Publicado em Reformador, agosto 2003, pp. 315-319, setembro 2003, pp. 356-359, outubro 2003, pp. 397-399.
O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso [1]
Por Silvio Seno Chibeni
1. Introdução
Ao refundir o material da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), preparando a segunda edição (1860), Kardec achou por bem inserir, já na primeira linha do livro, na folha de rosto, a seguinte frase: “Filosofia Espiritualista”. Kardec quis, com ela, fornecer ao leitor uma caracterização sucinta do caráter do Espiritismo, cujas bases a obra assentava. Essa caracterização é depois detalhada de modo implícito ou explícito no resto do livro e no restante de sua produção espírita. Uma das primeiras especializações do conceito expresso na frase é introduzida já na Introdução do mesmo livro, item I, no qual Kardec traça a distinção entre espiritualismo e Espiritismo. A partir desse ponto, tratará sempre (salvo para efeito de comparação) do conceito mais específico de filosofia espírita.
O destaque dado por Kardec a esse conceito indica que é por ele que devemos começar a análise do chamado “tríplice aspecto” do Espiritismo. Essa caracterização não pode ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. Não nos ocuparemos aqui da questão histórica da origem dessa maneira tão disseminada de compreender o Espiritismo. Nosso objetivo neste artigo é estabelecer que ela é, em sua essência, correta, e que está presente no pensamento do criador do Espiritismo. Além disso, pretendemos esclarecer alguns mal-entendidos a que a caracterização tem dado lugar, por causa da compreensão incorreta, ou imprecisa dos conceitos de ciência, filosofia e religião, bem como da verdadeira natureza do Espiritismo.
2. O que é filosofia?
Antes de tentarmos entender o que Kardec entendia por ‘filosofia espírita’, e por que ele priorizou essa noção ao dar uma fórmula sucinta do Espiritismo, é importante compreendermos a noção geral de filosofia. É claro que se trata de um assunto complexo, que requereria estudos especializados para ser abordado de forma satisfatória. O que exporemos aqui é apenas um esboço, mas que, tanto quanto julgamos, é correto e útil para investigações ulteriores.
Como quase todas as palavras, filosofia possui diversos significados. Popularmente, o termo tem hoje três acepções principais: 1) certos valores ou princípios de vida, muito gerais e variáveis segundo os indivíduos ou grupos sociais; 2) certos métodos, regras e propósitos de um empreendimento qualquer; e 3) certas doutrinas esotéricas ou místicas. Nenhum desses três significados corresponde à noção original, acadêmica, de filosofia, e que foi usada por Kardec em quase todas as ocasiões em que falou no aspecto filosófico do Espiritismo.
Não obstante aparentemente simples, as questões do que é e para que serve a filosofia – no sentido acadêmico do termo – estão entre as que mais dificuldades e divergências causam entre os próprios filósofos profissionais. Esse mero fato, porém, já indica algo importante sobre a natureza da filosofia: o questionamento sistemático, incessante e profundo de tudo o que se afirma.
As origens da filosofia remontam à Grécia Antiga. Pela própria etimologia do termo, notamos que a filosofia era entendida como o amor do saber, ou a busca da verdade. Naquela época e, em certa medida, por muitos séculos da era cristã, a filosofia englobava todos os ramos do conhecimento puro (em contraste com as artes e ofícios, o conhecimento “aplicado”). Gradualmente, alguns desses ramos foram se tornando autônomos, como a matemática, a astronomia, a história, a biologia, a física. Mais ou menos a partir do século XVII, alguns deles começam a ser agrupados sob outra denominação: a de ciência.
Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco principal da filosofia as disciplinas da estética, lógica, ética, epistemologia e metafísica. De forma muito simplificada, pode-se dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica investiga o encadeamento formal das proposições; a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam de suas interconexões e especializações, como a teologia, a filosofia política, a filosofia da linguagem, a filosofia da ciência.
Uma das principais correntes filosóficas contemporâneas propõe que a filosofia não deve ser entendida como a formulação ou defesa de teses ou conjuntos de teses sobre o que quer que seja, mas simplesmente como o desenvolvimento de métodos de análise crítica e sistemática, a serem aplicados especialmente ao chamado conhecimento científico. Nessa perspectiva, o filósofo seria alguém que tenta explicitar os conceitos, os pressupostos, a estrutura lógica e as implicações das teorias científicas, políticas, religiosas, etc. Semelhante atitude crítica – que não se confunde com uma crítica leviana, estouvada ou interesseira – seria a essência da filosofia, o elemento comum que permearia a grande variedade de linhas filosóficas existentes.
Embora quando se olhe para as abstrações e sutilezas tipicamente discutidas pelos filósofos se possa concluir que a filosofia para nada serve, a referida proposta talvez permita encontrar, num plano afastado do das necessidades materiais cotidianas, uma finalidade útil para a filosofia: a elucidação das bases, métodos e implicações das ciências e de outras disciplinas intelectuais, contribuindo assim para a identificação de fundamentos falsos ou inseguros, de falácias argumentativas, de dogmas encobertos.
Ensinando, ou pelo menos convidando, o homem a refletir criticamente sobre tudo o que se afirma ou faz em todos os setores, a filosofia de alguma forma auxilia o aprimoramento de seu intelecto e, talvez, de seus sentimentos, que o diferenciam de um mero ser que come, bebe, dorme e se reproduz.
3. A filosofia espírita
Passando agora à noção de filosofia espírita, uma observação preliminar importante é que no tempo de Kardec o sentido original, amplo, da palavra ‘filosofia’ ainda prevalecia, em boa medida. Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia, Kardec não estava excluindo seu caráter científico, muito pelo contrário. Além disso, como a ética ou moral é uma das áreas da filosofia – e isso até hoje –, aquela designação também não excluía o aspecto moral do Espiritismo, que é a essência da chamada religião espírita. Detalharemos esses pontos nas seções seguintes deste trabalho.
Há referências à filosofia, ou à filosofia espírita, em todas as obras de Kardec. O significado preciso das expressões varia, é claro, segundo o contexto. De um modo geral, podemos identificar duas acepções principais da expressão, uma ampla e outra restrita.
Na acepção ampla, Kardec entende pela expressão alguma teoria, conjunto de teses, ou atividade intelectual que se caracterizam pela racionalidade, e se inserem portanto na tradição da filosofia acadêmica de cultivo do saber pelo saber. Nesse sentido a filosofia engloba a própria ciência e a moral, como já apontamos. Há dezenas de passagens nas obras de Kardec em que a expressão é usada nessa acepção. A primeira é, naturalmente, a já mencionada frase da folha de rosto.Vejamos algumas outras, restringindo-nos, por falta de espaço, ao Livro dos Espíritos (os itálicos do termo ‘filosofia’ são nossos).[2]
LE, Prolegômenos: “Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema.”
