segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Livro dos Espíritos

Por Nair de Moraes

A Editora Dentu, Palais-Royal – Paris - publicou em 18 de abril de 1857, de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos.

O Courier de Paris, de 11 de junho de 1857 (Revista Espírita – janeiro de 1858), trouxe um artigo assinado por G. Du Chalard que procurou informar os leitores sobre o valor e o significado da obra.

"Notável, curiosa" são os dois adjetivos empregados por Chalard para defini-la. Não arriscou mais, afirma, por julgar qualquer classificação banal, diante da importância do conteúdo apresentado.

Considerando-a como "uma página nova no grande livro do infinito", escreve não conhecer o autor mas, proclama bem alto, gostaria de conhecê-lo porque quem escreveu a introdução (Kardec) "deve ter uma alma aberta a todos os sentimentos nobres".

Descreve o local onde leu o livro: "há vinte léguas de Paris, ao cair da tarde quando em nossa volta tínhamos apenas algumas cabanas esparsas, pensamos naturalmente em coisas muito diversas da bolsa de valores, do macadame dos bulevares ou das corridas de Longchamps".

Posiciona-se como alguém que muitas vezes se interrogava "a respeito do que se passava nas regiões que se convencionou chamar de o Alto". Chegou a esboçar "uma teoria sobre os mundos invisíveis", porém guardou-a só para si. Sentia-se feliz agora por encontrá-la "quase que por inteiro no livro do Sr. Allan Kardec".

Exortam então, a todos os deserdados da Terra, "a todos quantos regam com suas lágrimas o pó da estrada" a ler O Livro dos Espíritos, pois ele os tornaria mais fortes !
Convida, também, "aos felizes, aos que pelo caminho só encontram as aclamações e os sorrisos da fortuna" a estudá-lo, e ele os tornaria melhores.

A obra é dos Espíritos que a ditaram, como o próprio Kardec afirmou. Chalard, entretanto, comenta que se as respostas dos Espíritos são por vezes sublimes, é necessário atribuir um grande mérito a Kardec, que soube provocá-las pelas suas perguntas.

Desafia aos mais incrédulos a rirem "quando lerem esse livro no silêncio e na solidão" e conclui: "todos honrarão aquele que escreveu o prefácio".

Analisando de forma admirável a obra do Codificador, resume a doutrina na expressão "não façais aos outros o que não quereis que vos façam" e convida ao homem de estudo, que tem a fé apenas necessitada de instruir-se, a ler o Primeiro Livro; à criatura que só se preocupa consigo mesma e nada enxerga além dos próprios interesses, a ler as Leis Morais e àquele que a desgraça persegue e a dúvida tortura, a ler o terceiro livro, Esperanças e Consolações.

Note-se que Chalard está se referindo à primeira edição de O Livro dos Espíritos. A segunda edição, publicada em março de 1860, refundida e ampliada é a que conhecemos através da tradução de diferentes autores. Nela, Esperanças e Consolações é o quarto livro.

A CODIFICAÇÃO E O LIVRO DOS ESPÍRITOS

O Livro dos Espíritos representa o arcabouço geral da Codificação, como bem definiu Herculano Pires em artigo escrito em 1957, comemorando os cem anos do surgimento da Doutrina. Examinando-o em relação às demais obras de Kardec, observa-se, diz ele, que estas partem de seu conteúdo. Assim, O Livro dos Médiuns (1861) tem sua origem no Livro II (Mundo Espírita ou dos Espíritos), que focaliza especialmente a parte experimental da Codificação.

O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864) é uma decorrência natural do Livro III, que estuda as leis morais, como aplicação prática dos princípios da moral cristã.

O Céu e o Inferno (1865) surge do Livro IV (Esperanças e Consolações), no qual Kardec examina o que aguarda o Espírito após a morte, vida futura na linguagem do Codificador, e consequentemente os conceitos de céu, inferno, purgatório, penas eternas e ressurreição da carne.

A Gênese (1868) representa uma retomada dos assuntos estudados no Livro I (As Causas Primárias) e de alguns capítulos do Livro II, nos quais Kardec examina a evolução do princípio inteligente através da matéria e da sua peregrinação pelos diferentes mundos do Universo.

A Codificação forma um todo homogêneo e coerente. De um modo geral, certos temas colocados em O Livro dos Espíritos têm o seu desenvolvimento em obras posteriores.

As ligações entre o Espiritismo e o Cristianismo, por exemplo, se definem completamente em O Evangelho Segundo o Espiritismo; o problema da origem do homem encontra a sua tese final em A Gênese; as questões mediúnicas acham suas respostas em O Livro dos Médiuns, e os problemas teológicos e escriturísticos, em O Céu e o Inferno.

Herculano Pires, após essa magnífica análise, faz uma observação que representa um desafio aos estudiosos do Espiritismo: as ligações assinaladas podem e devem ser esclarecidas em profundidade por um estudo minucioso do conteúdo das diversas partes de O Livro dos Espíritos, em confronto com as demais obras.

Esse estudo exigiria, complementa Herculano arrancando uma exclamação de surpresa do aprendiz, uma análise dos textos primitivos, das primeiras edições, que foram, como se sabe, ampliadas por Kardec nas edições seguintes.

O Livro dos Espíritos completou 147 anos! As aprecições de Chalard e de Herculano Pires nos levam a refletir: será que conhecemos em toda a sua extensão a obra que representa não só a pedra fundamental mas o núcleo central, o delineamento da Doutrina Espírita?

Se a dúvida for a resposta, aceitemos o convite com o qual Charlard encerra o seu artigo:
"Todos quantos aninham pensamentos nobres no coração e acreditam no bem, leiam o livro da primeira à última página".

domingo, 30 de agosto de 2009

Espiritismo, coisa de demônio?

Por Alkíndar de Oliveira

"Reconhecereis meus discípulos por muito se amarem". Jesus

Sou espírita. Respeito todas as religiões que têm Deus como o Pai maior. Vejo os integrantes das demais religiões como diletos irmãos. Nem poderia ser diferente. Se somos filhos do mesmo Deus por que o fato de professarmos diferentes religiões impediria vermo-nos como irmãos?

E como irmão do caro leitor, aproveito desta oportunidade para trazer à tona alguns conceitos - ou preconceitos - equivocados em relação ao Espiritismo.

Caro irmão-leitor, não tenho o intuito de convertê-lo ao Espiritismo. Se você se encontrou no Catolicismo ou no Protestantismo para que mudar de religião?

Nós, espíritas, muito valorizamos o Catolicismo. Podemos dizer que o Catolicismo é a religião-mãe. Se não fosse a força, a coragem, a fé e a determinação dos primeiros católicos as palavras do nosso Mestre Jesus não teria chegado aos nossos dias. A humanidade muito deve ao Catolicismo.

Também respeitamos e valorizamos o Protestantismo. Quando o homem ficou mais preocupado com a religião externa, isto é, mais valorizava a forma do que o conteúdo, foi o Protestantismo que chacoalhou uma situação de inércia e reavivou as palavras do Mestre.

Mas por que alguns - não todos - católicos e protestantes, nossos diletos irmãos, insistem em dizer que o "o Espiritismo é coisa do demônio"?

Jesus disse "Pelos frutos conhecereis a árvore".

Os espíritas, como outros religiosos, têm como sua principal meta procurar seguir, com as limitações próprias da natureza humana, os preceitos de Jesus em sua máxima "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo".

Que demônio é este que inspira aos espíritas o amor a Deus e ao próximo?

Os espíritas, como outros religiosos, acreditam na realidade maior da vida: "fora da caridade não há salvação".

Que demônio é este que inspira aos espíritas fazer a caridade ao próximo?

Os espíritas têm por princípio a valorização e o respeito às demais religiões, todas consideradas como diferentes ferramentas idealizadas pelo mesmo Arquiteto.

Que demônio é este que inspira aos espíritas a fraternidade e a solidariedade entre integrantes de religiões muitas vezes sustentadas em dogmas ou em faces da verdade conflitantes entre si?

Que demônio é este que, onde há divergência de opiniões, procura unir em vez de semear a discórdia?

Os verdadeiros espíritas, isto é, àqueles que seguem os preceitos máximos da doutrina, tem como rotina em sua vida o esforço pela sua transformação moral.

Que demônio é este que inspira aos espíritas constante preocupação com sua elevação moral?

Caro irmão e leitor, reflitamos:

Que demônio é este que fala em amor, caridade, solidariedade, fraternidade e em transformação moral?

Só não vê, como disse nosso Mestre Jesus, quem não tem olhos para ver.

Por favor, não entenda que o objetivo deste artigo é a sua conversão. Se você é um bom católico, continue a sê-lo. Se você professa uma das diversas religiões protestantes, continue na sua convicção. Mas se você é dos que dizem que "o Espiritismo é coisa do demônio" procure - sem abandonar sua religião - pelo menos estudar alguns livros espíritas. A critica gratuita, sem análise, sem profundo estudo, não deve fazer parte de nossos atos. Dê a si mesmo o direito de conhecer melhor o seu objeto de crítica. Estude.

