Daí por diante a Ciência desenvolveu-se, através de penosos episódios históricos como os de Galileu e Giordano Bruno, pois qualquer descoberta que contrariasse a Bíblia era logo motivo de perseguições e condenações por heresia. Para se dar o passo lógico da dedução para a indução foram necessários quatro séculos. Basta lembrarmos o episódio de Descartes, que em seu Tratado do Mundo teve de usar um expediente curioso. Para dizer que a Terra girava em torno do Sol, afirmou que a Terra era fixa no espaço, envolta na sua atmosfera, mas esta girava em torno do Sol. Apesar disso, Descartes acabou fugindo para a Holanda, país protestante, a fim de livrar-se das condenações da Igreja. Ele usava em seu emblema a palavra caute, significando a cautela que devia ter na exposição de suas idéias. Nesse ambiente opressivo a Ciência era uma erva daninha que só crescia às ocultas. No Século XVIII, chamado o Século de Ouro das Ciências, a opressão clerical se afrouxara na medida em que as invenções, mais do que as descobertas, lhes davam prestígio. No Século XIX a situação mudara bastante, mas só nos meados desse século o clima se tornara propício ao emprego atrevido do uso da indução científica, que consiste na pesquisa de vários fenômenos para deles obter-se a lei geral que os rege.
Antes disso seria impossível a pesquisa espírita, que além de condenada em si mesma como profanação da morte, seria também condenada por contrariar a sabedoria infusa dos teólogos, procedente de Deus através da Bíblia e do milagre das intuições reveladoras. Apesar da liberdade já conquistada, a Inquisição Espanhola, não podendo condenar Kardec à fogueira, pois ele estava na França, condenou a sua obra e a queimou com todos os rituais da Inquisição em Barcelona. Kardec comentou o fato na Revista Espírita, num artigo intitulado A Cauda da Inquisição (1), aproveitando o fato para rasgar mais amplamente a pesada cortina da censura eclesiástica no mundo.
A França marchava na vanguarda da libertação, enquanto a cauda da opressão ainda se arrastava, eriçada de ameaças e eivada de crimes, em terras de Portugal e Espanha. Só na França seria possível, naquela fase de transição histórica e cultural, o desenvolvimento do Espiritismo. Não obstante, ali mesmo se ergueram as ondas da reação, sopradas pelos vendavais do fanatismo religioso, dos preconceitos culturais e do exclusivismo cientifico. Foi no estudo sereno dessa reação, em meio ao furor dos elementos desencadeados, que Kardec deu início à Epistemologia Espírita. Sozinho a principio, eram ainda poucos os seus companheiros. Repetia-se no antigo e carismático solo das Galias o mesmo quadro palestino de Jesus com seus poucos discípulos a enfrentar os poderes do mundo. O panorama histórico, porém, se modificara e Kardec podia usar com mais eficácia as armas da razão. O Renascimento prepara a França para aquele momento glorioso.
Kardec examina a posição epistemológica do Espiritismo na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita que abre O Livro dos Espíritos, obra fundamental da Doutrina. O Espiritismo é uma Ciência que se defronta com as outras ciências em pé de igualdade e não pode ser julgada pelos cientistas que não a conhecem. Os sábios são dignos de admiração e respeito, quando se pronunciam sobre o que sabem. Mas quando opinam sobre o que não sabem igualam-se ao vulgo, dando simples opiniões desprovidas de valor. O que vale na Ciência são os fatos e não as opiniões. Só é valido no campo científico o veredicto das provas. A rejeição dos fatos a priori não tem valor cientifico, por mais reputado que o seja o cientista que emitiu um julgamento. E acrescenta: "Quando a Ciência sai da observação material dos fatos para apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas. Cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e o sustenta encarniçadamente. Os fatos são o verdadeiro critério dos nossos julgamentos sem réplica. Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem prudente."
