavras mais que “sim” e “não”, quando a interrogava o presidente, dirigiu-se ao mesmo e falou-lhe com voz firme.

A princípio ocupou-se de certos assuntos, que somente Lincoln parecia compreender. Depois a voz adquirindo um acento forte e másculo, abordou o problema do dia – a Proclamação da Emancipação, declarando ao presidente que não modificasse de modo nenhum as suas intenções, e, servindo-se de uma linguagem enérgica e solene, intimou o chefe da nação para que a data da proclamação não ultrapassasse o final do ano (1), devendo ser esse ato o coroamento de sua legislatura e de sua vida.

“Cumpre não dar ouvidos, dizia a inspirada, àqueles que aconselham o adiamento; cumpre permanecer firme em suas convicções, executar a tarefa, realizar enfim a missão que a Providência lhe há confiado.”

Declararam testemunhas presenciais que “com tanta majestade foram pronunciadas as últimas palavras, com tanta eloquência e em termos tão nobres e alevantados que pareciam ordens emanadas de algum arcanjo”.

Voltando ao estado normal, Miss Nettie deparou com o presidente, que se assentara e, de braços cruzados, fixava-lhe o olhar admirado.

Cheia de perturbação, a médium, procurando recordar-se do lugar em que se achava, afasta-se, no meio do profundo silêncio que todos guardavam.

Afinal, um dos assistentes, amigo íntimo de Lincoln, perguntou-lhe à meia voz se não havia notado alguma coisa de especial no modo de discorrer do orador, a quem acabavam de ouvir. O presidente teve um estremecimento, como se saísse de um sonho, e, erguendo a mão – foi esta a sua silenciosa resposta – apontou para um retrato que pendia da parede.

O retrato era do ardente chefe de partido, o grande Daniel Webster, cuja eloquência irresistível vibrara outrora no Senado e sempre sobre o interminável problema da escravidão.

- Se não me julgais indiscreto, murmurou o Sr. Somes, poderei perguntar se efetivamente, Sr. Presidente, houve pressão, como a voz revelou, para ser adiada a proclamação?

Com um sorriso benévolo, respondeu Lincoln:

- Nas atuais circunstâncias a pergunta vem muito a propósito. Posso dizer que me é preciso empregar toda a minha vontade e todos os meus esforços para resistir a essa pressão que exige o adiamento...

E, voltando-se para a jovem médium, disse:

- Minha filha, possuis um dom verdadeiramente extraordinário. Que ele venha de Deus, não o duvido. Agradeço a vossa vinda até aqui, esta noite. É mais importante do que podem supor todas as outras pessoas presentes. Espero ainda ver-vos.

E retirou-se.

(De L’Intervention des Invisibles, dams  l’Histoire Moderne).

(1) Era em setembro de 1862. A proclamação foi publicada em primeiro de Janeiro de 1863.
(2) O presidente Lincoln foi assassinado no teatro, em Washington, pelo ator Booth, no dia 14 de Abril de 1865.

Fonte: Reformador, Ano LXV, número 4, Abril 1947, p.15-16.