É importante dizer que a denominação "Espiritismo" assumiu conotações que não correspondem à real essência da doutrina codificada pelo educador Allan Kardec, e que se sustenta no evangelho do Nosso Senhor Jesus Cristo.

No Espiritismo não há queima de vela, incenso, "trabalhos", magias, imagens ou outros rituais. Muitas pessoas, não espíritas, muitas pessoas mesmo, imaginam - sem antes pesquisar - que o Espiritismo manifesta-se por tudo que nele não existe, como os exemplos citados (queima de vela, incenso, "trabalhos", magias, culto a imagens, rituais, etc.).

Muitas religiões que se autodenominam Espiritismo, não o são de fato.

O templo do Espiritismo é o templo do estudo, do amor e da caridade.

Outras pessoas, como você, também não acreditavam ou tinham uma opinião deformada do Espiritismo e de seus preceitos como mediunidade e reencarnação.

William Crookes, o extraordinário pai da Física contemporânea, o homem que descobriu o tálio, a matéria radiante, a quem se deve os pródomos da Física Nuclear da atualidade chegou a dizer textualmente: "Eu era um materialista absoluto e, depois de investigar em profundidade científica os fenômenos mediúnicos, eu afirmo que eles já não são possíveis: eles são reais!"

César Lombroso, depois de examinar a mediunidade de Eusápia Paladino disse estas palavras: "Quando me lembro do que eu e meus colegas zombávamos daqueles que acreditavam no Espiritismo, coro de vergonha, porque hoje eu também sou espírita! A evidência dos fatos dobrou a minha convicção negativa".

E ainda Cronwell Varley, o que lançou sobre o mundo as linhas da telegrafia e da telefonia internacional, os cabos transoceânicos, teve a coragem de dizer: "Somente negam os fenômenos espíritas, aqueles que não se deram ao trabalho de os estudar. Eu não conheço um só exemplo de alguém que os haja estudado, que não se tenha rendido à sua evidência".

Não. Não precisa tornar-se espírita. Mas estude o Espiritismo antes de criticá-lo.

E lembremo-nos que todos, independentemente de religiões, somos filhos do mesmo Deus e devemos irmanarmo-nos, unirmo-nos pelo bem comum, pelo amor ao próximo, pelos atos de solidariedade humana. Jesus disse de forma simples e direta: "Reconhecereis meus discípulos por muito se amarem". Portanto, Ele recomenda que a meta é o amor imperar em todos nós, independentemente da religião que professamos.

Lembremo-nos, ainda, que ninguém é dono da Verdade Absoluta. Deus sendo Pai de toda a humanidade é também o Pai de todas as religiões. Respeitemo-nos mutuamente, cheguemo-nos mais pertos, para oportunizarmos o "aprender a amarmo-nos". Só assim seremos dignos de sermos chamados de FILHOS DE DEUS.

Para encerrar, leiamos a letra abaixo, musicada pelo admirável católico-cantor Padre Zezinho, que é um hino ao respeito e à união dos seguidores das mais diversas religiões:

CANÇÃO ECUMÊNICA

Padre Zezinho

Que todos nós,
que acreditamos em Deus,
saibamos viver em paz e dialogar!
Que todos nós,
que cremos que Deus é Pai,
saibamos nos respeitar e nos abraçar!
Filhos do Universo,
filhos do mesmo amor,
saibamos ouvir uns aos outros,
ouvir o que o outro nos tem a dizer.
E, sem combater,
sem desmerecer,
primeiro escutar,
depois discordar,
por fim celebrar e orar.
E adorar e servir a Deus.
E ajudar e ajudar as pessoas...
e respeitar os ateus!
... pra sermos filhos de Deus.

Ninguém Morre Antes da Hora?


Por Carlos Augusto Parchen

Muitas vezes nos referimos a morte de uma pessoa como "tendo chegado a hora", ou ainda "ninguém morre antes da hora".

Daí a pergunta que muitos fazem: temos pré-determinada a hora de nossa morte? Ninguém morre antes da hora determinada?

Dentro da visão espírita, temos que analisar dois aspectos importantes quando do nascimento (reencarnação) de um ser humano.

O primeiro aspecto é o potencial genético do corpo formado, resultante da fusão de óvulo e espermatozóide, que determinam a formação de um corpo com determinados potenciais e determinadas limitações.

O segundo aspecto é o potencial energético do perispírito, pois este último promove a ligação do espírito com o corpo físico, arrastando para esse corpo energias positivas e/ou negativas, de acordo com as suas características evolutivas específicas. Essas energias provocam alterações nos potenciais genéticos e de funcionamento do corpo físico.

Da interação entre esses dois aspectos no complexo humano (corpo+perispírito+espírito), temos, teoricamente, estabelecido um potencial de vitalidade ou de energia vital que, em tese, determina um potencial máximo de vida para aquele organismo, ou se quiser simplificar, um tempo máximo de vida orgânica.

Colocamos e destacamos "em tese", pois o exercício do livre arbítrio leva ao perispírito possibilidades de alterar suas características energéticas, com energias positivas ou negativas, o que, por sua vez, altera o potencial de energia vital do complexo humano. Essa alteração pode melhorar ou piorar o potencial de energias vitais.

Da mesma forma, o nosso livre arbítrio também nos leva a utilizar o nosso patrimônio físico, com maior ou menor cuidado com suas necessidades específicas, o que pode gerar um "gasto correto" (econômico) ou um "gasto excessivo" de nossa vitalidade orgânica ou energia vital.

Para melhor explicar isso, vamos exemplificar com o tabagismo (vício de fumar). Estudos e pesquisas internacionais, já muito conhecidas (e reconhecidas), provaram que o consumo de um único cigarro "custa" ao organismo físico o desgaste orgânico equivalente a cerca de 12 a 14 minutos de vida. Isso significa que cada 5 cigarros fumados eqüivalem a "diminuição" de 1 (uma) hora de vida. O que falar então do uso de drogas (tóxicos) e do alcoolismo? Ou ainda da alimentação inadequada, excessiva? Quanto desgaste isso tudo gera ao potencial orgânico?

Fica fácil de entender que a pessoa pode "danificar" seu corpo físico, encurtando seu tempo de vida orgânica em relação ao seu "potencial de vitalidade". Só isso já poria por terra a teoria de que "ninguém morre antes da hora". Quem não cuidar das suas energias no perispírito ( o que está ligado ao equilíbrio espiritual) e do seu corpo físico, diminui seu tempo de vida orgânica, ou seja, "morre antes da hora". Com isso, adquire débito energético, ou seja, necessidade de "resgate" desse "débito" em outra(s) encarnação(ões).

Analisando de um ângulo externo ao próprio complexo humano, temos que nos lembrar que todos estamos numa vida de relação, com outros indivíduos e com a natureza. E sofremos as conseqüências disso.

Vamos exemplificar de forma bem direta: uma determinada pessoa resolve ir a uma festa, ingere muita bebida alcoólica, embriaga-se. De forma imprudente, vai voltar para casa dirigindo seu veículo. Em excesso de velocidade, perde o controle do carro, atingindo um ponto de ônibus, onde atropela e mata 3 pessoas, sendo uma criança, um jovem e um adulto.

Essas três pessoas atropeladas estavam na "sua hora de morrer"? Suas mortes estavam "programadas"? Estava escrito? Estava "previsto" na reencarnação de cada um?

É evidente que não, pois em caso contrário não existiria o livre arbítrio, e tudo no mundo seria determinístico, nos tornando meros "robôs" na passagem terrena.

Aquele motorista embriagado ceifou a vida de pessoas que tinham diferentes potenciais de vida, de alguns anos (o adulto) a várias décadas (criança e jovem), e que ainda poderiam viver muito com seu corpo orgânico. As três pessoas "morreram antes da hora".

Não existe uma "programação de morte". Existe um potencial de vida, que pode mesmo ser "estendido" pelo equilíbrio espiritual e respeito e cuidado com o corpo físico, ou ainda, encurtado pelo próprio indivíduo ou por terceiros, que responderão por isso nesta e em outras vidas.

Se as mortes estivessem programadas, cada movimento em todo o mundo estaria programado. Se uma pessoa morre atropelada numa rua, na hora do "pico" do movimento, em São Paulo, por exemplo, e isso estivesse "programado", o atropelador já nasceria com essa "missão", e para ajustar a sincronia entre atropelador e atropelado, todo o trânsito de São Paulo deveria estar "programado", para que todos os envolvidos se encontrassem naquele exato instante.

Cremos que com esses argumentos, evidencia-se que não existe "hora de morte programada".

O que os espíritas devem cuidar é para não se tornarem crentes do determinismo, acreditando numa "programação absoluta da reencarnação", pois isso fere uma verdade basilar – a do livre arbítrio - , sob a qual reside grande parte da filosofia e doutrina espírita.

É preciso estudar um pouco mais a Lei de Causa e Efeito, relacionando isso com o estudo do registro energético do perispírito, de modo a entendermos o correto mecanismo do "resgate e expiação.

O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso

Publicado em Reformador, agosto 2003, pp. 315-319, setembro 2003, pp. 356-359, outubro 2003, pp. 397-399.