A posição de Kardec era assim de uma clareza e positividade absoluta. O Espiritismo nascia como Ciência, dentro dos quadros da evolução científica, e ao mesmo tempo assumia uma posição epistemológica realista, criticando os desvios individualistas à realidade objetiva. Aos que o criticaram alegando que o objeto de sua doutrina não era objetivo, Kardec lembrava que o conceito espírita de Espírito não era vago, indefinido, mas rigorosamente objetivo. "'O Espírito é um ser concreto e circunscrito — afirmava — um ser real, definido, que em certos casos pode ser apreendido pelos nossos sentidos da vista, da audição e do tacto." A natureza objetiva do Espírito não podia ser confundida com a dos objetos lógicos, matemáticos ou mitológicos e imaginários, pois as suas manifestações permitiam a verificação científica de sua realidade objetiva e de sua capacidade de produzir efeitos materiais das mínimas às máximas proporções. Por isso o Espiritismo exigia atitude científica no seu estudo, pesquisas objetivas na comprovação das leis naturais que regem as suas relações com o mundo sensível e com os homens encarnados.
A maioria dos cientistas criticava o fato de o Espiritismo haver nascido da observação da chamada dança das mesas. Kardec perguntava se a movimentação espontânea de objetos materiais, rigorosamente constatada, era mais ridícula que a dança das rãs que dera a Galvani a possibilidade de descobrir a eletricidade. Negar esses fatos sem observá-los e pesquisá-los era anticientífico, revelava a persistência de preconceitos na Ciência e exigia, por isso mesmo, a pesquisa séria e metódica dos cientistas sérios. A Ciência da época se fechara sobre as suas conquistas primárias e com elas se julgava na posse do conhecimento total. Caíra num mecanicismo simplório e se alienava num solipsismo arrogante. Quando a Academia reconheceu a existência do Hipnotismo, Kardec lembrou, num artigo crítico e irônico da Revista Espírita, que o Sr. Magnetismo tentara numerosas vezes entrar na Academia pelas portas da frente, mas sempre rejeitado, até que resolveu trocar de nome e entrar pelas portas dos fundos, sendo bem recebido e adquirindo a sua desejada cidadania cientifica. A Ciência dava mais importância às aparências formais do que à substância. Kardec assinalava que o Espiritismo não era uma questão de forma, mas de fundo.
Sua crítica epistemológica desenvolveu-se implacável através dos anos sucessivos de pesquisa na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que ele estruturara e dirigia como instituição científica de pesquisas. Quando os cientistas voltavam à carga contra o Espiritismo, Kardec declarava francamente a impotência da Ciência para opinar sobre questões que os cientistas simplesmente desconheciam. Respeitava os cientistas sérios e prudentes, mas não poupava os levianos e atrevidos que se julgavam, como ele dizia, monopolizadores do bom-senso e da verdade.
Charles Richet, Prêmio Nobel de Fisiologia, reconheceu o seu valor e a sua capacidade de pesquisador, embora não aceitasse a Doutrina Espírita, que considerava precipitada. William Crookes aceitou a incumbência da Sociedade Dialética de Londres, de demolir o Espiritismo, e após três anos de pesquisas, com resultados assombrosos, proclamou a veracidade inegável dos fenômenos espíritas. A luta solitária de Kardec deu resultados inesperados: Os trabalhos de Friedrich Zöllner e do Barão Von Schrenk- Notzing na Alemanha, de Ernesto Bozzano e Chiaia na Itália, que dobraram a resistência férrea de Césare Lombroso, com várias materializações incontestáveis da mãe do grande antropólogo, o aparecimento da Metapsíquica, da Ciência Psíquica Inglesa, da antiga Parapsicologia Alemã, as pesquisas que levaram Friederic Myers a publicar seu tratado A Personalidade Humana e sua Sobrevivência, o desenvolvimento da Psicologia Experimental e por fim o aparecimento da Parapsicologia Moderna de Rhine e McDougal provaram a legitimidade da Ciência Espírita e da critica epistemológica, de Kardec. Mas como o Espiritismo não mudou de nome, conservando-se fiel à sua origem e a si mesmo, intransigente na sua clara e precisa posição epistemológica, não foi admitido na Academia nem recebeu a cidadania cientifica a que tinha e tem o mais absoluto e inegável direito. Kardec, que faleceu em 1869, não teve a oportunidade de ver, em vida, os lances mais importantes da sua vitória sobre o carrancismo e o radicalismo do mundo científico oficial.