domingo, 18 de agosto de 2013

Kardec e o catálogo racional de obras

Por Sergio Aleixo

Um argumento dos que advogam que quase tudo pode ser Espiritismo à revelia de Kardec, merecendo até lugar na doutrina espírita, é a lista de obras preparada pelo mestre para formação de bibliotecas espíritas, cuja primeira edição apareceu em fins de março de 1869, visando à inauguração de uma livraria no início do mês seguinte, evento adiado, infelizmente, por conta de seu repentino passamento aos 31 dias de março daquele ano fatídico. A segunda edição do Catálogo Racional de Obras que Podem Servir para Fundar uma Biblioteca Espírita apareceu em agosto do corrente, já depois da morte de Kardec e acrescido, imaginem, de mais um par de títulos, sob a responsabilidade de A. Desliens. Quatro anos mais tarde, em dezembro de 1873, veio a lume uma terceira edição, atualizada por P. G. Leymarie.[1] Desconheço as duas primeiras. Portanto, não sei que obras foram acrescidas após o decesso de Kardec. Como quer que tenha sido, basta uma leitura atenta da peça para constatar a falta de base para argumentos mais libertários.
Catálogo é composto de três partes e um Apêndice: I – Obras fundamentais da doutrina espírita; II – Obras diversas sobre o Espiritismo ou complementares da doutrina; III – Obras feitas fora do Espiritismo; e Apêndice: Obras contra o Espiritismo.
A primeira coisa a considerar é que as obras de Kardec não são por ele chamadas básicas, e sim fundamentaisO Que é o EspiritismoViagem Espírita em 1862 e toda a coleção da Revista Espírita, inclusive. A segunda, é que, no hall de obras diversas sobre o Espiritismo ou complementares da doutrina, encontram-se livros cujos dizeres mereceram de Kardec simples comentários, uns; e mesmo censuras, outros, ali diretamente expressas, bem como em remissões bibliográficas indicadas pelo mestre.
É o caso, por exemplo, de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing. Kardec diz que se trata de obra que ensina a mesma doutrina dos docetistas e apolinaristas, a postular que o corpo de Jesus era fluídico, razão pela qual não teria ele sofrido senão em aparência. Recomenda, então, a leitura de seu livro A Gênese, cap. XV, n.ºs 64 a 68, onde, como se sabe, repele veementemente essa teoria, contra-argumentando que ela rebaixa moralmente a Jesus. Trata-se, portanto, de atitude preventiva, de clara censura por parte de Kardec.
Na mesma esteira está o livro A Chave da Vida, por V. de F. Michel, que o mestre informa coincidir com alguns pontos da doutrina espírita, estando, contudo, na sua maior parte, em contradição com a ciência e o ensino geral dos espíritos. Kardec remete o leitor novamente a seu livro A Gênese, cap. VIII, n.ºs 4 a 7.
Outro tanto sucede a Revelações do Mundo dos Espíritos, recebido pelo médium Sr. Roze, e cujo conteúdo Kardec afirma compor-se de teorias em franca contradição com a ciência e com o ensino geral dos espíritos, sublinhando, vejam, que a doutrina espírita não as pode admitir. E aqui, uma grave lição. Este médium foi membro titular da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Recebeu, dentre outras, mensagens de São Luís, Lamennais, São Vicente de Paulo, e do próprio Espírito da Verdade.[2] E a que ponto chegou? De publicar contradições com a ciência e até com a doutrina espírita, que não é senão o ensino geral dos espíritos a que se refere Kardec em sua crítica. De fato, há nos boletins da S.P.E.E. menção a um certo “sistema” ditado a esse médium pelo que chamou “escrita inconsciente”, e também à penosa impressão que causou a um dos membros da S.P.E.E. a simples exposição do tal “sistema”.[3]
Resta saber agora se obras em contradição com a doutrina espírita e abertamente censuradas pelo próprio Kardec poderiam ser suas complementares. Claro que há por aí um equívoco de compreensão da proposta do mestre no Catálogo. O título da segunda parte, aliado ao procedimento crítico de Kardec em alguns de seus dizeres, demonstra que, ali, todas são, sim, diversas obras sobre o Espiritismo, mas nem todas são complementares da doutrina. Há umas e outras. A partícula ou indica exclusão e não sinonímia. Existem duas categorias distintas. Faz sentido que, numa biblioteca espírita, obras equívocas sejam, ainda assim, sobre o Espiritismo, porque sobre História ou Geografia é que não seriam. Mas, absolutamente, não podem ser complementares da doutrina espírita, que sequer pode admitir-lhes os conteúdos em certos casos, como se viu.
Usar o Catálogo para justificar o erro de que seriam complementos da doutrina espírita mesmo livros em contradição com suas obras fundamentais é puro oportunismo de algumas raposas bem escoladas, estribado na inconstância de certos adeptos e na ignorância geral a respeito dos fundamentos históricos e conceituais do Espiritismo.
Por outro lado, nenhum espírita deve tramar, em seu centro ou associação, proibir a leitura de quaisquer obras que sejam. Index librorum prohibitorum é coisa execrável, contra a qual, repito: contra a qual se deve posicionar o kardecista, sempre amigo do livre-exame. Mas daí a incentivar inconsideradamente a leitura de obras que contradigam a doutrina espírita, em detrimento, por exemplo, das obras fundamentais de Kardec, sobretudo no que respeita a neófitos, vai longa e mal iluminada distância.
O estrago que determinadas publicações podem ensejar a adeptos inexperientes, ainda faltos de elementos necessários a um discernimento mais prevenido, deve ser escrupulosamente evitado. É preciso dar uma chance à verdade espírita. Estimulemos a todo custo o estudo perseverante e continuado das obras fundamentais: O Que é o EspiritismoO Livro dos EspíritosO Livro dos MédiunsO Evangelho Segundo o Espiritismo, etc., etc. Depois, sim, que venham todos os benditos catálogos com livros “de dentro”, “de fora”, “pró” e “contra” o Espiritismo, porque já não seremos presas tão fáceis.
Outro não foi o motivo pelo qual encabeçaram o Catálogo as próprias obras kardecianas. Fizeram-se presentes os elogios do mestre, mas também suas abstinências e censuras aos livros listados. E por quê? Justamente porque é pela Obra de Kardec que a crítica espírita se viabiliza.