O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso [1]

Por Silvio Seno Chibeni


1. Introdução

Ao refundir o material da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), preparando a segunda edição (1860), Kardec achou por bem inserir, já na primeira linha do livro, na folha de rosto, a seguinte frase: “Filosofia Espiritualista”. Kardec quis, com ela, fornecer ao leitor uma caracterização sucinta do caráter do Espiritismo, cujas bases a obra assentava. Essa caracterização é depois detalhada de modo implícito ou explícito no resto do livro e no restante de sua produção espírita. Uma das primeiras especializações do conceito expresso na frase é introduzida já na Introdução do mesmo livro, item I, no qual Kardec traça a distinção entre espiritualismo e Espiritismo. A partir desse ponto, tratará sempre (salvo para efeito de comparação) do conceito mais específico de filosofia espírita.

O destaque dado por Kardec a esse conceito indica que é por ele que devemos começar a análise do chamado “tríplice aspecto” do Espiritismo. Essa caracterização não pode ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. Não nos ocuparemos aqui da questão histórica da origem dessa maneira tão disseminada de compreender o Espiritismo. Nosso objetivo neste artigo é estabelecer que ela é, em sua essência, correta, e que está presente no pensamento do criador do Espiritismo. Além disso, pretendemos esclarecer alguns mal-entendidos a que a caracterização tem dado lugar, por causa da compreensão incorreta, ou imprecisa dos conceitos de ciência, filosofia e religião, bem como da verdadeira natureza do Espiritismo.

2. O que é filosofia?

Antes de tentarmos entender o que Kardec entendia por ‘filosofia espírita’, e por que ele priorizou essa noção ao dar uma fórmula sucinta do Espiritismo, é importante compreendermos a noção geral de filosofia. É claro que se trata de um assunto complexo, que requereria estudos especializados para ser abordado de forma satisfatória. O que exporemos aqui é apenas um esboço, mas que, tanto quanto julgamos, é correto e útil para investigações ulteriores.

Como quase todas as palavras, filosofia possui diversos significados. Popularmente, o termo tem hoje três acepções principais: 1) certos valores ou princípios de vida, muito gerais e variáveis segundo os indivíduos ou grupos sociais; 2) certos métodos, regras e propósitos de um empreendimento qualquer; e 3) certas doutrinas esotéricas ou místicas. Nenhum desses três significados corresponde à noção original, acadêmica, de filosofia, e que foi usada por Kardec em quase todas as ocasiões em que falou no aspecto filosófico do Espiritismo.

Não obstante aparentemente simples, as questões do que é e para que serve a filosofia – no sentido acadêmico do termo – estão entre as que mais dificuldades e divergências causam entre os próprios filósofos profissionais. Esse mero fato, porém, já indica algo importante sobre a natureza da filosofia: o questionamento sistemático, incessante e profundo de tudo o que se afirma.

As origens da filosofia remontam à Grécia Antiga. Pela própria etimologia do termo, notamos que a filosofia era entendida como o amor do saber, ou a busca da verdade. Naquela época e, em certa medida, por muitos séculos da era cristã, a filosofia englobava todos os ramos do conhecimento puro (em contraste com as artes e ofícios, o conhecimento “aplicado”). Gradualmente, alguns desses ramos foram se tornando autônomos, como a matemática, a astronomia, a história, a biologia, a física. Mais ou menos a partir do século XVII, alguns deles começam a ser agrupados sob outra denominação: a de ciência.

Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco principal da filosofia as disciplinas da estética, lógica, ética, epistemologia e metafísica. De forma muito simplificada, pode-se dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica investiga o encadeamento formal das proposições; a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam de suas interconexões e especializações, como a teologia, a filosofia política, a filosofia da linguagem, a filosofia da ciência.

Uma das principais correntes filosóficas contemporâneas propõe que a filosofia não deve ser entendida como a formulação ou defesa de teses ou conjuntos de teses sobre o que quer que seja, mas simplesmente como o desenvolvimento de métodos de análise crítica e sistemática, a serem aplicados especialmente ao chamado conhecimento científico. Nessa perspectiva, o filósofo seria alguém que tenta explicitar os conceitos, os pressupostos, a estrutura lógica e as implicações das teorias científicas, políticas, religiosas, etc. Semelhante atitude crítica – que não se confunde com uma crítica leviana, estouvada ou interesseira – seria a essência da filosofia, o elemento comum que permearia a grande variedade de linhas filosóficas existentes.

Embora quando se olhe para as abstrações e sutilezas tipicamente discutidas pelos filósofos se possa concluir que a filosofia para nada serve, a referida proposta talvez permita encontrar, num plano afastado do das necessidades materiais cotidianas, uma finalidade útil para a filosofia: a elucidação das bases, métodos e implicações das ciências e de outras disciplinas intelectuais, contribuindo assim para a identificação de fundamentos falsos ou inseguros, de falácias argumentativas, de dogmas encobertos.

Ensinando, ou pelo menos convidando, o homem a refletir criticamente sobre tudo o que se afirma ou faz em todos os setores, a filosofia de alguma forma auxilia o aprimoramento de seu intelecto e, talvez, de seus sentimentos, que o diferenciam de um mero ser que come, bebe, dorme e se reproduz.

3. A filosofia espírita

Passando agora à noção de filosofia espírita, uma observação preliminar importante é que no tempo de Kardec o sentido original, amplo, da palavra ‘filosofia’ ainda prevalecia, em boa medida. Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia, Kardec não estava excluindo seu caráter científico, muito pelo contrário. Além disso, como a ética ou moral é uma das áreas da filosofia – e isso até hoje –, aquela designação também não excluía o aspecto moral do Espiritismo, que é a essência da chamada religião espírita. Detalharemos esses pontos nas seções seguintes deste trabalho.

Há referências à filosofia, ou à filosofia espírita, em todas as obras de Kardec. O significado preciso das expressões varia, é claro, segundo o contexto. De um modo geral, podemos identificar duas acepções principais da expressão, uma ampla e outra restrita.

Na acepção ampla, Kardec entende pela expressão alguma teoria, conjunto de teses, ou atividade intelectual que se caracterizam pela racionalidade, e se inserem portanto na tradição da filosofia acadêmica de cultivo do saber pelo saber. Nesse sentido a filosofia engloba a própria ciência e a moral, como já apontamos. Há dezenas de passagens nas obras de Kardec em que a expressão é usada nessa acepção. A primeira é, naturalmente, a já mencionada frase da folha de rosto.Vejamos algumas outras, restringindo-nos, por falta de espaço, ao Livro dos Espíritos (os itálicos do termo ‘filosofia’ são nossos).[2]

LE, Prolegômenos: “Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema.”

LE, Prefácio da 2a edição (que não é mais reproduzido nas edições atuais): “O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial” [a ser desenvolvido no Livro dos Médiuns].

LE, Conclusão, item V: “Três períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências. O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões sérias. Começou o segundo período, o terceiro virá inevitavelmente.”

LE, Conclusão, item VII: “O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: [...]” [3]

Na acepção restrita da expressão ‘filosofia espírita’, Kardec refere-se a tópicos clássicos tratados pelos filósofos, como a existência e atributos de Deus, a distinção alma-corpo, as idéias inatas, o livre-arbítrio, a objetividade dos critérios morais, etc. Na maior parte das vezes em que ele usa o termo ‘filosofia’ nesse sentido mais específico, quer ressaltar um ponto de central importância: a capacidade que o Espiritismo tem de tratar com segurança, clareza e plausibilidade alguns dos mais espinhosos e desafiadores problemas filosóficos. Em alguns casos o ponto é mencionado genericamente; em outros ele considera explicitamente esses problemas. Vejamos alguns exemplos, começando com alguns trechos do primeiro tipo (destacamos o termo ‘filosofia’).

LE, Conclusão, item 1: “Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.”

LE, Conclusão, item 6: “Mesmo quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo às manifestações dos Espíritos diz para si próprio: à parte esses fenômenos, há a filosofia, que me explica o que nenhuma outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá calma, segurança, confiança; livra-me do tormento da incerteza.”

QE, Preâmbulo: No terceiro capítulo, publicamos um resumo de O Livro dos Espíritos, com a solução, pela doutrina espírita, de certo número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica, moral e filosófica, que diariamente são propostos, e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória. [...] Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas, quais as que melhor satisfazem à razão.”

Vejamos agora algumas passagens com referências a problemas filosóficos tradicionais, que têm solução adequada pelo Espiritismo. Indicamos sumariamente entre colchetes o problema em questão.

LE, Introdução, item 17 [a continuidade evolutiva na criação]: “A razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega.”

LE, item 222 [a desigualdade das aptidões face à justiça divina]: “Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?”

LM, par. 35, n. 2 [o futuro do homem]: “O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas conseqüências morais. É a revelação do destino do homem, a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios da vida de além-túmulo.”

ESE, cap. 5, item 6 [a dor face à justiça divina]: “Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra.”

CI, parte 1, cap. 1, item 13 [a questão do materialismo e do panteísmo]: Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença. O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.”

G, cap. 4, item 11 [a origem das faculdades espirituais do homem]: “Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de idéias, que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.”

G, cap. 4, item 12 [origem e destino do homem]: “Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada. Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência a seguirem a religião, que não discute.