Hoje, arrastada pela correnteza da evolução, a Ciência teve de mergulhar no oceano invisível dos átomos e suas partículas, da percepção extra-sensorial e do poder insuspeitado do pensamento, precipitando-se na voragem das pesquisas sobre a reencarnação, ao absurdo das múltiplas dimensões da matéria, dos mundos interpenetrados, da antimatéria, da pluralidade dos mundos habitados, da assustadora problemática filosófica da concepção existencial do homem, da realidade ontológica considerada como subjetividade pura e assim por diante, negando-se a si mesma para poder sobreviver como sobrevivem os homens e todas as coisas e seres, segundo Kardec afirmava.
Kardec podia opinar com autoridade sobre a Ciência, porque era professor de Ciências. Mas por isso mesmo negava à Ciência o direito de opinar sobre o Espiritismo, que ela não conhecia e os cientistas o encaravam através de preconceitos, numa atitude anticientífica. Sua rejeição ao juízo científico da época, nesse sentido, é um veredicto: "A Ciência propriamente dita, como Ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a questão do Espiritismo, e seu pronunciamento a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria". Essa declaração de incompetência é válida ainda hoje, quando vemos a Ciência confirmar o Espiritismo sem querer e sem o saber. A ignorância dos sábios a respeito, como dizia Kardec, não se modificou. A posição realista de Kardec prova a sua segurança absoluta no tocante à legitimidade das suas pesquisas. O Espiritismo se sustentava em suas bases experimentais e lógicas, sem necessitar de aprovações estranhas, mesmo porque essas aprovações não provinham de quem tivesse o conhecimento suficiente para opinar a respeito.
Por outro lado, a posição epistemológica do Espiritismo não podia ser criticada (2). Seu objeto era inegável: a realidade psíquica do homem e os fenômenos que a demonstravam através dos tempos. Seu método de investigação era perfeito e bem integrado nas exigências científicas, adequado ao objeto; a orientação das pesquisas era feita por um mestre capacitado e reconhecido como tal; os resultados obtidos eram interpretados com critério rigorosamente científico; a divulgação das experiências, observações e pesquisas era feita através de órgão específico e especializado, com todas as informações e minúcias das ocorrências; nenhuma experiência conseguira cientificamente negar a realidade dos fenômenos ou contrariar a validade das interpretações. Se a Ciência não reconhecia a validade científica da pesquisa espírita, não era por desmenti-la ou pô-la em cheque com outras experiências, mas por simples atitude preconceituosa, que não podia pesar em considerações realmente científicas. Restava ainda o fato importante da comprovação dos fenômenos por cientistas eminentes da época e conhecidamente contrários ao Espiritismo.
As alegações de que o Espiritismo se apresentava à Ciência como um produto híbrido, em que problemas científicos, filosóficos e religiosos se misturavam, tornando-o indefinido, não passava de manobra, pois a seqüência natural dessas áreas, no plano do desenvolvimento cultural, corresponde exatamente ao esquema espírita. A magia primitiva corresponde ao fazer experimental, portanto à Ciência; a Filosofia era a concepção do mundo dada pela experiência em que se conjugam teoria e prática; a moral decorria do comportamento determinado pela mundividência e a religião surgia como imperativo das conquistas do saber adquirido. Toda a História do Mundo Antigo testemunhava isso. As próprias culturas teológicas fizeram esses caminhos. O Positivismo de Augusto Comte, que se apresentava como Filosofia Científica, seguiria o mesmo esquema da Teoria Geral do Conhecimento, acabando por desembocar na Religião da Humanidade. Epistemologicamente nada havia a censurar ou condenar no contexto do Espiritismo. Comentando a fatuidade humana, Kardec lembra que os homens mais sábios deixam-se embaraçar por coisas insignificantes. O que impediu a expansão do Espiritismo na Europa do século passado, de maneira a poder renovar a velha criminosa concepção do mundo ainda hoje dominante, foi simplesmente o seu aspecto religioso. Como no Cristianismo Primitivo, o Espiritismo foi acolhido com ansiedade relas camadas pobres da população, que o converteram por toda parte numa nova seita cristã. Nesse aspecto devocional as camadas superiores viam apenas o religiosismo popularesco, dotado da mesma fé ingênua de toda a religiosidade massiva. Contra essa avalancha de crentes humildes, predispostos ao beatismo, surgiram pequenos grupos de pessoas cultas, que lutaram muitas vezes com entusiasmo, mas acabaram cedendo à pressão dos preconceitos. Esses grupos se fecharam em sociedades de elite, desligados do povo, ou simplesmente desapareceram por falta de elementos dispostos ao trabalho árduo e à luta constante em defesa da doutrina. Padres e médicos aproveitaram-se disso para tentar asfixiar, acompanhados por pastores protestantes de produtivos rebanhos, o Renascimento Cristão. A palavra Cristianismo gerara um estereótipo enriquecido pelo duplo prestigio das classes dominantes e das igrejas tradicionais. As corporações científicas e as associações profissionais de médicos representavam a reação cientifica e as igrejas cristãs a cólera divina, disparando os raios do Olimpo contra os renegados. Apesar desses fogos cruzados sobre as suas cabeças descobertas, os espíritas conseguiram compreender os princípios fundamentais da doutrina, a sua luta pacífica no desespero das guerras impiedosas.