[1] BARRERA, F. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. USE/Madras, 2003, p. 144.
[2] Cf. Revista Espírita. Mar/1860. Perguntas sobre o Gênio das Flores (São Luís). Abr/1860. Ditados Espontâneos: “Conselhos” (O Espírito de Verdade); “Amor e Liberdade” (Abelardo); “Parábola” (São Vicente de Paulo). Nov/1860. Dissertações Espíritas: “Os Inimigos do Progresso” (Lamennais). Esta última comunicação é atribuída à recepção do “Sr. R...”. Trata-se, por certo, do Sr. Roze, mencionado no Boletim da S.P.E.E. de 10 de fevereiro de 1860 (cf. Revista de Mar/1860), no qual há expressa menção ao ditado espontâneo recebido pelo “Sr. Roze”, justamente de “Lamennais”. Há muitas referências a esse médium nas Revistas de 1859, nessa condição abreviada, talvez por ser antigo ministro-residente dos Estados Unidos junto ao rei de Nápoles, como informa Kardec na Revista de Maio/1859, no artigo “Ligação entre o Espírito e o Corpo”.
[3] Revista Espírita. Nov/1860. Boletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. 5 de outubro de 1860, sessão particular; 12 de outubro de 1860, sessão geral.

sábado, 17 de agosto de 2013

A hora é mesmo extrema!

Por Sergio Aleixo

Mais equívocos em traduções dos textos de Kardec, e agora, salvo exceções indicadas, todos em edições L.A.K.E. ou F.E.E.S.P., por J. Herculano Pires...[1]

1 - N. 189 de O Livro dos Espíritos. Onde se lê: “Em sua origem, os Espíritos não têm mais do que uma existência instintiva, possuindo apenas a consciência de si mesmos e de seus atos”, leia-se, na verdade: “Em sua origem, os Espíritos não têm mais do que uma existência instintiva, mal possuindo consciência de si mesmos e de seus atos”. No francês: “A leur origine, les Esprits n'ont qu'une existence instinctive et ont à peine conscience d'eux-mêmes et de leurs actes”. Uma coisa é “mal possuir consciência de si”, outra, “possuir apenas a consciência de si”.

2 - N. 673 de O Livro dos Espíritos. Onde se lê: “Já vos disse, por isso mesmo, que Deus desaprova as cerimônias que fazeis para as vossas preces, pois há muito dinheiro que poderia ser empregado mais utilmente”, leia-se, na verdade: “Não quero dizer com isto que Deus desaprove as cerimônias que praticais para a ele orardes, mas muito dinheiro se gasta aí que poderia ser mais utilmente empregado”. No francês: “Je ne dis pas pour cela que Dieu désapprouve les cérémonies que vous faites pour le prier, mais il y a beaucoup d'argent qui pourrait être employé plus utilement qu'il ne l'est”. Uma coisa é Deus condenar as cerimônias, outra, que não as condene.