LE, Prefácio da 2a edição (que não é mais reproduzido nas edições atuais): “O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial” [a ser desenvolvido no Livro dos Médiuns].
LE, Conclusão, item V: “Três períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências. O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões sérias. Começou o segundo período, o terceiro virá inevitavelmente.”
LE, Conclusão, item VII: “O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: [...]” [3]
Na acepção restrita da expressão ‘filosofia espírita’, Kardec refere-se a tópicos clássicos tratados pelos filósofos, como a existência e atributos de Deus, a distinção alma-corpo, as idéias inatas, o livre-arbítrio, a objetividade dos critérios morais, etc. Na maior parte das vezes em que ele usa o termo ‘filosofia’ nesse sentido mais específico, quer ressaltar um ponto de central importância: a capacidade que o Espiritismo tem de tratar com segurança, clareza e plausibilidade alguns dos mais espinhosos e desafiadores problemas filosóficos. Em alguns casos o ponto é mencionado genericamente; em outros ele considera explicitamente esses problemas. Vejamos alguns exemplos, começando com alguns trechos do primeiro tipo (destacamos o termo ‘filosofia’).
LE, Conclusão, item 1: “Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.”
LE, Conclusão, item 6: “Mesmo quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo às manifestações dos Espíritos diz para si próprio: à parte esses fenômenos, há a filosofia, que me explica o que nenhuma outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá calma, segurança, confiança; livra-me do tormento da incerteza.”
QE, Preâmbulo: No terceiro capítulo, publicamos um resumo de O Livro dos Espíritos, com a solução, pela doutrina espírita, de certo número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica, moral e filosófica, que diariamente são propostos, e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória. [...] Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas, quais as que melhor satisfazem à razão.”
Vejamos agora algumas passagens com referências a problemas filosóficos tradicionais, que têm solução adequada pelo Espiritismo. Indicamos sumariamente entre colchetes o problema em questão.
LE, Introdução, item 17 [a continuidade evolutiva na criação]: “A razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega.”
LE, item 222 [a desigualdade das aptidões face à justiça divina]: “Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?”
LM, par. 35, n. 2 [o futuro do homem]: “O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas conseqüências morais. É a revelação do destino do homem, a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios da vida de além-túmulo.”
ESE, cap. 5, item 6 [a dor face à justiça divina]: “Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra.”
CI, parte 1, cap. 1, item 13 [a questão do materialismo e do panteísmo]: Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença. O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.”
G, cap. 4, item 11 [a origem das faculdades espirituais do homem]: “Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de idéias, que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.”
G, cap. 4, item 12 [origem e destino do homem]: “Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada. Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência a seguirem a religião, que não discute.
OP, pp. 86-7 [o problema mente-corpo]: Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina. [...] Tínhamos, como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações com a filosofia e a psicologia.
QE, pp. 169-70, 189 [a imortalidade da alma] As manifestações não são, pois, destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está nas conseqüências morais que delas dimanam; não tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque era largo caminho novo aberto à Filosofia. [...] Nas lições de filosofia clássica, os professores ensinam a existência da alma e seus atributos, segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais. [...] Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto de ciência, procura com empenho e colhe com alegria tudo o que possa demonstrar a veracidade dessa hipótese; como, pois, um professor de filosofia, cujo dever é provar a seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os meios de lhes fornecer uma patente demonstração?
Esses trechos ilustram bem a afirmação de Kardec em O que é o Espiritismo (diálogo com o cético, p. 65) de que “O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia [...]”. E note-se que tal afirmação é confirmada não só por passagens como as citadas, em que o termo ‘filosofia’ aparece explicitamente (e há ainda muitas outras em que isso ocorre), mas também pelos estudos efetivamente desenvolvidos por Kardec acerca de numerosos outros tópicos filosóficos.
4. O que é ciência? [4]
Como já ressaltamos, aquilo que hoje chamamos ciência derivou da filosofia, tal qual entendida nos primeiros tempos de nossa cultura ocidental. É importante, pois, identificar os traços que servem para distinguir o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento. Essa é uma das questões de que se ocupa um dos ramos especiais da filosofia mencionados anteriormente, a filosofia da ciência.
Notadamente na segunda metade do século XX, progressos significativos foram realizados nessa área. Reconhece-se hoje entre os especialistas que uma certa concepção de ciência cujas origens remontam à época do nascimento da ciência moderna, no século XVII, e que é comum até hoje entre o público leigo, padece de sérias inadequações. Ela não resiste nem a variados argumentos filosóficos levantados mais recentemente, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da física, da química e da biologia. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como positivismo lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930.
Grosso modo, essa visão comum de ciência pressupõe que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos supostamente seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.
O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da ciência não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis de serem levados a cabo. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas; a imaginação criadora do homem desempenha papel essencial na gênese das teorias científicas.
A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das pesquisas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal, formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que estipula que nesse desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o filósofo da ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa científico de pesquisa. [5]
A exigência fundamental de um programa científico de pesquisa é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. Outras características importantes de qualquer boa teoria científica são: a consistência: a teoria não pode envolver contradições; a coerência: os princípios da teoria devem apoiar-se mutuamente; a abrangência: a teoria deve explicar, ao menos em linhas gerais, todos os principais fenômenos de seu domínio; deve ainda exibir unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há, por fim, o vínculo externo de não conflitar com as demais teorias científicas bem confirmadas que tratem de domínios de fenômenos complementares.
Tendo fornecido essa noção geral, bastante simplificada e incompleta, da concepção contemporânea de ciência, passemos à questão da ciência espírita.
5. A ciência espírita
A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos requisitos de uma ciência genuína, segundo as caracterizações da filosofia da ciência contemporânea, como a esboçada na seção precedente. Em artigo anterior, “A excelência metodológica do Espiritismo”, procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec antecipou-se às conquistas recentes da filosofia da ciência, e compreendeu muito bem a questão. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde efetivamente à visão que os filósofos da ciência têm hoje. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito.
O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela a adequação da teoria com os fatos, sua consistência e seu alto grau de coesão e simplicidade, bem como a amplitude de seu escopo. Ademais, ali estão implicitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Muitos desses desenvolvimentos foram, como se sabe, implementados pelo próprio Kardec, e se acham expostos nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o progresso experimental e teórico do Espiritismo prossegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.
Em contraste com os fundamentos científicos sólidos lançados por Kardec no estudo do elemento espiritual do homem, as linhas de pesquisa que surgiram mais tarde, com a pretensão competir com o Espiritismo nessa área, não alcançaram o mesmo sucesso. Deve-se notar, a tal respeito, que elas tiveram início justamente na época em que o positivismo lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como os filósofos perceberam depois, as linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.
Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores dessas linhas de investigação a não somente empenharem de modo infrutífero os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, o Espiritismo. Uma análise mais detalhada desse ponto pode ser encontrada na seção 4 de “A excelência metodológica do Espiritismo”, e não será reproduzida aqui.
6. A ciência espírita e as ciências acadêmicas
Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da física, quer da química ou da biologia. É de crucial importância notar que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com tais ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.
Kardec compreendeu perfeitamente bem essa distinção, e chamou a atenção para ela em diversos de seus textos, como por exemplo no item VII da Introdução do Livro dos Espíritos. Ali argumentou com segurança que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, ou seja, das ciências acadêmicas. Por outro lado, no parágrafo 16 do primeiro capítulo de A Gênese, enfatizou a referida complementaridade do Espiritismo e dessas ciências, afirmando que “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.[6]
A percepção desses pontos evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado o movimento espírita atual. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste justamente naquelas linhas de investigação iniciadas depois de Kardec, e cuja fragilidade científica é evidente, à luz de uma análise filosófica cuidadosa. Outros pensam que a ciência espírita consiste de investigações do âmbito das ciências acadêmicas, especialmente as que envolvam experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens complexas, de uso nos laboratórios de física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados dessa ciência. Assume-se que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre não compreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade às investigações.
Dada a gravidade dos enganos envolvidos em semelhantes posições, vale a pena nos determos um pouco mais sobre elas. Deve-se, além dos esclarecimentos gerais já indicados, notar que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá mediante os fenômenos a que denominou “de efeitos intelectuais”, quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita com isenção sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco.
Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Nestes últimos casos, o “grau teórico” (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. O caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser afirmados fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes. E, de fato, a história da física e da química tem ilustrado a instabilidade de suas teorias que avançam além do nível da percepção direta.
No caso do referido princípio espírita, bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo, a situação é bastante diversa. Trata-se de princípios pertencentes à classe de princípios a que os filósofos denominam “fenomenológicos”, que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o fogo queima e a cicuta envenena.
Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais – a saber, que são causados por uma inteligência humana desencarnada – não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculiares e íntimos, característicos daquele amigo. Exatamente o mesmo se dá com numerosos e variados casos de psicografia ou outras manifestações inteligentes. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida acerca da sobrevivência do ser.
É importante observar, por fim, que além dos fenômenos especiais que formam a classe dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em uma multidão de fenômenos ordinários, em virtude de oferecer uma base sólida para sua compreensão. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.
Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. “O estudo do Espiritismo é imenso”, disse Kardec em outra passagem; “interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós” (O Livro dos Espíritos, Introdução, item XIII).
7. O aspecto religioso do Espiritismo [7]
Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões. Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias. Se no estabelecimento da primeira dessas teses é necessário identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.
A palavra religião evoca, por sua origem, à idéia da “re-ligação” do homem ao Criador. Como se sabe, ao longo da história inúmeras propostas se apresentaram de como essa “re-ligação” deve ser entendida e efetuada, resultando daí as diversas “religiões”.
Afora divergências sobre a própria noção de Deus e da natureza do ser humano, as religiões se diferenciam quanto aos requisitos propostos para que a criatura se religue a Deus. Quase sempre, eles incluem a adequação da conduta a certas regras morais. Tipicamente, também incluem a satisfação de providências formais e externas de vária ordem: participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns, etc.
Ora, já se pode perceber aqui algumas distinções fundamentais entre o Espiritismo e as religiões ordinárias. Como elas, o Espiritismo também se preocupa com o destino do homem, na Terra e no além-túmulo, procurando instruí-lo quanto ao que deve fazer para que alcance estados de felicidade cada vez maior. No entanto, o Espiritismo propõe que esse objetivo pode ser alcançado exclusivamente pela adaptação da conduta a determinados preceitos morais. Qualquer medida de ordem exterior é mostrada ser não somente ineficaz, mas também, em muitos casos, nociva, por desviar a atenção do ponto principal e induzir ao sectarismo.
Depois, uma diferença crucial surge no modo pelo qual as regras éticas são justificadas. As religiões ordinárias procuram justificar as normas morais que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição. Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus princípios éticos – sintetizados no preceito cristão do amor ao próximo – no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam.”
Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que, com o conhecimento científico espírita, a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo dos efeitos naturais das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.
Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres – e portanto, efetivamente, com o plano divino –, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, explicado acima.
A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi estudado em profundidade no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868.[8] Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:
[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.
Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
8. Conclusões
Inegavelmente, o Espiritismo é um empreendimento intelectual de ampla envergadura. Em diversas ocasiões Allan Kardec ressaltou o seu caráter abrangente, bem como a importância de considerá-lo em seu conjunto, quando se trata de avaliá-lo e de investigar suas implicações.
Como vimos, na primeira linha da segunda edição do Livro dos Espíritos Kardec caracterizou-o sucintamente como “filosofia espiritualista”. Espiritualista, porque estando centrado na constatação de que o homem é essencialmente, enquanto ser pensante, espírito, insere-se no âmbito das doutrinas que se contrapõem ao materialismo. Filosofia, porque investiga esse ser espiritual segundo uma abordagem racional, sistemática e abrangente, típica da tradição de pesquisa inaugurada pelos filósofos gregos, e que permeia toda a cultura ocidental até hoje. Nesse sentido original, a filosofia abarcava todos os ramos do saber puro. Mesmo aquilo que, a partir de uma certa época da história do pensamento, passou a ser chamado de ciência caía sob o escopo da filosofia.
Assim, a caracterização kardequiana em análise não deve ser tomada como excluindo a dimensão científica do Espiritismo, muito pelo contrário. Conforme deixou claro no desdobramento de suas pesquisas, Kardec compreendeu que tal dimensão não somente existia, mas que constituía mesmo a base sobre a qual a filosofia espírita repousa. Note-se, por exemplo, que no preâmbulo de O que é o Espiritismo Kardec o define como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. Quando bem compreendida, essa definição não conflita com a que está na página de rosto do Livro dos Espíritos. Apenas salienta que os fundamentos da filosofia espírita são científicos, e não puramente especulativos, ou derivados de alguma tradição mística, religiosa, ou qualquer outra. Foi a análise científica de certos fenômenos que deu origem ao Espiritismo, e estabeleceu desde então o núcleo teórico sobre o seu objeto de estudo, ou seja, o espírito.
No entanto, como essa análise conduz, por sua própria natureza, a tópicos extremamente abrangentes e fundamentais, no que diz respeito ao conhecimento do espírito, ela avança por domínios tipicamente considerados filosóficos, mesmo segundo a concepção contemporânea, mais restrita, de filosofia. O caso quiçá mais importante dessa extensão é o da moral (ou ética). Kardec explorou com grande lucidez as implicações do conhecimento científico espírita para as questões-chave da moral, dentre as quais a da fundamentação das regras morais. Fez notar que o conhecimento científico acerca do homem propiciado pelo Espiritismo permite o estabelecimento de um corpo de princípios morais objetivos, e que ele coincide com aqueles propostos pelo Cristo. Salientou ainda que tais princípios sintetizam o que há de essencial na noção de religião. Nesse sentido, e apenas nele, o Espiritismo pode ser dito uma religião, adverte Kardec no famoso artigo da Revue Spirite.
