quarta-feira, 3 de abril de 2013

Kardec e humildade

Equipe IPEAK

Como antes de tudo buscamos a verdade e não pretendemos ser infalível, quando acontece nos enganarmos não hesitamos em reconhecer. Não conhecemos nada de mais tolo do que aferrar-se a uma opinião errada. Allan Kardec

“A humildade é a virtude que reprime em nós o orgulho; disposição moral que nos lembra nossa fragilidade sem nos envilecer [depreciar, rebaixar]; tendência de nosso coração e de nosso espírito para combater nossos sentimentos de vaidade.”

“A humildade, enquanto virtude, é, por assim dizer, a perfeição da modéstia. Esta última é uma marca de bom gosto e de bom senso, uma das graças da linguagem, da decência e da conduta. A humildade é menos exterior; em nosso coração e em nosso espírito é um ato de alta razão, que nos eleva tanto mais quanto mais nosso sentimento e nosso julgamento sobre nós mesmos forem mais comedidos.”[1]

Allan Kardec foi um homem humilde no verdadeiro sentido do termo.

Nós procuramos em suas obras algumas passagens que retratam bem essa virtude moral, esse “ato de alta razão”. Quem é  humilde tem como princípio: Posso estar errado”. E Kardec sempre se mostrou mais propenso à verdade do que à sua própria opinião.

Em o Livro dos Médiuns, publicado em janeiro de 1861, ao estudar as obsessões, no item 241, ele faz a seguinte consideração:
“Dava-se outrora o nome de possessão ao império exercido por maus Espíritos, quando a influência deles ia até à aberração das faculdades da vítima. A possessão seria, para nós, sinônimo da subjugação. Por dois motivos deixamos de adotar esse termo: primeiro, porque implica a crença de seres criados para o mal e perpetuamente votados ao mal, enquanto que não há senão seres mais ou menos imperfeitos, os quais todos podem melhorar-se; segundo, porque implica igualmente a ideia do apoderamento de um corpo por um Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, ao passo que o que há é apenas constrangimento. A palavra subjugação exprime perfeitamente a ideia. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar do termo, há somente obsidiados, subjugados e fascinados.”
Após novos estudos e observações Kardec muda sua opinião. E, de maneira clara ele a publica na Revista Espírita de dezembro de 1863, no artigo intitulado Um caso de possessão, nos seguintes termos:
“Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Mudamos de opinião sobre essa afirmativa absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante.”
Na Revista Espírita de outubro de 1864, ao estudar sobre “O sexto sentido e a visão espiritual - Ensaios teóricos sobre os espelhos mágicos”, Kardec diz o seguinte:
“O número de pessoas que espontaneamente gozam dessa faculdade é muito considerável, do que resulta que ela independe de um aparelho qualquer. O copo de que esse homem se serve é um acessório que só lhe é útil por hábito, pois constatamos que em várias circunstâncias ele descrevia as coisas sem o olhar. Pelo que nos concerne, notadamente falando de indivíduos, ele os indicava com o seu giz, por sinais característicos de suas qualidades e de sua posição. Era sobretudo acerca desses sinais que ele falava olhando para a sua mesa, sobre a qual ele parecia ver tão bem quanto no copo, que mal olhava.
No entanto, para ele, o copo é necessário e eis como isto pode ser explicado.
A imagem que ele observa se forma nos raios do fluido perispiritual que lhe transmitem a sensação. Concentrando sua atenção no fundo de seu copo, para aí dirige ele os raios fluídicos, e muito naturalmente a imagem aí se concentra, como se concentraria sobre um objeto qualquer: um copo d’água, uma garrafa, uma folha de papel, um mapa ou um ponto vago no espaço. É um meio de fixar o pensamento e de circunscrevê-lo, e estamos convencidos de que quem quer que exerça tal faculdade com auxílio de um objeto material, com um pouco de exercício e com a firme vontade de prescindir dele, veria igualmente bem.”
Um ano depois Kardec publica um artigo na Revista de outubro de 1865, sob o título: “Novos estudos sobre os espelhos mágicos ou psíquicos - O vidente da floresta de Zimmerwald”, do qual reproduzimos aqui apenas pequenos trechos.
  “Na Revista Espírita de outubro de 1864, fizemos minucioso relato das observações que acabávamos de fazer de um camponês do cantão de Berne, que possui a faculdade de ver num copo as coisas distantes. Novas visitas que lhe fizemos este ano nos permitiram completar as observações e retificar, em certos pontos, a teoria que havíamos dado dos objetos vulgarmente designados sob o nome de espelhos mágicos, mais exatamente chamados espelhos psíquicos. Como antes de tudo buscamos a verdade e não pretendemos ser infalível, quando acontece nos enganarmos, não hesitamos em reconhecer. Não conhecemos nada de mais tolo do que aferrar-se a uma opinião errada.”
(...) Tendo-nos convencido por uma observação atenta que essa faculdade não é senão a dupla vista, isto é, a visão espiritual ou psíquica, independente da visão orgânica, pois a experiência demonstra diariamente que essa faculdade existe sem o concurso de qualquer objeto, tínhamos concluído, de maneira muito absoluta, pela inutilidade desses objetos, pensando que apenas o hábito de empregá-los fazia com que se tornassem necessários, e que todo indivíduo que vê com o seu concurso, poderia ver perfeitamente bem sem eles, se o quisesse. Ora, aqui é que está o erro, como vamos demonstrar.”
Com a humildade que lhe é característica, Kardec recorre aos Espíritos guias da Sociedade de Paris, para instruir-se sobre essa questão:

Pergunta. - Teríeis a bondade de dizer-nos se o copo de que este homem se serve lhe é verdadeiramente útil; se não poderia igualmente ver em qualquer copo, num objeto qualquer, ou mesmo sem objeto, caso o quisesse; se a necessidade e a especialidade do copo não seria um efeito do hábito, que lhe faz crer não poder dispensá-lo; enfim, se a presença do copo é necessária, que ação esse objeto exerce sobre a sua lucidez?

Resposta. - Estando o seu olhar concentrado no fundo do copo, o reflexo brilhante a princípio age sobre os olhos, depois sobre o sistema nervoso, e provoca uma espécie de meio sonambulismo, ou, mais exatamente, sonambulismo desperto, no qual o Espírito, desprendido da matéria, adquire a clarividência, ou visão da alma, que chamais segunda vista.

Existe uma certa relação entre a forma do fundo do copo e a forma exterior ou disposição de seus olhos. Eis por que ele não encontra facilmente um copo que reúna as condições necessárias (vide artigo de outubro de 1864). Mesmo que aparentemente os copos sejam semelhantes, há no poder refletor e no modo de radiação, segundo a forma, a espessura e a qualidade, nuanças que não podeis apreciar, e que são adequadas ao seu organismo individual.

Para ele, pois, o copo é um meio de desenvolver e fixar sua lucidez. É-lhe realmente necessário, porque nele, não sendo permanente o estado lúcido, necessita ser provocado; um outro objeto não poderia substituí-lo, e esse mesmo copo, que sobre ele produz esse efeito, nada produziria sobre outra pessoa, mesmo que fosse vidente. Os meios de provocar essa lucidez variam conforme os indivíduos.

Obediência e resignação

“A doutrina de Jesus ensina, em todos os seus pontos, a obediência e a resignação, duas virtudes companheiras da doçura e muito ativas, se bem os homens erradamente as confundam com a negação do sentimento e da vontade. A obediência é o consentimento da razão; a resignação é o consentimento do coração, forças ativas ambas, porquanto carregam o fardo das provações que a revolta insensata deixa cair. O pusilânime não pode ser resignado, do mesmo modo que o orgulhoso e o egoísta não podem ser obedientes.” (Lázaro)[2]