OP, pp. 86-7 [o problema mente-corpo]: Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina. [...] Tínhamos, como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações com a filosofia e a psicologia.

QE, pp. 169-70, 189 [a imortalidade da alma] As manifestações não são, pois, destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está nas conseqüências morais que delas dimanam; não tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque era largo caminho novo aberto à Filosofia. [...] Nas lições de filosofia clássica, os professores ensinam a existência da alma e seus atributos, segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais. [...] Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto de ciência, procura com empenho e colhe com alegria tudo o que possa demonstrar a veracidade dessa hipótese; como, pois, um professor de filosofia, cujo dever é provar a seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os meios de lhes fornecer uma patente demonstração?

Esses trechos ilustram bem a afirmação de Kardec em O que é o Espiritismo (diálogo com o cético, p. 65) de que “O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia [...]”. E note-se que tal afirmação é confirmada não só por passagens como as citadas, em que o termo ‘filosofia’ aparece explicitamente (e há ainda muitas outras em que isso ocorre), mas também pelos estudos efetivamente desenvolvidos por Kardec acerca de numerosos outros tópicos filosóficos.

4. O que é ciência? [4]

Como já ressaltamos, aquilo que hoje chamamos ciência derivou da filosofia, tal qual entendida nos primeiros tempos de nossa cultura ocidental. É importante, pois, identificar os traços que servem para distinguir o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento. Essa é uma das questões de que se ocupa um dos ramos especiais da filosofia mencionados anteriormente, a filosofia da ciência.

Notadamente na segunda metade do século XX, progressos significativos foram realizados nessa área. Reconhece-se hoje entre os especialistas que uma certa concepção de ciência cujas origens remontam à época do nascimento da ciência moderna, no século XVII, e que é comum até hoje entre o público leigo, padece de sérias inadequações. Ela não resiste nem a variados argumentos filosóficos levantados mais recentemente, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da física, da química e da biologia. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como positivismo lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930.

Grosso modo, essa visão comum de ciência pressupõe que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos supostamente seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.

O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da ciência não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis de serem levados a cabo. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas; a imaginação criadora do homem desempenha papel essencial na gênese das teorias científicas.

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das pesquisas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal, formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que estipula que nesse desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o filósofo da ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa científico de pesquisa. [5]

A exigência fundamental de um programa científico de pesquisa é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. Outras características importantes de qualquer boa teoria científica são: a consistência: a teoria não pode envolver contradições; a coerência: os princípios da teoria devem apoiar-se mutuamente; a abrangência: a teoria deve explicar, ao menos em linhas gerais, todos os principais fenômenos de seu domínio; deve ainda exibir unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há, por fim, o vínculo externo de não conflitar com as demais teorias científicas bem confirmadas que tratem de domínios de fenômenos complementares.

Tendo fornecido essa noção geral, bastante simplificada e incompleta, da concepção contemporânea de ciência, passemos à questão da ciência espírita.

5. A ciência espírita

A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos requisitos de uma ciência genuína, segundo as caracterizações da filosofia da ciência contemporânea, como a esboçada na seção precedente. Em artigo anterior, “A excelência metodológica do Espiritismo”, procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec antecipou-se às conquistas recentes da filosofia da ciência, e compreendeu muito bem a questão. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde efetivamente à visão que os filósofos da ciência têm hoje. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito.

O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela a adequação da teoria com os fatos, sua consistência e seu alto grau de coesão e simplicidade, bem como a amplitude de seu escopo. Ademais, ali estão implicitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Muitos desses desenvolvimentos foram, como se sabe, implementados pelo próprio Kardec, e se acham expostos nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o progresso experimental e teórico do Espiritismo prossegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.

Em contraste com os fundamentos científicos sólidos lançados por Kardec no estudo do elemento espiritual do homem, as linhas de pesquisa que surgiram mais tarde, com a pretensão competir com o Espiritismo nessa área, não alcançaram o mesmo sucesso. Deve-se notar, a tal respeito, que elas tiveram início justamente na época em que o positivismo lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como os filósofos perceberam depois, as linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.

Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores dessas linhas de investigação a não somente empenharem de modo infrutífero os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, o Espiritismo. Uma análise mais detalhada desse ponto pode ser encontrada na seção 4 de “A excelência metodológica do Espiritismo”, e não será reproduzida aqui.

6. A ciência espírita e as ciências acadêmicas

Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da física, quer da química ou da biologia. É de crucial importância notar que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com tais ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.

Kardec compreendeu perfeitamente bem essa distinção, e chamou a atenção para ela em diversos de seus textos, como por exemplo no item VII da Introdução do Livro dos Espíritos. Ali argumentou com segurança que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, ou seja, das ciências acadêmicas. Por outro lado, no parágrafo 16 do primeiro capítulo de A Gênese, enfatizou a referida complementaridade do Espiritismo e dessas ciências, afirmando que “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.[6]

A percepção desses pontos evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado o movimento espírita atual. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste justamente naquelas linhas de investigação iniciadas depois de Kardec, e cuja fragilidade científica é evidente, à luz de uma análise filosófica cuidadosa. Outros pensam que a ciência espírita consiste de investigações do âmbito das ciências acadêmicas, especialmente as que envolvam experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens complexas, de uso nos laboratórios de física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados dessa ciência. Assume-se que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre não compreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade às investigações.

Dada a gravidade dos enganos envolvidos em semelhantes posições, vale a pena nos determos um pouco mais sobre elas. Deve-se, além dos esclarecimentos gerais já indicados, notar que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá mediante os fenômenos a que denominou “de efeitos intelectuais”, quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita com isenção sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco.

Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Nestes últimos casos, o “grau teórico” (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. O caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser afirmados fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes. E, de fato, a história da física e da química tem ilustrado a instabilidade de suas teorias que avançam além do nível da percepção direta.

No caso do referido princípio espírita, bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo, a situação é bastante diversa. Trata-se de princípios pertencentes à classe de princípios a que os filósofos denominam “fenomenológicos”, que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o fogo queima e a cicuta envenena.

Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais – a saber, que são causados por uma inteligência humana desencarnada – não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculiares e íntimos, característicos daquele amigo. Exatamente o mesmo se dá com numerosos e variados casos de psicografia ou outras manifestações inteligentes. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida acerca da sobrevivência do ser.

É importante observar, por fim, que além dos fenômenos especiais que formam a classe dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em uma multidão de fenômenos ordinários, em virtude de oferecer uma base sólida para sua compreensão. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.

Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. “O estudo do Espiritismo é imenso”, disse Kardec em outra passagem; “interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós” (O Livro dos Espíritos, Introdução, item XIII).

7. O aspecto religioso do Espiritismo [7]

Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões. Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias. Se no estabelecimento da primeira dessas teses é necessário identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.

A palavra religião evoca, por sua origem, à idéia da “re-ligação” do homem ao Criador. Como se sabe, ao longo da história inúmeras propostas se apresentaram de como essa “re-ligação” deve ser entendida e efetuada, resultando daí as diversas “religiões”.

Afora divergências sobre a própria noção de Deus e da natureza do ser humano, as religiões se diferenciam quanto aos requisitos propostos para que a criatura se religue a Deus. Quase sempre, eles incluem a adequação da conduta a certas regras morais. Tipicamente, também incluem a satisfação de providências formais e externas de vária ordem: participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns, etc.

Ora, já se pode perceber aqui algumas distinções fundamentais entre o Espiritismo e as religiões ordinárias. Como elas, o Espiritismo também se preocupa com o destino do homem, na Terra e no além-túmulo, procurando instruí-lo quanto ao que deve fazer para que alcance estados de felicidade cada vez maior. No entanto, o Espiritismo propõe que esse objetivo pode ser alcançado exclusivamente pela adaptação da conduta a determinados preceitos morais. Qualquer medida de ordem exterior é mostrada ser não somente ineficaz, mas também, em muitos casos, nociva, por desviar a atenção do ponto principal e induzir ao sectarismo.

Depois, uma diferença crucial surge no modo pelo qual as regras éticas são justificadas. As religiões ordinárias procuram justificar as normas morais que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição. Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus princípios éticos – sintetizados no preceito cristão do amor ao próximo – no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam.”

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que, com o conhecimento científico espírita, a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo dos efeitos naturais das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres – e portanto, efetivamente, com o plano divino –, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, explicado acima.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi estudado em profundidade no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868.[8] Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

8. Conclusões

Inegavelmente, o Espiritismo é um empreendimento intelectual de ampla envergadura. Em diversas ocasiões Allan Kardec ressaltou o seu caráter abrangente, bem como a importância de considerá-lo em seu conjunto, quando se trata de avaliá-lo e de investigar suas implicações.

Como vimos, na primeira linha da segunda edição do Livro dos Espíritos Kardec caracterizou-o sucintamente como “filosofia espiritualista”. Espiritualista, porque estando centrado na constatação de que o homem é essencialmente, enquanto ser pensante, espírito, insere-se no âmbito das doutrinas que se contrapõem ao materialismo. Filosofia, porque investiga esse ser espiritual segundo uma abordagem racional, sistemática e abrangente, típica da tradição de pesquisa inaugurada pelos filósofos gregos, e que permeia toda a cultura ocidental até hoje. Nesse sentido original, a filosofia abarcava todos os ramos do saber puro. Mesmo aquilo que, a partir de uma certa época da história do pensamento, passou a ser chamado de ciência caía sob o escopo da filosofia.