Dessa forma, os chamados “três aspectos” (ou “partes”) do Espiritismo encontram-se inextricavelmente ligados. Talvez mesmo devêssemos evitar a utilização dessa expressão, porque pode induzir à idéia errônea de que se trata de três elementos separados ou separáveis, que agrupamos apenas por conveniência. É significativo, a esse respeito, que o próprio Kardec tenha evitado caracterizar o Espiritismo em tais termos. Quando tentou sintetizar a natureza do Espiritismo, recorreu ora à noção de filosofia, ora à de ciência, dependendo do contexto. Mas em ambos os casos indicou que não se tratava de uma delimitação muito estreita da noção.
Se pensarmos no Espiritismo em termos de filosofia, será uma filosofia apoiada em bases científicas, e que tem como um dos objetivos centrais o estudo das questões morais. Se pensarmos em termos de ciência, não será uma pesquisa seca, que simplesmente constate e sistematize fatos, mas de uma investigação de longo alcance sobre um objeto de fundamental importância, o elemento espiritual. Essa ciência complementa, pois, as ciências acadêmicas, cujo objeto de estudo é o elemento material. E, pela própria natureza de seu objeto de estudo, a ciência espírita necessariamente diz respeito a tópicos genuinamente filosóficos, dentre os quais ressalta, por sua importância prática, aqueles referentes à moral.
Referências
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Chibeni, S. S. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
–––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
–––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.
–––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.
–––. “As acepções da palavra ‘Espiritismo’ e a preservação doutrinária”. Reformador, julho de 1999, pp. 212-214. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – I.)
–––. “Revisão da terminologia espírita?”. Reformador, agosto de 1999, pp. 250-252. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – II.)
–––. “A religião espírita”. Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – III.)
–––. “A ‘ciência oficial’”. Reformador, outubro de 1999, pp. 312-313. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – IV.)
–––. “As relações da ciência espírita com as ciências acadêmicas”. Reformador, novembro de 1999, pp. 344-346. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – V.)
–––. “Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas”. Reformador, dezembro de 1999, pp. 380-383. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VI.)
–––. “A pesquisa científica espírita” Reformador, janeiro de 2000, pp. 24-25. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VII.)
Kardec, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.
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–––. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
–––. Revue Spirite. Coleção da Federação Espírita do Paraná.
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–––. O que é o Espiritismo. (s. trad.) 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
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–––. L’Évangile selon le Spiritisme. (Reprodução fotográfica da 3a edição francesa.) 1a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.
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–––. O Céu e o Inferno. Trad. de Manuel Quintão. 28ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
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–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
Lakatos, I. “Falsification and the methodology of scientific research programmes”. In: Lakatos I, e Musgrave, A. (eds.) Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. Pp. 91-195.
[1] Texto apresentado no XII Congresso Estadual de Espiritismo (USE). Campinas, SP, 17 a 20/4/2003.
[2] Neste trabalho usaremos as seguintes abreviações: LE - O Livro dos Espíritos; QE – O que é o Espiritismo; LM – O Livro dos Médiuns; ESE – O Evangelho Segundo o Espiritismo; CI – O Céu e o Inferno; G – A Gênese; OP – Obras Póstumas (as referências de páginas deste livro são feitas pela tradução da FEB); VE – Viagem Espírita em 1862 (páginas pela edição francesa corrente).
[3] Outros exemplos importantes do uso da expressão ‘filosofia espírita’ na acepção ampla estão em: LM, parágrafos 14 (n. 7) e 32, capítulo 31 (item 18); OP, pp. 221, 247 e 253; QE, Preâmbulo; VE, pp. 6, 8 e 20.
[4] Esta seção e a seguinte aproveitam partes de nossos artigos “Espiritismo e ciência” e “A excelência metodológica do Espiritismo”, que deverão ser consultados para um tratamento mais detalhado do assunto. Ver também os artigos sobre ciência espírita na série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”. As referências são dadas no final deste trabalho.
[5] Ver Lakatos 1970. Para uma exposição acessível dessa e de outras abordagens da questão da natureza da ciência, consulte-se Chalmers 1982. Para uma análise da ciência espírita à luz de outra teoria filosófica contemporânea acerca da ciência, elaborada por Thomas Kuhn mais ou menos no mesmo período, ver nosso artigo “O paradigma espírita”.
[6] Note-se que nessas citações o termo ‘ciência’ é usado numa acepção mais restrita do que a anteriormente elucidada. Para um estudo mais completo da análise kardequiana das relações entre o Espiritismo e as ciência ordinárias, ver a seção 3 de “A excelência metodológica do Espiritismo” e as partes IV e V da série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”.
[7] Esta seção aproveita idéias e trechos de nossos artigos “Os fundamentos da ética espírita”, “A excelência metodológica do Espiritismo”, seção 5, e “A religião espírita” (o terceiro artigo da série “Questões acerca da natureza do Espiritismo”), que deverão ser consultados para um maior desenvolvimento do assunto.
[8] Dezembro, pp. 353-62. Note-se que se trata de uma dos últimos números da Revue compostos por Kardec. O texto expressa, pois, o seu pensamento mais refletido sobre o assunto.
1
O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso [1]
Por Silvio Seno Chibeni
1. Introdução
Ao refundir o material da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), preparando a segunda edição (1860), Kardec achou por bem inserir, já na primeira linha do livro, na folha de rosto, a seguinte frase: “Filosofia Espiritualista”. Kardec quis, com ela, fornecer ao leitor uma caracterização sucinta do caráter do Espiritismo, cujas bases a obra assentava. Essa caracterização é depois detalhada de modo implícito ou explícito no resto do livro e no restante de sua produção espírita. Uma das primeiras especializações do conceito expresso na frase é introduzida já na Introdução do mesmo livro, item I, no qual Kardec traça a distinção entre espiritualismo e Espiritismo. A partir desse ponto, tratará sempre (salvo para efeito de comparação) do conceito mais específico de filosofia espírita.
O destaque dado por Kardec a esse conceito indica que é por ele que devemos começar a análise do chamado “tríplice aspecto” do Espiritismo. Essa caracterização não pode ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. Não nos ocuparemos aqui da questão histórica da origem dessa maneira tão disseminada de compreender o Espiritismo. Nosso objetivo neste artigo é estabelecer que ela é, em sua essência, correta, e que está presente no pensamento do criador do Espiritismo. Além disso, pretendemos esclarecer alguns mal-entendidos a que a caracterização tem dado lugar, por causa da compreensão incorreta, ou imprecisa dos conceitos de ciência, filosofia e religião, bem como da verdadeira natureza do Espiritismo.