3 - N. 11 do cap. XXVIII de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Onde se lê: “Além do nosso anjo guardião, que é sempre um Espírito superior a nós, temos os Espíritos protetores”, leia-se, na verdade: “Além do nosso anjo guardião, que é sempre um Espírito superior, temos os Espíritos protetores”. No original: “Outre notre ange gardien, qui est toujours un Esprit supérieur, nous avons des Esprits protecteurs”. Esta inserção: “a nós”, só se verifica a partir da 59.ª edição da L.A.K.E., de 2003, ausente nas anteriores e, por exemplo, na 14.ª da F.E.E.S.P., de 1998, o que isenta, evidentemente, Herculano Pires. Uma coisa é “um Espírito superior”, outra, “um Espírito superior a nós”, sobretudo num contexto especialíssimo, em que Kardec define os tipos e elevações dos espíritos que se nos ligam, adiante esclarecendo de modo a não restar dúvida: “Deus nos deu um guia principal e superior em nosso anjo guardião, e guias secundários nos nossos Espíritos protetores e familiares”. No original: “Dieu nous a donné un guide principal et supérieur dans notre ange gardien, et des guides secondaires dans nos Esprits protecteurs et familiers”. Portanto, todo anjo guardião é espírito protetor, todavia nem todo espírito protetor é anjo guardião, precisamente porque este, como assegura o mestre, é sempre um Espírito superior.

4 - N. 23 do cap. IV de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Onde se lê: “4.º) a conservação da individualidade, com o progresso infinito, segundo a doutrina espírita”, leia-se, na verdade: “4.º a individualidade com progressão indefinida (ou indefinita), segundo a doutrina espírita”. No original: “4.º l'individualité avec progression indéfinie, selon la doctrine spirite”; portanto, progression indéfinie, não infinie. Uma coisa é que o progresso da alma seja indefinito, outra, que o seja infinito. Kardec, aliás, postula que a ascensão da alma ao bem absoluto deve ter um limite, porque jamais chegaria à felicidade perfeita se estivesse a subir incessantemente. (Cf. Revista Espírita. Set/1862. Poesias Espíritas. Peregrinações da Alma. Observação.) Nada obstante, Evandro N. Bezerra, para a F.E.B., preferiu traduzir os dizeres do mestre: “progrès successif et indéfini de l'âme”, por “progresso contínuo e infinito da alma”. Melhor, a opção de Julio A. Filho, para a EDICEL: “progresso sucessivo e indefinido da alma”; a corroborá-la está a escolha de Salvador Gentile, para o I.D.E. (Cf. Revista Espírita. Nov/1863. Pluralidade das Existências e dos Mundos Habitados. Pelo Dr. Gelpke.)

5 - N. 7 do cap. XXI de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Onde se lê: “Antes que as relações mediúnicas fossem conhecidas, eles exerciam a sua ação de maneira mais ostensiva pela inspiração, pela mediunidade inconsciente, auditiva ou de incorporação”, leia-se, na verdade: “Antes que as relações mediúnicas fossem conhecidas, eles exerciam a sua ação de maneira menos ostensiva, pela inspiração, pela mediunidade inconsciente, auditiva ou falante”. No francês: “Avant que les rapports médianimiques fussent connus, ils exerçaient leur action d'une manière moins ostensible, par l'inspiration, la médiumnité inconsciente, auditive ou parlante”. Na 58.ª edição, de 2002, “mais ostensiva” dá lugar ao correto: “menos ostensiva”; sem qualquer aviso, porém, da editora L.A.K.E., o que retira credibilidade da publicação, pois, com a morte de Herculano Pires em 1979, sua obra forçosamente se petrifica, e não se pode, sem aviso, nela mexer a bel-prazer, para bem ou para mal. Permanece, contudo, a opção equívoca do mestre paulista por mediunidade “de incorporação”. Kardec escreveu mediunidade “falante”. Pode um espírito agir sobre as cordas vocais do médium sem necessariamente haver “incorporação” desse espírito no corpo do médium. Esta palavra, aliás, não é do Espiritismo. Kardec acabou admitindo a pertinência do termo “possessão” em A Gênese, XIV, 47-48 e, antes disso, na Revista Espírita de dezembro de 1863: “Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar esta asserção, posta de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, embora parcial, de um espírito encarnado por um espírito errante”. (Um Caso de Possessão. Senhorita Júlia. F.E.B., p. 499.)

[A lista permanecerá em aberto.]
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[1] Afora os nove casos elencados no cap. 9 do meu livro O Primado de Kardec. Oito deles de âmbito febiano, um, relativo ao I.D.E. http://oprimadodekardec.blogspot.com.br/2011/02/capitulo-9-tradutor-traidor.html.