Assim, a caracterização kardequiana em análise não deve ser tomada como excluindo a dimensão científica do Espiritismo, muito pelo contrário. Conforme deixou claro no desdobramento de suas pesquisas, Kardec compreendeu que tal dimensão não somente existia, mas que constituía mesmo a base sobre a qual a filosofia espírita repousa. Note-se, por exemplo, que no preâmbulo de O que é o Espiritismo Kardec o define como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. Quando bem compreendida, essa definição não conflita com a que está na página de rosto do Livro dos Espíritos. Apenas salienta que os fundamentos da filosofia espírita são científicos, e não puramente especulativos, ou derivados de alguma tradição mística, religiosa, ou qualquer outra. Foi a análise científica de certos fenômenos que deu origem ao Espiritismo, e estabeleceu desde então o núcleo teórico sobre o seu objeto de estudo, ou seja, o espírito.

No entanto, como essa análise conduz, por sua própria natureza, a tópicos extremamente abrangentes e fundamentais, no que diz respeito ao conhecimento do espírito, ela avança por domínios tipicamente considerados filosóficos, mesmo segundo a concepção contemporânea, mais restrita, de filosofia. O caso quiçá mais importante dessa extensão é o da moral (ou ética). Kardec explorou com grande lucidez as implicações do conhecimento científico espírita para as questões-chave da moral, dentre as quais a da fundamentação das regras morais. Fez notar que o conhecimento científico acerca do homem propiciado pelo Espiritismo permite o estabelecimento de um corpo de princípios morais objetivos, e que ele coincide com aqueles propostos pelo Cristo. Salientou ainda que tais princípios sintetizam o que há de essencial na noção de religião. Nesse sentido, e apenas nele, o Espiritismo pode ser dito uma religião, adverte Kardec no famoso artigo da Revue Spirite.

Dessa forma, os chamados “três aspectos” (ou “partes”) do Espiritismo encontram-se inextricavelmente ligados. Talvez mesmo devêssemos evitar a utilização dessa expressão, porque pode induzir à idéia errônea de que se trata de três elementos separados ou separáveis, que agrupamos apenas por conveniência. É significativo, a esse respeito, que o próprio Kardec tenha evitado caracterizar o Espiritismo em tais termos. Quando tentou sintetizar a natureza do Espiritismo, recorreu ora à noção de filosofia, ora à de ciência, dependendo do contexto. Mas em ambos os casos indicou que não se tratava de uma delimitação muito estreita da noção.

Se pensarmos no Espiritismo em termos de filosofia, será uma filosofia apoiada em bases científicas, e que tem como um dos objetivos centrais o estudo das questões morais. Se pensarmos em termos de ciência, não será uma pesquisa seca, que simplesmente constate e sistematize fatos, mas de uma investigação de longo alcance sobre um objeto de fundamental importância, o elemento espiritual. Essa ciência complementa, pois, as ciências acadêmicas, cujo objeto de estudo é o elemento material. E, pela própria natureza de seu objeto de estudo, a ciência espírita necessariamente diz respeito a tópicos genuinamente filosóficos, dentre os quais ressalta, por sua importância prática, aqueles referentes à moral.

Referências

Chalmers, A. F. What is this Thing called Science? 2nd. ed., Buckingham, Open University Press, 1982.

Chibeni, S. S. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.

–––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.

–––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.

–––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.

–––. “As acepções da palavra ‘Espiritismo’ e a preservação doutrinária”. Reformador, julho de 1999, pp. 212-214. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – I.)

–––. “Revisão da terminologia espírita?”. Reformador, agosto de 1999, pp. 250-252. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – II.)

–––. “A religião espírita”. Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – III.)

–––. “A ‘ciência oficial’”. Reformador, outubro de 1999, pp. 312-313. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – IV.)

–––. “As relações da ciência espírita com as ciências acadêmicas”. Reformador, novembro de 1999, pp. 344-346. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – V.)

–––. “Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas”. Reformador, dezembro de 1999, pp. 380-383. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VI.)

–––. “A pesquisa científica espírita” Reformador, janeiro de 2000, pp. 24-25. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VII.)

Kardec, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.

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–––. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Revue Spirite. Coleção da Federação Espírita do Paraná.

–––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975.

–––. O que é o Espiritismo. (s. trad.) 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972.

–––. O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 59a ed., revista, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. Voyage Spirite en 1862. Paris, Vermet, 1988.

–––. L’Évangile selon le Spiritisme. (Reprodução fotográfica da 3a edição francesa.) 1a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.

–––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 113a ed., Rio, FEB.

–––. Le Ciel et l’Enfer. Farciennes, Editions de l’Union Spirite, 1951.

–––. O Céu e o Inferno. Trad. de Manuel Quintão. 28ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

–––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d.

–––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.

–––. Oeuvres Posthumes. (Ed. André Dumas.) Paris, Dervy-Livres, 1978. Também na edição original de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/

–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

Lakatos, I. “Falsification and the methodology of scientific research programmes”. In: Lakatos I, e Musgrave, A. (eds.) Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. Pp. 91-195.

[1] Texto apresentado no XII Congresso Estadual de Espiritismo (USE). Campinas, SP, 17 a 20/4/2003.

[2] Neste trabalho usaremos as seguintes abreviações: LE - O Livro dos Espíritos; QE – O que é o Espiritismo; LM – O Livro dos Médiuns; ESE – O Evangelho Segundo o Espiritismo; CI – O Céu e o Inferno; G – A Gênese; OP – Obras Póstumas (as referências de páginas deste livro são feitas pela tradução da FEB); VE – Viagem Espírita em 1862 (páginas pela edição francesa corrente).

[3] Outros exemplos importantes do uso da expressão ‘filosofia espírita’ na acepção ampla estão em: LM, parágrafos 14 (n. 7) e 32, capítulo 31 (item 18); OP, pp. 221, 247 e 253; QE, Preâmbulo; VE, pp. 6, 8 e 20.

[4] Esta seção e a seguinte aproveitam partes de nossos artigos “Espiritismo e ciência” e “A excelência metodológica do Espiritismo”, que deverão ser consultados para um tratamento mais detalhado do assunto. Ver também os artigos sobre ciência espírita na série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”. As referências são dadas no final deste trabalho.

[5] Ver Lakatos 1970. Para uma exposição acessível dessa e de outras abordagens da questão da natureza da ciência, consulte-se Chalmers 1982. Para uma análise da ciência espírita à luz de outra teoria filosófica contemporânea acerca da ciência, elaborada por Thomas Kuhn mais ou menos no mesmo período, ver nosso artigo “O paradigma espírita”.

[6] Note-se que nessas citações o termo ‘ciência’ é usado numa acepção mais restrita do que a anteriormente elucidada. Para um estudo mais completo da análise kardequiana das relações entre o Espiritismo e as ciência ordinárias, ver a seção 3 de “A excelência metodológica do Espiritismo” e as partes IV e V da série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”.

[7] Esta seção aproveita idéias e trechos de nossos artigos “Os fundamentos da ética espírita”, “A excelência metodológica do Espiritismo”, seção 5, e “A religião espírita” (o terceiro artigo da série “Questões acerca da natureza do Espiritismo”), que deverão ser consultados para um maior desenvolvimento do assunto.

[8] Dezembro, pp. 353-62. Note-se que se trata de uma dos últimos números da Revue compostos por Kardec. O texto expressa, pois, o seu pensamento mais refletido sobre o assunto.
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BIOGRAFIA - Manuel Vianna de Carvalho

Nascido na cidade de Icó, Estado do Ceará, aos 10 de dezembro de 1874, era filho do professor Tomás Antônio de Carvalho e de D. Josefa Viana de Carvalho. Desencarnou a bordo do navio "Íris", sendo o seu corpo sepultado na Bahia, aparentemente em Salvador. Era o dia 13 de outubro de 1926.

Numa época quando a divulgação da Doutrina Espírita ensaiava os seus primeiros passos e encontrava pela frente a mais obstinada oposição, o Major Dr. Manuel Vianna de Carvalho, com pulso firme e animado do mais vivo idealismo, desbravava o terreno para nele lançar a semente generosa da propaganda.

Como espírita foi dos mais animosos. 0 seu nome representou verdadeira bandeira no campo da disseminação do Espiritismo. 0 que ele fez, em vários anos de luta e de atividades intensíssimas, é algo que ainda não se pode colocar em dados estatísticos, tal o gigantismo da tarefa por ele desenvolvida em todo o país.

A sua palavra era atraente e arrebatadora, conseguindo, entre os espíritas uma penetração inusitada e inconfundível. Como conferencista era dos mais requisitados; como polemista, um dos mais salientes. Seu verbo inspirado, sua voz harmoniosa, sua animação, assumiam, às vezes, tonalidades e aspectos impressionantes. Foi na realidade um mágico da palavra, esteta do sentimento.