2. O que é filosofia?
Antes de tentarmos entender o que Kardec entendia por ‘filosofia espírita’, e por que ele priorizou essa noção ao dar uma fórmula sucinta do Espiritismo, é importante compreendermos a noção geral de filosofia. É claro que se trata de um assunto complexo, que requereria estudos especializados para ser abordado de forma satisfatória. O que exporemos aqui é apenas um esboço, mas que, tanto quanto julgamos, é correto e útil para investigações ulteriores.
Como quase todas as palavras, filosofia possui diversos significados. Popularmente, o termo tem hoje três acepções principais: 1) certos valores ou princípios de vida, muito gerais e variáveis segundo os indivíduos ou grupos sociais; 2) certos métodos, regras e propósitos de um empreendimento qualquer; e 3) certas doutrinas esotéricas ou místicas. Nenhum desses três significados corresponde à noção original, acadêmica, de filosofia, e que foi usada por Kardec em quase todas as ocasiões em que falou no aspecto filosófico do Espiritismo.
Não obstante aparentemente simples, as questões do que é e para que serve a filosofia – no sentido acadêmico do termo – estão entre as que mais dificuldades e divergências causam entre os próprios filósofos profissionais. Esse mero fato, porém, já indica algo importante sobre a natureza da filosofia: o questionamento sistemático, incessante e profundo de tudo o que se afirma.
As origens da filosofia remontam à Grécia Antiga. Pela própria etimologia do termo, notamos que a filosofia era entendida como o amor do saber, ou a busca da verdade. Naquela época e, em certa medida, por muitos séculos da era cristã, a filosofia englobava todos os ramos do conhecimento puro (em contraste com as artes e ofícios, o conhecimento “aplicado”). Gradualmente, alguns desses ramos foram se tornando autônomos, como a matemática, a astronomia, a história, a biologia, a física. Mais ou menos a partir do século XVII, alguns deles começam a ser agrupados sob outra denominação: a de ciência.
Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco principal da filosofia as disciplinas da estética, lógica, ética, epistemologia e metafísica. De forma muito simplificada, pode-se dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica investiga o encadeamento formal das proposições; a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam de suas interconexões e especializações, como a teologia, a filosofia política, a filosofia da linguagem, a filosofia da ciência.
Uma das principais correntes filosóficas contemporâneas propõe que a filosofia não deve ser entendida como a formulação ou defesa de teses ou conjuntos de teses sobre o que quer que seja, mas simplesmente como o desenvolvimento de métodos de análise crítica e sistemática, a serem aplicados especialmente ao chamado conhecimento científico. Nessa perspectiva, o filósofo seria alguém que tenta explicitar os conceitos, os pressupostos, a estrutura lógica e as implicações das teorias científicas, políticas, religiosas, etc. Semelhante atitude crítica – que não se confunde com uma crítica leviana, estouvada ou interesseira – seria a essência da filosofia, o elemento comum que permearia a grande variedade de linhas filosóficas existentes.
Embora quando se olhe para as abstrações e sutilezas tipicamente discutidas pelos filósofos se possa concluir que a filosofia para nada serve, a referida proposta talvez permita encontrar, num plano afastado do das necessidades materiais cotidianas, uma finalidade útil para a filosofia: a elucidação das bases, métodos e implicações das ciências e de outras disciplinas intelectuais, contribuindo assim para a identificação de fundamentos falsos ou inseguros, de falácias argumentativas, de dogmas encobertos.
Ensinando, ou pelo menos convidando, o homem a refletir criticamente sobre tudo o que se afirma ou faz em todos os setores, a filosofia de alguma forma auxilia o aprimoramento de seu intelecto e, talvez, de seus sentimentos, que o diferenciam de um mero ser que come, bebe, dorme e se reproduz.
3. A filosofia espírita
Passando agora à noção de filosofia espírita, uma observação preliminar importante é que no tempo de Kardec o sentido original, amplo, da palavra ‘filosofia’ ainda prevalecia, em boa medida. Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia, Kardec não estava excluindo seu caráter científico, muito pelo contrário. Além disso, como a ética ou moral é uma das áreas da filosofia – e isso até hoje –, aquela designação também não excluía o aspecto moral do Espiritismo, que é a essência da chamada religião espírita. Detalharemos esses pontos nas seções seguintes deste trabalho.
Há referências à filosofia, ou à filosofia espírita, em todas as obras de Kardec. O significado preciso das expressões varia, é claro, segundo o contexto. De um modo geral, podemos identificar duas acepções principais da expressão, uma ampla e outra restrita.
Na acepção ampla, Kardec entende pela expressão alguma teoria, conjunto de teses, ou atividade intelectual que se caracterizam pela racionalidade, e se inserem portanto na tradição da filosofia acadêmica de cultivo do saber pelo saber. Nesse sentido a filosofia engloba a própria ciência e a moral, como já apontamos. Há dezenas de passagens nas obras de Kardec em que a expressão é usada nessa acepção. A primeira é, naturalmente, a já mencionada frase da folha de rosto.Vejamos algumas outras, restringindo-nos, por falta de espaço, ao Livro dos Espíritos (os itálicos do termo ‘filosofia’ são nossos).[2]
LE, Prolegômenos: “Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema.”
LE, Prefácio da 2a edição (que não é mais reproduzido nas edições atuais): “O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial” [a ser desenvolvido no Livro dos Médiuns].
LE, Conclusão, item V: “Três períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das conseqüências. O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões sérias. Começou o segundo período, o terceiro virá inevitavelmente.”
LE, Conclusão, item VII: “O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o fato das manifestações, os princípios de filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: [...]” [3]
Na acepção restrita da expressão ‘filosofia espírita’, Kardec refere-se a tópicos clássicos tratados pelos filósofos, como a existência e atributos de Deus, a distinção alma-corpo, as idéias inatas, o livre-arbítrio, a objetividade dos critérios morais, etc. Na maior parte das vezes em que ele usa o termo ‘filosofia’ nesse sentido mais específico, quer ressaltar um ponto de central importância: a capacidade que o Espiritismo tem de tratar com segurança, clareza e plausibilidade alguns dos mais espinhosos e desafiadores problemas filosóficos. Em alguns casos o ponto é mencionado genericamente; em outros ele considera explicitamente esses problemas. Vejamos alguns exemplos, começando com alguns trechos do primeiro tipo (destacamos o termo ‘filosofia’).
LE, Conclusão, item 1: “Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.”
LE, Conclusão, item 6: “Mesmo quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo às manifestações dos Espíritos diz para si próprio: à parte esses fenômenos, há a filosofia, que me explica o que nenhuma outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá calma, segurança, confiança; livra-me do tormento da incerteza.”