Fonte:
Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013_07_20_archive.html

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Fénelon - Tratado da existência e dos atributos de Deus

Pela Equipe IPEAK

François Fénelon, pseudônimo de François de Salignac de La Mothe-Fénelon, foi um teólogo, poeta e escritor francês bastante influente na França e cujas ideias liberais muito contribuíram para a emancipação da humanidade.

Nasceu no castelo da família, em Périgord, em 6 de agosto de 1651 e morreu em Cambrai a 7 de janeiro de 1715, aos sessenta e três anos de idade.

Extraímos um pequeno trecho de um de seus livros e o traduzimos do francês, como singela homenagem a esse nobre Espírito, pela data do seu nascimento. Ei-lo aqui reproduzido: 

TRATADO DA EXISTÊNCIA E DOS ATRIBUTOS DE DEUS[1] 

Por François Fénelon, escrito em 1712 

Provas da existência de Deus, tiradas da consideração das principais maravilhas da natureza.  

(...) Após essas comparações, sobre as quais peço ao leitor para simplesmente consultar-se a si próprio, mesmo sem raciocinar, creio que é momento de entrar no detalhe da natureza. Não pretendo penetrá-la toda inteira; quem o poderia? Também não pretendo entrar em nenhuma discussão de Física; essas discussões suporiam certos conhecimentos aprofundados que muitas pessoas de espírito jamais adquiriram; quero lhes propor apenas um simples golpe de vista sobre a face da natureza; não quero lhes falar senão do que todo mundo sabe, e que precisa apenas de um pouco de atenção tranquila e séria.

Detenhamo-nos primeiramente no grande objeto que atrai nossos primeiros olhares, isto é, a estrutura geral do Universo. Lancemos um olhar sobre esta terra que nos suporta; observemos no céu essa abóbada imensa que nos cobre; esses abismos de ar e de água que nos rodeiam, e os astros que nos iluminam. Um homem que vive sem reflexão pensa apenas nos espaços que estão junto de si ou que têm alguma relação com suas necessidades; ele considera a terra inteira apenas como o chão do seu quarto, e vê o sol que o ilumina durante o dia da mesma maneira que vê a vela que o ilumina durante a noite; seus pensamentos se limitam ao lugar estreito que ele habita. Ao contrário, o homem habituado a refletir estende seu olhar para mais longe, e considera com curiosidade os abismos quase infinitos que o rodeiam por todos os lados. Um vasto reino lhe parece então um pequeno canto da Terra; a própria Terra não é, a seus olhos, senão um ponto da massa do Universo; admira-se de estar aí localizado sem saber como nela veio parar.

Quem é que suspendeu esse globo da terra que é imóvel? Quem é que nela pôs os fundamentos? Nada, ao que lhe parece, é mais vil que ela; os mais infelizes lhe calcam sob os pés. No entanto, é para possui-la que se investem todos os grandes tesouros. Se a terra fosse mais dura, o homem não poderia abrir-lhe o seio para cultivá-la; se ela fosse menos dura, não poderia suportá-lo; ele afundaria em toda parte, como afunda na areia ou no lamaçal. É do seio inesgotável da terra que sai tudo o que há de mais precioso. Essa massa informe, vil e grosseira, toma as formas mais diversas e se transforma, passo a passo, em todos os bens que lhe solicitamos; essa lama tão feia transforma-se em mil objetos belos que encantam os olhos; em apenas um ano ela se torna galhos, botões, folhas, flores, frutos e sementes, para renovar suas liberalidades em favor dos homens. Nada a esgota. Quanto mais dilaceramos suas entranhas, mas liberal ela é. Após tantos séculos, durante os quais tudo tem dela saído, ainda não está gasta; não se torna velha; suas entranhas ainda estão plenas dos mesmos tesouros.

Mil gerações passaram por seu seio: tudo envelhece, exceto ela, que rejuvenesce a cada ano, na primavera. Ela jamais falta aos homens; mas, insensatos, os homens faltam a si mesmos negligenciando o seu cultivo (...).