Vianna de Carvalho fez os primeiros estudos de Humanidades no Liceu de Fortaleza. Posteriormente, em 1891, matriculou- se na extinta Escola Militar do Ceará, onde mereceu classificação de destaque pelo seu comportamento e merecimentos intelectuais.

Embora desde 1891 tivesse dado início à sua gigantesca tarefa de divulgação do Espiritismo, ela somente tomou vulto após ter- se matriculado no curso superior da antiga Escola Militar da Praia Vermelha, em 11 de fevereiro de 1895.

Nessa época funcionava no Rio de Janeiro o "Centro da União Espírita de Propaganda no Brasil". Integrando- se nesse grupo, Vianna de Carvalho passou a proferir conferências que conseguiam atrair compactos auditórios de mais de 500 pessoas.

No ano de 1896 foi transferido para Porto Alegre, como aluno da Escola Militar que ali funcionava. Naquela capital sulina o Espiritismo já era difundido por alguns pioneiros, dentre eles Joaquim Xavier Carneiro, dirigente do Grupo Espírita Allan Kardec, que dada a sua austeridade de costumes e práticas humanitárias exercia enorme influência. De posse de uma lista com nome e endereço de simpatizantes do Espiritismo, Vianna de Carvalho conseguiu reunir todos numa casa abandonada, desprovida de mesas e cadeiras.

De pé, os freqüentadores das reuniões ouviam, com verdadeiro enlevo, o seu verbo inflamado. Posteriormente conseguiu formar um núcleo de estudos que passou a funcionar no andar térreo de uma casa no centro da cidade. (A foto acima consta do acervo da FEP em quadro de 40x60cm, tirada possivelmente quando residiu em Curitiba, em 1911, onde freqüentou e participou de reuniões e proferiu conferências. Na oportunidade estaria com 36 anos).

Em 1898 publicou a sua primeira produção literária "Facetas", contos e fantasias. Em seguida publicou "Coloridos e Modulações".

Nesse mesmo ano foi transferido para o Rio de Janeiro, onde recomeçou as preleções no Centro da União Espírita e em outros grupos, participando de um congresso e encetando numerosas viagens ao interior do Estado do Rio de Janeiro. Transferido para Cuiabá, Mato Grosso, ali fundou o Centro Espírita Cuiabano.

Em 1907, regressou ao Rio de Janeiro a fim de matricular- se no curso de engenharia da Escola do Realengo, tornando- se o orador oficial da Federação Espírita Brasileira, realizando ainda viagens aos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Foi ainda colaborador assíduo da revista "Reformador".

Após concluir o curso de engenharia militar, rumou para Fortaleza, Estado do Ceará, em abril de 1910. Ali iniciou uma série de conferências espíritas na Loja Maçônica e, no dia 10 de junho, fundou o Centro Espírita Cearense. Não satisfeito com as atividades desenvolvidas, criou ainda os jornais "Combate" e "Lábaro", o primeiro destinado a contestar os argumentos do clero católico, que nessa época desencadeava uma campanha difamatória contra o Espiritismo, através do órgão "Cruzeiro do Sul"; a segunda publicação destinada a difundir o Espiritismo.

Através dos jornais "O Unitário", "A República" e "Jornal do Ceará", manteve vivas polêmicas, refutando argumentos infundados sobre o Espiritismo. Suas atividades em Fortaleza perduraram até novembro de 1911, quando, por imposição do serviço militar foi transferido para Curitiba, no Paraná, onde sustentou o mesmo nível de atividades, publicando artigos diários no "Diário da Manhã".

De volta ao Rio de Janeiro, em 1912, deu início a um persistente trabalho de unificação dos grupos espíritas, do qual resultou a fundação posterior da "União Espírita Suburbana", sob a presidência de Manuel Fernandes Figueira. Em princípios de 1913, foi servir em Maceió, onde proferiu numerosas conferências e encetou verdadeira jornada no sentido de reorganizar os grupos espíritas dispersos ou com falta de orientação.

Pouco depois era transferido para Recife, Pernambuco, onde deu prosseguimento à sua tarefa de divulgação, publicando numerosos trabalhos, fazendo conferências e mantendo polêmicas que abalaram os meios religiosos da cidade. Regressando ao Rio de Janeiro, Vianna de Carvalho retomou a pregação da Doutrina Espírita nos subúrbios, o que fez de 1914 a 1916, quando foi transferido para Santa Maria da Boca do Monte, no Estado do Rio Grande do Sul.

Ali também teve a oportunidade de reorganizar e fundar vários grupos espíritas e de realizar conferências que foram publicadas no "Diário do Interior", e posteriormente em outros órgãos da imprensa gaúcha.

Em 1917, de novo no Rio de Janeiro, ali desenvolveu intensa campanha contra as fraudes e trapaças dos pseudos- espíritas. No ano seguinte voltou para Santa Maria da Boca do Monte, em comissão do Governo Federal, junto à 9a. Brigada de Infantaria, desenvolvendo durante quinze meses intensa difusão do Espiritismo.

Em 1919, novamente em Maceió, foi surpreendido com as atividades dos detratores do Espiritismo, os quais tentaram proibir- lhe as palestras e até mesmo expulsá-lo. Sem esmorecimentos travou intensos debates pela imprensa e pela tribuna, sustentando acirradas polêmicas, tendo, nessa altura, os seus opositores pleiteado, no Rio de Janeiro, a sua transferência, tendo ele sido removido para o Estado do Paraná, em meados desse mesmo ano.

Em Curitiba realizou conferências no Teatro Alemão, na sede da Federação Espírita do Paraná e em outras instituições.

Através do "Diário da Tarde" publicou uma série de artigos doutrinários que tiveram muita penetração. Da capital paranaense veio para S. Paulo, onde proferiu várias palestras, muitas delas com o comparecimento de mais de mil pessoas.

Em 1920 voltou novamente ao Rio de Janeiro, de onde partia para proferir conferências em cidades vizinhas. Em 1923, seguiu para Recife, reorganizando os Centros Espíritas ali existentes, mantendo novas polêmicas com detratores do Espiritismo.

Posteriormente rumou para o Ceará e daí para Sergipe, onde fora designado para o comando do 28.o. B.C., em 1924. Nesse Estado as suas atividades também foram amplas.

Em 1926, adoeceu gravemente, ficando decidido o seu recolhimento ao Hospital de S. Sebastião, em Salvador. Suas forças estavam periclitantes. Conduzido ao navio "Íris", por colegas oficiais e soldados, não conseguiu entretanto chegar ao destino, pois, na altura de Amaralina, desencarnou a bordo, sendo seu corpo dado à sepultura na Bahia.

Fonte: Grandes Vultos do Espiritismo

O problema da insatisfação

Por Vianna de Carvalho (espírito) / psicografia de Divaldo Franco

A insatisfação, que medra, assustadora, numa avalanche crescente, em todos os arraiais da Sociedade terrena, procede, de certo modo, da programática educacional das criaturas que, desde cedo, recebem orientação e adestramento em moldes eminentemente imediatistas, como se a vida devesse abraçar, apenas, o estreito limite entre o berço e o túmulo...

Centralizando todas as aspirações no trâmite carnal, o triunfo, conforme os padrões hedonistas, tem como finalidade à aquisição de valores para o gozo, o destaque na comunidade, a tranqüilidade que decorra de um estômago saciado, um sexo atendido e as vaidades estimuladas...

No entanto, mesmo quando tal ocorrência vem de ser lograda, acompanhada de emoções estésicas, eis que o sonhador da roupagem carnal se depara com outro tipo de necessidade que deflui do espírito, no seu processo de reeducação pelo impositivo reencarnacionista.

Os homens não são, exclusivamente, as suas necessidades orgânicas e emocionais que se enquadram na argamassa fisiopsicológica.

O berço e o túmulo representam, no processo da evolução, meios de que se utiliza a Sabedoria Divina para que o ser indestrutível entre e saia do corpo, adquirindo experiências, fixando aprendizagem, modelando caracteres, crescendo na fraternidade e santificando o amor, que arranca das expressões do instinto de posse para a sublimação através da renúncia e do sacrifício...

Concebendo a vida como um jogo fugaz de sensações, em que o homem dotado de recursos amoedados mais é feliz porque mais consegue, coloca todas as ambições no estreito condicionamento da posse material, que amargura, quando escassa e frustra. Quando farta.

De forma alguma os valores da rápida aquisição conseguem produzir no homem a verdadeira harmonia, tendo-se em vista que, impelido pelo próprio instinto de preservação da espécie, se não vigia, mais ambiciona, quanto mais detém.

A posse, no entanto, de forma alguma faculta equilíbrio emocional. Quando é abundante, produz o receio da perda, estimulando a existência dos fantasmas do medo de perder a posição e os recursos que lhe significam a vida... E, quando é exígua, favorece a escravidão ao que se gostaria de possuir, como fuga psicológica às inquietações quase sempre injustificáveis.

O homem deve arrimar-se nos valores éticos, que ele próprio constrói pouco a pouco em si e à sua volta, compensando-se no ideal altruísta, com que desata as emoções superiores que lhe jazem em gérmen, crescendo moralmente e superando as injunções do cárcere físico, mediante cuja ascensão consegue a lucidez que lhe dá a perfeita visão da vida e lhe dilata os horizontes em torno do que lhe convém e do que deve fazer.