QE, Preâmbulo: No terceiro capítulo, publicamos um resumo de O Livro dos Espíritos, com a solução, pela doutrina espírita, de certo número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica, moral e filosófica, que diariamente são propostos, e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória. [...] Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas, quais as que melhor satisfazem à razão.”
Vejamos agora algumas passagens com referências a problemas filosóficos tradicionais, que têm solução adequada pelo Espiritismo. Indicamos sumariamente entre colchetes o problema em questão.
LE, Introdução, item 17 [a continuidade evolutiva na criação]: “A razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega.”
LE, item 222 [a desigualdade das aptidões face à justiça divina]: “Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?”
LM, par. 35, n. 2 [o futuro do homem]: “O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa, como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua filosofia e todas as suas conseqüências morais. É a revelação do destino do homem, a iniciação no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios da vida de além-túmulo.”
ESE, cap. 5, item 6 [a dor face à justiça divina]: “Que dizer, enfim, dessas crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua sorte irrevogavelmente determinada após a permanência de alguns instantes na Terra.”
CI, parte 1, cap. 1, item 13 [a questão do materialismo e do panteísmo]: Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença. O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.”
G, cap. 4, item 11 [a origem das faculdades espirituais do homem]: “Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de idéias, que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.”
G, cap. 4, item 12 [origem e destino do homem]: “Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada. Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência a seguirem a religião, que não discute.
OP, pp. 86-7 [o problema mente-corpo]: Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina. [...] Tínhamos, como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações com a filosofia e a psicologia.
QE, pp. 169-70, 189 [a imortalidade da alma] As manifestações não são, pois, destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está nas conseqüências morais que delas dimanam; não tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque era largo caminho novo aberto à Filosofia. [...] Nas lições de filosofia clássica, os professores ensinam a existência da alma e seus atributos, segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais. [...] Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto de ciência, procura com empenho e colhe com alegria tudo o que possa demonstrar a veracidade dessa hipótese; como, pois, um professor de filosofia, cujo dever é provar a seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os meios de lhes fornecer uma patente demonstração?
Esses trechos ilustram bem a afirmação de Kardec em O que é o Espiritismo (diálogo com o cético, p. 65) de que “O Espiritismo prende-se a todos os ramos da Filosofia [...]”. E note-se que tal afirmação é confirmada não só por passagens como as citadas, em que o termo ‘filosofia’ aparece explicitamente (e há ainda muitas outras em que isso ocorre), mas também pelos estudos efetivamente desenvolvidos por Kardec acerca de numerosos outros tópicos filosóficos.
4. O que é ciência? [4]
Como já ressaltamos, aquilo que hoje chamamos ciência derivou da filosofia, tal qual entendida nos primeiros tempos de nossa cultura ocidental. É importante, pois, identificar os traços que servem para distinguir o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento. Essa é uma das questões de que se ocupa um dos ramos especiais da filosofia mencionados anteriormente, a filosofia da ciência.
Notadamente na segunda metade do século XX, progressos significativos foram realizados nessa área. Reconhece-se hoje entre os especialistas que uma certa concepção de ciência cujas origens remontam à época do nascimento da ciência moderna, no século XVII, e que é comum até hoje entre o público leigo, padece de sérias inadequações. Ela não resiste nem a variados argumentos filosóficos levantados mais recentemente, nem ao confronto com a descrição da gênese, evolução e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja, da física, da química e da biologia. A versão mais bem articulada dessa concepção é a doutrina filosófica conhecida como positivismo lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930.
Grosso modo, essa visão comum de ciência pressupõe que uma ciência inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica); nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos supostamente seguros e neutros para obter as teorias científicas, que seriam descrições objetivas da realidade investigada.
O exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram que essa caracterização da ciência não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis de serem levados a cabo. Observação e teoria, experimento e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico de suporte recíproco. A acumulação prévia de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas; a imaginação criadora do homem desempenha papel essencial na gênese das teorias científicas.
A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das pesquisas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico principal, formado por leis fundamentais, introduzidas a título de hipóteses. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura teórica mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento. De um lado, há a regra “negativa”, que estipula que nesse desenvolvimento os princípios do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidos inalterados. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas” sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas. Essa é uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o filósofo da ciência contemporâneo Imre Lakatos chamou de programa científico de pesquisa. [5]
A exigência fundamental de um programa científico de pesquisa é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja dê conta dos fatos. Outras características importantes de qualquer boa teoria científica são: a consistência: a teoria não pode envolver contradições; a coerência: os princípios da teoria devem apoiar-se mutuamente; a abrangência: a teoria deve explicar, ao menos em linhas gerais, todos os principais fenômenos de seu domínio; deve ainda exibir unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há, por fim, o vínculo externo de não conflitar com as demais teorias científicas bem confirmadas que tratem de domínios de fenômenos complementares.
Tendo fornecido essa noção geral, bastante simplificada e incompleta, da concepção contemporânea de ciência, passemos à questão da ciência espírita.
5. A ciência espírita
A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos requisitos de uma ciência genuína, segundo as caracterizações da filosofia da ciência contemporânea, como a esboçada na seção precedente. Em artigo anterior, “A excelência metodológica do Espiritismo”, procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec antecipou-se às conquistas recentes da filosofia da ciência, e compreendeu muito bem a questão. Sua visão de ciência, exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde efetivamente à visão que os filósofos da ciência têm hoje. Isso teve a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação métodos e critérios corretos, o que lhe possibilitou a implantação de uma verdadeira ciência do espírito.
O corpo teórico fundamental do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos. O exame dessa obra revela a adequação da teoria com os fatos, sua consistência e seu alto grau de coesão e simplicidade, bem como a amplitude de seu escopo. Ademais, ali estão implicitamente presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas. Muitos desses desenvolvimentos foram, como se sabe, implementados pelo próprio Kardec, e se acham expostos nas demais obras que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência, o progresso experimental e teórico do Espiritismo prossegue até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.
Em contraste com os fundamentos científicos sólidos lançados por Kardec no estudo do elemento espiritual do homem, as linhas de pesquisa que surgiram mais tarde, com a pretensão competir com o Espiritismo nessa área, não alcançaram o mesmo sucesso. Deve-se notar, a tal respeito, que elas tiveram início justamente na época em que o positivismo lógico fornecia os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como os filósofos perceberam depois, as linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço de nosso conhecimento no domínio do espírito.
Lamentavelmente, a adoção de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores dessas linhas de investigação a não somente empenharem de modo infrutífero os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima ciência do espírito, o Espiritismo. Uma análise mais detalhada desse ponto pode ser encontrada na seção 4 de “A excelência metodológica do Espiritismo”, e não será reproduzida aqui.