A obediência e a resignação pedem humildade. Em seu discurso, na abertura do ano social, a 1º de abril de 1862, Allan Kardec deu mostras dessas duas virtudes cristãs em prol da Ciência Espírita. Após algumas considerações iniciais, ele diz:
“Vós vos lembrais, senhores, que a Sociedade teve as suas vicissitudes. Havia em seu seio elementos de dissolução, vindos da época em que se recrutava gente muito facilmente, e sua existência chegou, em certo momento, a estar comprometida. Naquele momento eu duvidei de sua utilidade real, não como simples reunião, mas como Sociedade constituída. Fatigado por essas perplexidades, eu estava resolvido a retirar-me. Esperava que, uma vez livre dos entraves semeados em meu caminho, trabalharia melhor na grande obra empreendida. Fui dissuadido de fazê-lo por numerosas comunicações espontâneas que me foram dadas de vários pontos. Entre outras há uma, cuja substância me parece útil vos dar a conhecer, porque os acontecimentos justificaram as previsões. Ela está assim concebida:
A Sociedade, formada por nós com o teu concurso, é necessária. Queremos que subsista e subsistirá, malgrado a má vontade de alguns, como tu o reconhecerás mais tarde. Quando existe um mal, não se cura sem crise. Assim é do pequeno ao grande; no indivíduo, como nas sociedades; nas sociedades como nos povos; nos povos como o será na Humanidade.
“Nossa Sociedade, dizemos, é necessária. Quando deixar de ser, sob a forma atual, transformar-se-á como todas as coisas. Quanto a ti, não podes, não deves retirar-te. Contudo, não pretendemos acorrentar o teu livre-arbítrio. Apenas dizemos que a tua retirada seria um erro que lamentarias um dia, porque entravaria os nossos desígnios.
“Desde então, dois anos se passaram e, como vedes, a Sociedade felizmente saiu daquela crise passageira, cujas peripécias todas me foram assinaladas, e das quais um dos resultados foi dar-nos uma lição de experiência que aproveitamos e que provocou medidas pelas quais nos felicitamos.”[3]
Em 1866 um outro evento vem requerer do Mestre mais uma prova de obediência e resignação. Desta vez as instruções lhe são dadas por seu médico espiritual Dr. Demeure, das quais reproduzimos aqui apenas alguns trechos.[4]
Enfraquecendo dia a dia a saúde do Sr. Allan Kardec em consequência dos excessivos trabalhos que ele não pode suportar, vejo-me na necessidade de lhe repetir novamente o que já lhe disse muitas vezes: Necessitais de repouso; as forças humanas têm limites que o vosso desejo de ver progredir o ensino muitas vezes vos leva a infringir; estais errado porque, assim agindo, não apressareis a marcha da doutrina, mas arruinais a vossa saúde e vos pondes na impossibilidade material de acabar a tarefa que viestes desempenhar aqui em baixo. Vossa doença atual não é senão o resultado de um gasto incessante de forças vitais que não deixa ao organismo o tempo de se refazer e de um aquecimento do sangue produzido pela absoluta falta de repouso. Nós vos sustentamos, sem dúvida, mas com a condição de não desfazerdes o que fazemos. De que serve correr? Não vos disseram muitas vezes que cada coisa viria a seu tempo e que os Espíritos prepostos ao movimento das ideias saberiam fazer surgir circunstâncias favoráveis quando chegasse o momento de agir?
......
Sei que vossa posição particular vos suscita uma porção de trabalhos secundários que absorvem a melhor parte do vosso tempo. As perguntas de toda sorte vos cansam, e considerais um dever respondê-las tanto quanto possível. Farei aqui o que sem dúvida não ousaríeis fazer vós mesmo. Dirigindo-me à generalidade dos espíritas, eu lhes pedirei, no interesse do próprio Espiritismo, que vos poupem toda sobrecarga de trabalho de natureza a absorver instantes que deveis consagrar quase que exclusivamente à conclusão da obra. Se vossa correspondência com isto sofre um pouco, o ensinamento lucrará. Às vezes é necessário sacrificar satisfações particulares ao interesse geral. É uma medida urgente que todos os adeptos sinceros saberão compreender e aprovar.
A imensa correspondência que recebeis é para vós uma fonte preciosa de documentos e de informações; ela vos esclarece quanto à marcha verdadeira e os progressos reais da doutrina; é um termômetro imparcial; vós aí colheis, por outro lado, satisfações morais que mais de uma vez sustentavam a vossa coragem, vendo a adesão que vossas ideias encontram em todos os pontos do globo. Sob esse ponto de vista, a superabundância é um bem e não um inconveniente, mas com a condição de secundar os vossos trabalhos, e não de entravá-los, criando-vos um excesso de ocupações.
Dr. DEMEURE

“Bom senhor Demeure, eu vos agradeço os sábios conselhos. Graças à resolução que tomei de obter ajuda, salvo nos casos excepcionais, a correspondência ordinária pouco sofre agora e não sofrerá mais no futuro. Mas o que fazer com esse atraso de mais de quinhentas cartas que, a despeito de minha boa vontade, não consigo pôr em dia?”

Resposta. - É preciso, como se diz em linguagem comercial, passá-las em bloco à conta de lucros e perdas. Anunciando esta medida na Revista, vossos correspondentes saberão o que fazer; compreenderão a necessidade e a encontrarão sobretudo justificada pelos conselhos que precedem. Repito que seria impossível que as coisas continuassem assim por mais tempo. Tudo sofreria com isso, inclusive a vossa saúde e a doutrina. Caso necessário, é preciso saber fazer sacrifícios. Tranquilo, de agora em diante, sobre esse ponto, podereis entregar-vos mais livremente aos vossos trabalhos obrigatórios. Eis o que vos aconselha aquele que será sempre vosso amigo devotado.

 DEMEURE

Obediente e resignado, na sequência dessas recomendações Kardec insere a seguinte nota:

“Atendendo a este sábio conselho, rogamos aos nossos correspondentes com os quais há muito estamos em atraso, recebam as nossas desculpas e o nosso pesar por não ter podido responder em detalhe, e como teríamos desejado, às suas bondosas cartas. Receberão aqui, coletivamente, a expressão de nossos sentimentos fraternos.”

“Nós nos limitaremos a dizer que a humildade é a modéstia da alma.” Voltaire

[1] Extraído do termo humilité, do Nouveau Dictionnaire Universel, tome troisième. Paris, 1867.

[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos - Instruções dos Espíritos - Obediência e resignação.

[3] Revista Espírita, junho de 1862 - Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - Discurso do Sr. Allan Kardec na abertura do ano social, a 1º de abril de 1862.

[4] Revista Espírita, maio de 1866 – Dissertações espíritas – Instruções aos Sr. Allan Kardec.

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