Situando as metas da existência além dos prazeres transitórios e frustrantes, irmanado à fé libertadora, com que se arma de resistências para a dor, para o mal, para os distúrbios de qualquer natureza, logra superar-se e planar além de quaisquer vicissitudes negativas, através de cujo comportamento fruirá a real felicidade.

Não cobiçando mais do que lhe é lícito reter; não se afadigando em demasia pelas aquisições transitórias; não se antecipando sofrimentos advindos do receio do futuro; não vivendo exclusivamente para o corpo, os insucessos aparentes são convertidos em lições que amadurecem para os próximos empreendimentos, fixando o bem em si mesmo, com que se ala nos rumos do Bem Incessante após a vilegiatura orgânica, libertando-se das vestes físicas com a alegria do escafandrista que retorna à tona, concluída a tarefa feliz no seio das águas profundas...

A insatisfação que a tantos amargura, enferma e conduz a distonias de largo porte, pode e deve ser combatida através de uma pauta salutar de objetivos e de diretrizes evangélicas, conforme Allan Kardec extraiu dos conceitos morais das insuperáveis lições do Cristo, fazendo do Espiritismo o mais completo compêndio de otimismo e de sabedoria conhecido nos tempos hodiernos.

Reflexionando em torno dos valores reais, como dos aparentes, o homem de bem, inteligente, que sente necessidade de mais profundas e nobres aspirações para ser feliz, mergulha a mente e o sofrimento no exercício do amor, em seu sentido mais elevado, defrontando a grandeza da vida e realizando-se,por fim, em paz.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Preparando o médium e a mediunidade

Por José Queid Tufaile Huaixan

Tem-se observado que, embora o Espiritismo esteja conosco há quase cento e cinqüenta anos, ainda hoje as práticas mediúnicas são bastante atrasadas na maioria dos centros. Quando falamos desse atraso, não queremos com isso desmerecer os médiuns que de um modo ou de outro vêm procurando dar o melhor de si. Porém, se tivermos o cuidado de examinar o conteúdo do que fazemos, vamos verificar que produzimos bem pouco.

É pequena a quantidade de desobsessões que conseguimos; quase não dispomos de mensagens que possam ser examinadas racionalmente; trabalhamos com médiuns improdutivos durante anos e se precisamos de uma comunicação do plano espiritual no sentido de nos orientar, até pouco tempo só recorríamos a Francisco Cândido Xavier, na cidade de Uberaba, MG. Não temos confiança nos medianeiros de nossos centros.

Qual seria o motivo de conseguirmos tão pouco com a mediunidade? Allan Kardec, o codificador da Doutrina Espírita, demonstrou que se pode conseguir mensagens instrutivas do plano espiritual com relativa facilidade. Ele trabalhava com uma equipe séria de médiuns e solucionava 70% das obsessões. Hoje, quase nada conseguimos e as práticas espíritas, em face da fraqueza nos serviços de ordem espiritual, tiveram a atenção voltada para a assistência social.

Existem adeptos que acreditam estar cumprindo com suas obrigações, mesmo não tendo atividades mediúnicas mais ostensivas. Vemos isso com naturalidade. No movimento espírita não existem determinações ou imposições de quem quer que seja. Mas, o mesmo direito que assiste estas pessoas que querem continuar como estão, assiste outras que desejam melhorar-se.

Nossos estudos têm a finalidade de discutir idéias junto aos que crêem poder fazer progredir as práticas espíritas. Para isso, acreditamos ser necessário um diálogo em torno do que é a mediunidade, seu significado, sua utilidade e suas práticas diárias nos centros espíritas. Se assim procedermos, estaremos revendo conhecimentos e criando oportunidade para efetuarmos a reforma das atividades, neste delicado campo da relação com os espíritos.

O que é a mediunidade?

No Brasil é muito comum haver confusão em torno do que seja a mediunidade. Isto acontece em face de que, entre nós, há um hábito quase comum, de nos apegarmos a frases feitas, lançadas por espíritos, médiuns ou escritores. Existem no meio espírita variadas definições a respeito do que seria a mediunidade. Um dos erros comumente encontrados, é aquele em que ela é tida como "uma abençoada oportunidade de se fazer caridade". Com isso, tomou corpo em torno do movimento, a idéia de que o indivíduo deve trabalhar com sua mediunidade para ser salvo.

Dizia o Codificador, que a mediunidade é uma faculdade que o homem possui, por intermédio da qual recebe influência dos espíritos. Afirmava que todos somos mais ou menos médiuns, porém, que considerava médiuns somente aqueles que fossem capazes de produzir fenômenos patentes. Vejamos suas próprias palavras, no seu "Estudo sobre os médiuns", publicado na Revista Espírita de março de 1859.

"Como intérpretes das comunicações espíritas, os médiuns têm um papel de extrema importância e nunca seria demasiada a atenção dada ao estudo de todas as causas que os podem influenciar; e isto não só em seu próprio interesse, como também no daqueles que, não sendo médiuns, deles se servem como intermediários. Poderão assim julgar o grau de confiança que merecem as comunicações por eles recebidas.

Todos, já o dissemos, são mais ou menos médiuns. Mas, convencionou-se dar este nome aos que apresentam manifestações patentes e, por assim dizer, facultativas. Ora, entre estes, as aptidões são muito diversas: pode-se dizer que cada um tem sua especialidade. Ao primeiro exame, duas categorias se desenham muito nitidamente: os médiuns de efeitos físicos e os médiuns de efeitos inteligentes".

Preparando o médium

O primeiro passo para se preparar um médium numa casa espírita é o de identificá-lo como tal, saber distinguir quem deve ou não praticar a mediunidade. Para evitar erros além do normal, é preciso deixar de pensar como pensa todo mundo: que todos são médiuns ostensivos; que praticar mediunidade é fazer caridade; que as perturbações espirituais são provenientes de mediunidade a ser desenvolvida e outras idéias comuns. Tudo isso são interpretações pessoais de criaturas que pouco sabem da Codificação.

Meditando sobre as palavras de Kardec, que foram ditas acima, não é difícil identificarmos os médiuns. Consideremos médiuns só aqueles em que a faculdade se manifestar de forma patente, os que sentem facilmente a presença dos espíritos. Os outros, em quem o nível de influência é muito baixo, ou quase ausente, não devem ser colocados como médiuns, segundo o real significado da palavra.

Os primeiros, são os médiuns de acordo com a definição do Codificador. Os últimos, possuem aquilo que se chama mediunidade natural, que não serve de ponte entre os planos visível e invisível.

As obsessões

Dentre os que sentem de modo ostensivo a presença dos Espíritos, existem aqueles que estão perturbados pela obsessão. Estes, não devem ser orientados para o desenvolvimento, mas sim, encaminhados para um tratamento no centro espírita.

Quando se submete um paciente obsedado ao desenvolvimento da mediunidade, corre-se o risco de vê-lo mergulhar num estado de profundo desequilíbrio. O médium enfermo sofrerá maior agressão do obsessor no exercício da mediunidade, principalmente se sua obsessão apresentar um caráter de gravidade. Por esta razão, não devemos enviar obsedados para as sessões de desenvolvimento mediúnico.

O sensato é tratá-los pelo Espiritismo, acompanhados de tratamento médico se for necessário. Depois, se a sensilidade permanecer aberta a um nível elevado, essas pessoas poderão ser encaminhadas para a educação da mediunidade, se houver disposição para isso.

Estudos

Um dos grandes males que hoje afetam a prática do Espiritismo é a falta de estudos da Doutrina. Se de um lado há centros espíritas que desenvolvem cursos tão complexos como os de uma escola, dificultando o ingresso dos iniciantes, por outro, há casas que se abstêm completamente de qualquer esforço neste sentido. Em resumo: uns estudam demais; outros, de menos.

Perguntado se o exercício da mediunidade pode provocar numa pessoa a invasão dos maus Espíritos e suas conseqüências, Kardec responde demonstrando a importância dos estudos:

"Jamais dissimulamos os escolhos (obstáculos) encontradiços na mediunidade, razão por que multiplicamos, em "O Livro dos Médiuns", as instruções a tal respeito e não temos cessado de recomendar o seu estudo prévio, antes de se entregarem à prática. Assim, desde a publicação daquele livro, o número de obsediados diminuiu sensível e notoriamente, porque poupa uma experiência que os noviços muitas vezes só adquirem às próprias custas. Dizemo-lo ainda, sim, sem experiência a mediunidade tem inconvenientes, dos quais o menor, seria ser mistificado pelos Espíritos enganadores e levianos. Fazer Espiritismo experimental sem estudo é fazer manipulações químicas sem saber química".

O Codificador, já em seu tempo, alertava para o cuidado que se deve ter, quando se vai submeter uma pessoa ao contato com o mundo invisível. Recomendava instrução e a assistência de alguém com experiência. Por isso devemos estabelecer em nossas casas espíritas uma metodologia capaz de iniciar novatos na prática sadia da mediunidade.