Mas a atualidade nos oferece perspectivas inteiramente diversas das que predominaram até agora. Graças à sua própria ignorância do assunto, os cientistas entraram a fundo no esquema de pesquisas da Ciência Espírita e comprovaram a sua veracidade. Chegamos assim a um momento crucial. E se os homens não clamarem, como advertiu Jesus, as pedras clamarão. Na verdade já estão clamando, pois é precisamente do minério que se levanta sobre o mundo a alvorada da concepção atômica, dissipando as trevas da falsa cultura materialista, em que o espírito fora substituído pelo pó dos túmulos. O poder atômico é ao mesmo tempo ameaça e consolo. E está nas mãos dos homens para que eles decidam por si mesmos o que desejam ser. A opção do Espiritismo continua aberta para todos. Quem quiser semear bombas e destruição poderá fazê-lo, mas os que optarem pela semeadura da luz, da compreensão real do homem e do Universo, do verdadeiro sentido da vida e do destino superior da Humanidade, verão na concepção espírita a solução do Grande Enigma sobre o qual Léon Denis escreveu um dos seus livros mais profundos.
A critica de Kardec à Ciência do seu tempo continua válida em nossos dias. A Epistemologia Espírita assemelha-se, neste momento, às profecias apocalípticas da Antiga Israel. Não é apenas uma crítica do Conhecimento e dos processos da Ciência, mas uma crítica do Homem, pois é ele quem busca o Conhecimento e quem faz a Ciência. A estrutura cientifica nos dá a imagem do Homem, do seu fazer e de como ele a fez. Voltado para fora de si mesmo, estimulado pelo fascínio da Natureza, o homem esqueceu a sua própria natureza — a natureza humana — e coisificou-se. Esse homem-coisa perdeu-se no orgulho das suas conquistas materiais e rejeitou os anseios espirituais. Por isso desenvolveu a Técnica e atrofiou a Religião. A eclosão espírita do Século XIX foi desencadeada pelos Espíritos para despertar os homens da sua apatia espiritual, lembrando-lhe que a euforia material o levaria à sua própria destruição. Descartes já lembrara que é mais fácil conhecermos as coisas exteriores do que a nós mesmos. Frances Bacon advertira que só atingimos o poder científico obedecendo a Deus. Mas Deus e suas leis foram considerados indignos do laboratório e jogados na sacristia, entregues à quinquilharia devocional das medalhas, escapulários, imagens para a idolatria e ameaças demoníacas.
Kardec estruturou a Ciência do Espírito e instituiu a pesquisa mediúnica, porque a mediunidade é a janela aberta no paredão dos fenômenos materiais para mostrar uma nesga do Infinito aos homens imantados ao finito. Sua crítica à Ciência é um ato de transcendência: liga-se em conflito a concepção do homem e do mundo, para que ambos recobrem a sua unidade e possam livrar-se da hipnose atômica. Mas os próprios espíritas, em geral, ao tentarem compreendê-lo, retornam às fontes mágicas do beatismo religioso (3), esquecidos de que religião sem ciência é superstição e ciência sem religião é loucura. Deus é a Fonte da Sabedoria e os homens a procuram na matéria. Esse engano vaidoso e fatal levou-nos à beira da destruição do planeta. O Espiritismo é um esforço para devolver-nos à condição humana, salvando-nos do robô). A Terra está sendo destruída pela técnica da voracidade sem limites. O Espiritismo nos oferece a única via de escape: a unidade do espírito em contraposição à fragmentação da matéria. Só a visão monista do mundo que Kardec nos oferece pode salvar-nos do caos.
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