6. A ciência espírita e as ciências acadêmicas
Contrariamente ao que alguns críticos mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da física, quer da química ou da biologia. É de crucial importância notar que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde com tais ciências, do mesmo modo como elas não se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.
Kardec compreendeu perfeitamente bem essa distinção, e chamou a atenção para ela em diversos de seus textos, como por exemplo no item VII da Introdução do Livro dos Espíritos. Ali argumentou com segurança que “o Espiritismo não é da alçada da ciência”, ou seja, das ciências acadêmicas. Por outro lado, no parágrafo 16 do primeiro capítulo de A Gênese, enfatizou a referida complementaridade do Espiritismo e dessas ciências, afirmando que “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.[6]
A percepção desses pontos evita uma série de julgamentos e posturas equivocados, que têm ameaçado o movimento espírita atual. Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste justamente naquelas linhas de investigação iniciadas depois de Kardec, e cuja fragilidade científica é evidente, à luz de uma análise filosófica cuidadosa. Outros pensam que a ciência espírita consiste de investigações do âmbito das ciências acadêmicas, especialmente as que envolvam experimentos conduzidos com o auxílio de aparelhagens complexas, de uso nos laboratórios de física, e dentro de referenciais teórico-conceituais emprestados dessa ciência. Assume-se que é o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás quase sempre não compreendida por quem a usa dentro de tais contextos) que confere cientificidade às investigações.
Dada a gravidade dos enganos envolvidos em semelhantes posições, vale a pena nos determos um pouco mais sobre elas. Deve-se, além dos esclarecimentos gerais já indicados, notar que o estabelecimento dos princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física. O mais fundamental de tais princípios é o da existência do espírito, ou seja, da existência de algo no homem que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação cabal desse princípio se dá mediante os fenômenos a que denominou “de efeitos intelectuais”, quais sejam a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita com isenção sobre fenômenos dessa ordem não terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito de modo inequívoco.
Nessa avaliação, é importante notar a diferença que existe entre esse princípio básico do Espiritismo e alguns dos princípios das teorias físicas e químicas contemporâneas, por exemplo. Nestes últimos casos, o “grau teórico” (se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros termos, os princípios estão muito mais distantes do nível fenomenológico, ou seja, da observação empírica direta. O caminho que vai da observação até o princípio teórico é bastante indireto, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios podem ser afirmados fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis de explicações dos mesmo fenômenos através de princípios teóricos diferentes. E, de fato, a história da física e da química tem ilustrado a instabilidade de suas teorias que avançam além do nível da percepção direta.
No caso do referido princípio espírita, bem como de vários outros dos princípios básicos do Espiritismo, a situação é bastante diversa. Trata-se de princípios pertencentes à classe de princípios a que os filósofos denominam “fenomenológicos”, que estão na base do edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza. Proposições dessa classe são, por exemplo, as de que o fogo queima e a cicuta envenena.
Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais – a saber, que são causados por uma inteligência humana desencarnada – não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá à cabeça a idéia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões e expressam pensamentos peculiares e íntimos, característicos daquele amigo. Exatamente o mesmo se dá com numerosos e variados casos de psicografia ou outras manifestações inteligentes. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida acerca da sobrevivência do ser.
É importante observar, por fim, que além dos fenômenos especiais que formam a classe dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em uma multidão de fenômenos ordinários, em virtude de oferecer uma base sólida para sua compreensão. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc.
Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo constitui omissão séria da parte de seus críticos. Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos mediúnicos e anímicos específicos que motivaram o seu surgimento. “O estudo do Espiritismo é imenso”, disse Kardec em outra passagem; “interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de nós” (O Livro dos Espíritos, Introdução, item XIII).
7. O aspecto religioso do Espiritismo [7]
Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões. Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias. Se no estabelecimento da primeira dessas teses é necessário identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.
A palavra religião evoca, por sua origem, à idéia da “re-ligação” do homem ao Criador. Como se sabe, ao longo da história inúmeras propostas se apresentaram de como essa “re-ligação” deve ser entendida e efetuada, resultando daí as diversas “religiões”.
Afora divergências sobre a própria noção de Deus e da natureza do ser humano, as religiões se diferenciam quanto aos requisitos propostos para que a criatura se religue a Deus. Quase sempre, eles incluem a adequação da conduta a certas regras morais. Tipicamente, também incluem a satisfação de providências formais e externas de vária ordem: participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns, etc.
Ora, já se pode perceber aqui algumas distinções fundamentais entre o Espiritismo e as religiões ordinárias. Como elas, o Espiritismo também se preocupa com o destino do homem, na Terra e no além-túmulo, procurando instruí-lo quanto ao que deve fazer para que alcance estados de felicidade cada vez maior. No entanto, o Espiritismo propõe que esse objetivo pode ser alcançado exclusivamente pela adaptação da conduta a determinados preceitos morais. Qualquer medida de ordem exterior é mostrada ser não somente ineficaz, mas também, em muitos casos, nociva, por desviar a atenção do ponto principal e induzir ao sectarismo.
Depois, uma diferença crucial surge no modo pelo qual as regras éticas são justificadas. As religiões ordinárias procuram justificar as normas morais que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição. Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus princípios éticos – sintetizados no preceito cristão do amor ao próximo – no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam.”
Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que, com o conhecimento científico espírita, a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo dos efeitos naturais das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.
Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres – e portanto, efetivamente, com o plano divino –, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, explicado acima.
A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi estudado em profundidade no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868.[8] Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:
[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.
Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
8. Conclusões
Inegavelmente, o Espiritismo é um empreendimento intelectual de ampla envergadura. Em diversas ocasiões Allan Kardec ressaltou o seu caráter abrangente, bem como a importância de considerá-lo em seu conjunto, quando se trata de avaliá-lo e de investigar suas implicações.
Como vimos, na primeira linha da segunda edição do Livro dos Espíritos Kardec caracterizou-o sucintamente como “filosofia espiritualista”. Espiritualista, porque estando centrado na constatação de que o homem é essencialmente, enquanto ser pensante, espírito, insere-se no âmbito das doutrinas que se contrapõem ao materialismo. Filosofia, porque investiga esse ser espiritual segundo uma abordagem racional, sistemática e abrangente, típica da tradição de pesquisa inaugurada pelos filósofos gregos, e que permeia toda a cultura ocidental até hoje. Nesse sentido original, a filosofia abarcava todos os ramos do saber puro. Mesmo aquilo que, a partir de uma certa época da história do pensamento, passou a ser chamado de ciência caía sob o escopo da filosofia.