Primeiro, devemos levar em conta se a pessoa tem alguma noção do que é a Doutrina Espírita. E, se já tem, se não está distorcida, misturada com aquilo que se chama "Espiritismo popular". No grupo onde trabalhamos, desenvolvemos um cursinho rápido, destinado aos iniciantes, onde eles aprendem os princípios elementares do Espiritismo. É o livro publicado por nós, chamado "Espiritismo para Iniciantes". O curso tem uma duração de dois meses, com uma aula semanal. Estuda a Criação; Deus; a origem da Doutrina Espírita; a Reencarnação; a Mediunidade; os Fluidos; os Passes e a Obsessão. Serve para dar uma noção básica aos que ingressam nos quadros de serviços da casa espírita, inclusive aos que vão lidar com a mediunidade.

As casas podem ministrar orientações já existentes em livros, ou criar seus próprios métodos.

Depois disso, os neófitos devem ser assistidos por alguém habituado às relações com o invisível, num estudo em "O Livro dos Médiuns". Deve-se dedicar especial atenção aos capítulos que falam dos cuidados que se deve ter com os desencarnados. Só após este procedimento, deverá se dar início ao preparo da mediunidade.

Preparando a mediunidade

Uma das fases mais delicadas do preparo do médium é aquela em que o novato vai exercitar sua mediunidade. A maioria dos que se dedicam ao intercâmbio com os espíritos possui grande ansiedade para "receber" as manifestações. Mas, as coisas não são tão simples quanto parecem. O exercício da mediunidade é uma fase de aperfeiçoamento psíquico, onde o indivíduo se submeterá à disciplina de muitas faces de sua personalidade, uma espécie de autoconhecimento, um pouco difícil de ser feito.

Os espíritos inferiores são excitadores das paixões do médium, e acabam por mostrar-lhes os defeitos de sua personalidade, que deverão ser corrigidos. Não há serviço mediúnico sem que o equilíbrio pessoal se dê pela ação dos contrários. O medianeiro chega ao bem pelo conhecimento do mal. Por esta razão, as mesas de desenvolvimento devem contar com pessoas maduras, dotadas de experiência capaz de orientar com segurança. Se não for assim, a prática da mediunidade poderá trazer prejuízos à vida psíquica, coisa que vem sendo muito comum na atualidade.

Citaremos neste trabalho, os pontos que julgamos serem as bases de um exercício mediúnico sadio e esperamos que contribuam de algum modo para ajudar os iniciantes do Espiritismo quanto às relações com os Espíritos.

Animismo

O animismo é a influência que a alma do médium exerce sobre as comunicações. Nos medianeiros onde a faculdade é mais intuitiva, a fator anímico é bem mais elevado, chegando, em alguns casos, a tornar o sensitivo improdutivo. O animismo se apresenta intenso na maioria dos principiantes e vai diminuindo com o desenvolvimento.

Os encarregados de dirigirem os trabalhos práticos precisam demonstrar que a presença ostensiva dos pensamentos do médium nas comunicações é uma coisa natural e, com o tempo, esta influência diminuirá. Os problemas anímicos do sensitivo, que afloram no transe mediúnico, podem ser orientados como se faz em qualquer situação de desarmonia. Todos os iniciantes devem ser esclarecidos que o mais importante fator de transformação e ajuste virá da reflexão evangélica. Falando do animismo, Kardec disse:

"O médium, tendo consciência do que escreve (ou fala), é naturalmente levado a duvidar de sua faculdade: não sabe se a escrita (ou mensagem) é dele mesmo ou de outro Espírito. Mas ele não deve absolutamente inquietar-se com isso e deve prosseguir apesar da dúvida. Observando com cuidado a si mesmo, facilmente reconhecerá nos escritos (ou nas palavras) muitas coisas que não lhe pertencem, que são mesmo contrárias aos seus pensamentos, prova evidente de que não procedem de sua mente.

Que continue, pois, e a dúvida se dissipará com a experiência". - Allan Kardec (O Livro dos Médiuns, item 214).

Os Espíritos inferiores

Em "O Livro dos Médiuns", o Codificador afirma que o maior obstáculo às práticas espíritas é a obsessão, o domínio que alguns Espíritos inferiores podem adquirir sobre certas pessoas. Nenhum médium está livre desta influência perniciosa, principalmente quando inicia seu mandato mediúnico. Nesta fase, suas imperfeições morais mais grosseiras são verdadeiros atrativos para as entidades atrasadas e, por esta razão, deve-se estar alerta com a conduta da equipe que trabalha no intercâmbio.

O medianeiro deve cuidar-se com uma disciplina o mais sadia possível, para que não seja vítima dos seres malévolos do mundo invisível. Toda alteração emocional ou psíquica considerada estranha e persistente deve ser comunicada ao orientador da mesa. Se houver suspeita de obsessão, o principiante deve ser afastado dos trabalhos mediúnicos, submetido a um tratamento e depois reconduzido às atividades.

Quando se detectar pessoas impressionáveis, de raciocínio confuso, sistemático ou excêntrico, elas devem ser afastadas definitivamente dos trabalhos práticos, conforme recomenda o Codificador.

Aos novatos:

"A dificuldade encontrada pela maioria dos médiuns iniciantes é a de ter que tratar com os Espíritos inferiores, e eles devem se considerar felizes quando se trata de Espíritos apenas levianos". ( - Allan Kardec - O Livro dos Médiuns, item 211).

Aos mais velhos:

"Suponhamos agora a faculdade mediúnica completamente desenvolvida. Que o médium escreva com facilidade, que seja o que se chama um médium feito. Seria um grande erro de sua parte considerar-se dispensado de novas instruções. Ele só teria vencido uma resistência material, e é então que começam as verdadeiras dificuldades. Mais do que nunca necessitará dos conselhos da prudência e da experiência, se não quiser cair nas mil armadilhas que lhe serão preparadas. Se quiser voar muito cedo com suas próprias asas, não tardará a ser enganado por Espíritos mentirosos, que procurarão explorar-lhe a presunção". ( - Allan Kardec - O Livro dos Médiuns, item 216).

A vida moral

As faculdades mediúnicas estão ligadas a uma disposição orgânica. O mesmo já não se dá quanto ao seu uso, que depende da condição moral do médium. Se tudo depende da moral, nossos grupos necessitam tê-la em alta conta, como uma espécie de farol orientador. Muitas decepções advindas da prática mediúnica são frutos da má orientação dadas aos iniciantes pelos que administram as mesas de desenvolvimento.

Na atualidade, há uma complascência excessiva em torno dos vícios das pessoas. Médiuns, passistas e membros dos grupos alimentam vícios grosseiros como o fumo, a bebida alcoólica e, nos casos mais graves, o adultério, a desonestidade, a sensualidade exagerada e o orgulho.

Se estamos dispostos a reformar as práticas do centro espírita que participamos, temos que cuidar dos aspectos morais dos componentes da casa. São eles que sustentam as atividades em todos os sentidos, mormente as mediúnicas.

Recomendamos o estudo regular nas sessões, e fora delas, de "O Evangelho Segundo o Espiritismo". Com isso, se conseguirá elementos morais destinados à auto-reflexão.

Leitura excessiva

O trabalhador espírita estuda sempre. Lê livros teóricos e práticos para o seu enriquecimento doutrinário. Mas, deve evitar a poluição mental por obras espíritas. Há médiuns que não conseguem trabalhar em face de sobrecarregarem suas mentes com leituras.

Assistência material

Não se pode conceber a atividade mediúnica sem o trabalho material. O serviço na seara dos sofredores auxilia o médium a compreender a dor e lhe dá suporte para os embates próprios do mediunato. Todo médium deve ter atividades de assistência material regularmente.

É importante considerarmos a prática da mediunidade como um trabalho que não dispensa o serviço do médium na assistência material. Por acharem que a mediunidade é caridade, apareceu um grande contingente de médiuns que só vão ao centro "receber" espíritos e crêem já estar com seus compromissos cumpridos.

Disciplina

Por fim, a disciplina. Dominar-se é uma das coisas mais difíceis de se fazer. No entanto, aqueles que vão lidar com os espíritos precisam ter um certo domínio sobre si. Se não levarem em conta este fator, o melhor é afastar-se do ministério. Deixar o cigarro, a bebida, a freqüência em ambientes mundanos, melhorar a vida familiar, profissional, adquirir uma conduta regular frente à prece, tudo isso é disciplinar-se. Conhecer a si mesmo e trabalhar as próprias imperfeições é o caminho para uma prática mediúnica sadia.

"Antes de nos dirigirmos aos Espíritos, convém, pois, encouraçarmo-nos contra o assalto dos maus, assim como se marchássemos em terreno onde tememos picadas de cobras. Isto se consegue, inicialmente, pelo estudo prévio, que indica a rota e as precauções a tomar; a seguir, a prece. Mas é necessário bem nos compenetrarmos da verdade que o único preservativo está em nós, na própria força, e nunca nas coisas exteriores; que nem há talismãs, nem amuletos, nem palavras sacramentais, nem fórmulas sagradas ou profanas que tenham a menor eficácia se não tivermos em nós mesmos as qualidades necessárias. Assim, essas qualidades é que devem ser adquiridas" Allan Kardec (Revista Espírita, número de janeiro de 1863, no Estudo sobre os possessos de Morzine).