Admirai as plantas que nascem da terra; elas fornecem alimentos aos sãos e remédios aos doentes. Suas espécies e suas virtudes são inumeráveis: elas enfeitam a terra; dão verdor, flores odoríferas e frutos deliciosos. Vedes essas vastas florestas que parecem tão antigas quanto o mundo? As árvores se afundam na terra por meio de suas raízes, como se elevam para o céu por meio de seus galhos; suas raízes as sustentam contra os ventos, e vão buscar, como por pequenos tubos subterrâneos, todos os sucos destinados à nutrição de seu caule; o próprio caule se reveste de uma casca dura, que coloca a madeira tenra ao abrigo das injúrias do ar; seus galhos distribuem, por diversos canais a seiva que as raízes reuniram no tronco. No verão esses ramos nos protegem contra os raios do sol, com sua sombra; no inverno eles nutrem a chama que conserva em nós o calor natural. Sua madeira não é útil somente para o fogo; é uma matéria dócil, ainda que sólida e durável, à qual, sem dificuldade, a mão do homem dá todas as formas que desejar, para as grandes obras de arquitetura e de navegação. Além disso, pendendo seus ramos para a terra, as árvores frutíferas parecem oferecer seus frutos ao homem.

As árvores e as plantas, deixando cair seus frutos ou seus grãos, preparam em torno delas mesmas uma numerosa prosperidade. A mais frágil planta, o menor legume, contêm em pequeno volume, num grão, o germe de tudo o que se desdobra nas mais altas plantas e nas maiores árvores. A terra, que jamais muda, faz todas essas mudanças em seu seio.

Observemos agora o que chamamos de água: é um corpo líquido, claro e transparente. Por um lado, ela corre, escapa, foge; por outro, toma todas as formas do corpo que a contêm, não tendo nenhuma para si mesma. Se a água fosse um pouco mais rarefeita, se tornaria uma espécie de ar; toda a face da terra seria seca e estéril; haveria apenas animais voadores; nenhuma espécie de animal poderia nadar, nenhum peixe poderia viver; não haveria nenhum comércio pela navegação. Que mão habilidosa soube condensar a água, sutilizar o ar, e distinguir tão bem essas duas espécies de corpos fluidos?

Se a água fosse um pouco mais rarefeita, não poderia sustentar esses prodigiosos edifícios que denominamos navio; os corpos menos pesados afundariam primeiro na água. Quem é que tomou o cuidado de escolher uma tão justa configuração de partes, e um grau tão preciso de movimento, para tornar a água tão fluida, tão insinuante, tão própria a escapar, tão incapaz de toda consistência, e no entanto tão forte para levar, e tão impetuosa para arrastar as mais pesadas massas? Ela é dócil; o homem a conduz, como um cavaleiro conduz um cavalo pelas pontas das rédeas; ele a distribui como lhe convém; eleva-a sobre as montanhas escarpadas, e se serve de seu próprio peso para fazê-la cair, e subir tanto quanto desceu. Mas o homem, que conduz as águas com tanto império é, a seu turno, conduzido por elas. A água é uma das maiores forças motrizes que o homem sabe empregar para suprir ao que lhe falta nas artes mais necessárias, por causa da sua pequenez e pela fragilidade de seu corpo.

Todavia, essas águas que, não obstante sua fluidez, são massas tão pesadas, não deixam de se elevar acima de nossas cabeças e ficar lá por longo tempo suspensas.  Vede essas nuvens que voam como sobre as asas dos ventos? Se caíssem de repente em grossas colunas d’água, rápidas como torrentes, submergiriam e destruiriam tudo o que estivesse em seu caminho, e o restante das terras ficariam áridas. Que mão as têm nesses reservatórios suspensos, e não lhes permite cair senão gota a gota, como se fossem destiladas por um regador? Donde vem que em certos países quentes, onde quase nunca chove, o orvalho é tão abundante que supre a falta de chuva, e em outros países, tais como nas margens do Nilo e do Ganges, a inundação regular dos rios em certas estações diminui a necessidade dos povos de irrigar a terra? Pode-se imaginar medidas melhor tomadas para tornar todas as regiões férteis?

Assim, a água dessedenta não somente os homens, mas também os campos áridos; e aquele que nos deu esse corpo fluido o distribuiu com cuidado sobre a terra como os canais de um jardim. (...)

[1] Texto extraído das Œuvres Choisies de Fénelon. Traité de l’Existence et des Attributs de Dieu, Première partie, ch. I. Traduzido do francês pela Equipe do IPEAK.