Assim, a caracterização kardequiana em análise não deve ser tomada como excluindo a dimensão científica do Espiritismo, muito pelo contrário. Conforme deixou claro no desdobramento de suas pesquisas, Kardec compreendeu que tal dimensão não somente existia, mas que constituía mesmo a base sobre a qual a filosofia espírita repousa. Note-se, por exemplo, que no preâmbulo de O que é o Espiritismo Kardec o define como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. Quando bem compreendida, essa definição não conflita com a que está na página de rosto do Livro dos Espíritos. Apenas salienta que os fundamentos da filosofia espírita são científicos, e não puramente especulativos, ou derivados de alguma tradição mística, religiosa, ou qualquer outra. Foi a análise científica de certos fenômenos que deu origem ao Espiritismo, e estabeleceu desde então o núcleo teórico sobre o seu objeto de estudo, ou seja, o espírito.
No entanto, como essa análise conduz, por sua própria natureza, a tópicos extremamente abrangentes e fundamentais, no que diz respeito ao conhecimento do espírito, ela avança por domínios tipicamente considerados filosóficos, mesmo segundo a concepção contemporânea, mais restrita, de filosofia. O caso quiçá mais importante dessa extensão é o da moral (ou ética). Kardec explorou com grande lucidez as implicações do conhecimento científico espírita para as questões-chave da moral, dentre as quais a da fundamentação das regras morais. Fez notar que o conhecimento científico acerca do homem propiciado pelo Espiritismo permite o estabelecimento de um corpo de princípios morais objetivos, e que ele coincide com aqueles propostos pelo Cristo. Salientou ainda que tais princípios sintetizam o que há de essencial na noção de religião. Nesse sentido, e apenas nele, o Espiritismo pode ser dito uma religião, adverte Kardec no famoso artigo da Revue Spirite.
Dessa forma, os chamados “três aspectos” (ou “partes”) do Espiritismo encontram-se inextricavelmente ligados. Talvez mesmo devêssemos evitar a utilização dessa expressão, porque pode induzir à idéia errônea de que se trata de três elementos separados ou separáveis, que agrupamos apenas por conveniência. É significativo, a esse respeito, que o próprio Kardec tenha evitado caracterizar o Espiritismo em tais termos. Quando tentou sintetizar a natureza do Espiritismo, recorreu ora à noção de filosofia, ora à de ciência, dependendo do contexto. Mas em ambos os casos indicou que não se tratava de uma delimitação muito estreita da noção.
Se pensarmos no Espiritismo em termos de filosofia, será uma filosofia apoiada em bases científicas, e que tem como um dos objetivos centrais o estudo das questões morais. Se pensarmos em termos de ciência, não será uma pesquisa seca, que simplesmente constate e sistematize fatos, mas de uma investigação de longo alcance sobre um objeto de fundamental importância, o elemento espiritual. Essa ciência complementa, pois, as ciências acadêmicas, cujo objeto de estudo é o elemento material. E, pela própria natureza de seu objeto de estudo, a ciência espírita necessariamente diz respeito a tópicos genuinamente filosóficos, dentre os quais ressalta, por sua importância prática, aqueles referentes à moral.
Referências
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Chibeni, S. S. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
–––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
–––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.
–––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.
–––. “As acepções da palavra ‘Espiritismo’ e a preservação doutrinária”. Reformador, julho de 1999, pp. 212-214. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – I.)
–––. “Revisão da terminologia espírita?”. Reformador, agosto de 1999, pp. 250-252. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – II.)
–––. “A religião espírita”. Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – III.)
–––. “A ‘ciência oficial’”. Reformador, outubro de 1999, pp. 312-313. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – IV.)
–––. “As relações da ciência espírita com as ciências acadêmicas”. Reformador, novembro de 1999, pp. 344-346. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – V.)
–––. “Algumas abordagens recentes dos fenômenos espíritas”. Reformador, dezembro de 1999, pp. 380-383. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VI.)
–––. “A pesquisa científica espírita” Reformador, janeiro de 2000, pp. 24-25. (Questões sobre a natureza do Espiritismo – VII.)
Kardec, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.
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–––. O que é o Espiritismo. (s. trad.) 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
–––. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972.
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–––. Le Ciel et l’Enfer. Farciennes, Editions de l’Union Spirite, 1951.
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–––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d.
–––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.
–––. Oeuvres Posthumes. (Ed. André Dumas.) Paris, Dervy-Livres, 1978. Também na edição original de Leymarie, em texto eletrônico, Centre d'Études Spirites Léon Denis: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/
–––. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro, 18a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
Lakatos, I. “Falsification and the methodology of scientific research programmes”. In: Lakatos I, e Musgrave, A. (eds.) Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. Pp. 91-195.
[1] Texto apresentado no XII Congresso Estadual de Espiritismo (USE). Campinas, SP, 17 a 20/4/2003.
[2] Neste trabalho usaremos as seguintes abreviações: LE - O Livro dos Espíritos; QE – O que é o Espiritismo; LM – O Livro dos Médiuns; ESE – O Evangelho Segundo o Espiritismo; CI – O Céu e o Inferno; G – A Gênese; OP – Obras Póstumas (as referências de páginas deste livro são feitas pela tradução da FEB); VE – Viagem Espírita em 1862 (páginas pela edição francesa corrente).
[3] Outros exemplos importantes do uso da expressão ‘filosofia espírita’ na acepção ampla estão em: LM, parágrafos 14 (n. 7) e 32, capítulo 31 (item 18); OP, pp. 221, 247 e 253; QE, Preâmbulo; VE, pp. 6, 8 e 20.
[4] Esta seção e a seguinte aproveitam partes de nossos artigos “Espiritismo e ciência” e “A excelência metodológica do Espiritismo”, que deverão ser consultados para um tratamento mais detalhado do assunto. Ver também os artigos sobre ciência espírita na série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”. As referências são dadas no final deste trabalho.
[5] Ver Lakatos 1970. Para uma exposição acessível dessa e de outras abordagens da questão da natureza da ciência, consulte-se Chalmers 1982. Para uma análise da ciência espírita à luz de outra teoria filosófica contemporânea acerca da ciência, elaborada por Thomas Kuhn mais ou menos no mesmo período, ver nosso artigo “O paradigma espírita”.
[6] Note-se que nessas citações o termo ‘ciência’ é usado numa acepção mais restrita do que a anteriormente elucidada. Para um estudo mais completo da análise kardequiana das relações entre o Espiritismo e as ciência ordinárias, ver a seção 3 de “A excelência metodológica do Espiritismo” e as partes IV e V da série “Questões sobre a natureza do Espiritismo”.
[7] Esta seção aproveita idéias e trechos de nossos artigos “Os fundamentos da ética espírita”, “A excelência metodológica do Espiritismo”, seção 5, e “A religião espírita” (o terceiro artigo da série “Questões acerca da natureza do Espiritismo”), que deverão ser consultados para um maior desenvolvimento do assunto.
[8] Dezembro, pp. 353-62. Note-se que se trata de uma dos últimos números da Revue compostos por Kardec. O texto expressa, pois, o seu pensamento mais refletido sobre o assunto.
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