quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Doutrina Espírita e Religião Espírita

Por Maria Ribeiro

As discussões sobre o Espiritismo seguem em todas as páginas dedicadas para este fim, utilizando-se dos atuais recursos que a internet dispõe. Muito diferente dos tempos outros, nos quais as correspondências demoravam dias. As trocas de informações, por exemplo, entre Kardec e os diversos grupos que se formaram não eram tão rápidas . 

Há, entretanto, nesta rapidez uma séria desvantagem: ninguém tem tempo para refletir sobre o que acabou de ler, não há mais aquela degustação das palavras como nos tempos de outrora, em que, sem o compromisso de uma resposta tão imediata, os textos eram lidos e relidos, as ponderações feitas com calma e prudência. 

Acompanhando as páginas pode-se assistir a discussões que muitas vezes chegam ao extremo das indelicadezas, das ofensas pessoais. Opiniões diferentes, uma palavra mal compreendida tem dado ensejo a  discussões muito sérias.

Tudo porque entre os interlocutores não há somente a distância que os quilômetros contabilizam, irremissivelmente, mas também uma máquina fria, que substitui o hálito caloroso do outro, sua verdade do olhar, sua tonalidade de voz.

Aproveitando assim o momento caloroso das discussões, propomos mais uma reflexão sobre o Espiritismo, na certeza de que outras reflexões virão a cada novo avanço do pensamento. 

O Espiritismo (genericamente) é antes de mais nada uma ciência de observação, positiva. Como qualquer outra, embasado na Filosofia que é mãe de todas elas.

O seu objetivo busca priorizar, entretanto, a ética, a moral, valores intrínsecos do Homem, conduzindo-o a investigar sua intimidade e a descobrir-se como Ser perfectível.
Esta ciência dos Espíritos, elaborada que foi pela insígne figura do professor Rivail, vive e sobrevive devido a sua real natureza - Verdade. Não se pode afirmar que toda a Verdade está contida nas revelações feitas a Kardec, mas certamente deve-se afirmar que toda a Verdade que a Humanidade por ora consegue conhecer.

Seja analisada esta passagem Kardequiana:

"Seria fazer uma idéia bem falsa do Espiritismo acreditar que a sua força decorre da prática das manifestações materiais e que, portanto, entravando-se essas manifestações, pode-se minar-lhe as bases. Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso. Na Antiguidade, ele era objeto de estudos misteriosos, cuidadosamente ocultos ao vulgo. Hoje não tem segredos para ninguém; fala uma linguagem clara, sem ambigüidades; nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Ele quer ser compreendido por todos porque chegaram os tempos de se fazer que os homens conheçam a verdade...

O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém se pode dizer seu autor porque ele é tão antigo quanto a Criação; encontra-se por toda parte, em todas as Religiões e mais ainda na Religião Católica, com mais autoridade do que em todas as outras, porque nela se encontram os princípios de todas as manifestações: os Espíritos de todos os graus, suas relações ocultas ou patentes com os homens, os anjos guardiães, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, as visões, as manifestações de todo gênero, as aparições tangíveis. No tocante aos demônios, não são mais do que os Espíritos maus e, salvo a crença de que são eternamente destinados ao mal, enquanto a via do progresso não é interditada aos outros, entre eles não há qualquer outra diferença além do nome.

O que faz a moderna Ciência Espírita? Reúne em um todo o que estava disperso; explica em termos próprios o que só se conhecia em linguagem alegórica; poda tudo aquilo que a superstição e a ignorância haviam criado para deixar somente o que é real e positivo: eis o seu papel. Mas não lhe cabe o papel de fundadora. Ela revela o que existe, coordena mas não cria nada, porque as suas bases estão em todos os tempos e em todos os lugares. Quem, pois, ousaria considerar-se bastante forte para abafá-la sob os sarcasmos e mesmo sob a perseguição? Se a proscreverem num lugar, ela renascerá em outros, no mesmo terreno de que tenha sido banida, porque está na própria Natureza e não é dado ao homem aniquilar uma força da Natureza nem opor o seu veto aos decretos de Deus..." (Conclusão IV - OLE)

Kardec afirma que Espiritismo são os fenômenos mesmos, a realidade natural da vida, e Ciência Espírita, à qual ele se refere como 'moderna', como uma consequência, antes, como uma necessidade daquele, a fim de ser manifestado de maneira formal e oficial ao homem. O termo Doutrina Espírita parece referir-se aos postulados por ora tidos como suficientes para o esclarecimento e educação humanos, estando de acordo com as pesquisas e estudos realizados pela Ciência Espírita.

Do aval científico que o Espiritismo oferece surgiu a Religião Espírita, que se difere da Doutrina Espírita, precisamente por agregar em si crenças de outras correntes espiritualistas, às quais tenta-se adaptar ou revestir com ornamentos filosófico-científicos.

A Religião Espírita já nasceu divorciada do pensamento científico. Nela a lógica, bastas vezes, cede lugar às intermitências, como se fosse possível algo ser num instante e deixar de sê-lo noutro; de acordo com as conveniências do momento. São as incoerências suportadas pelos seus adeptos em favor da adoração de Espíritos e médiuns. Foi criada e é mantida pelos homens esquecidos de fazerem uso da sua grata faculdade de pensar.

Em Religião Espírita assistem-se a reproduções de eventos já vivenciados noutras paragens: Evangelização infantil segue as cartilhas do velho catecismo católico; o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita, a despeito da oportunidade de discussões e troca de ideias, as que prevalecem são as já sedimentadas no movimento espírita - falas de autores encarnados e desencarnados como máximas irremovíveis. As palestras seguem idêntica linha.

De um jeito ou outro, as pessoas que chegam numa Casa Espírita receberão dela a hóstia que as acalentará - uma mensagem "espírita" de auto-ajuda.

Para desmentir esta tese, seria necessário negar o conteúdo de obras que vieram a lume com o propósito obducto de fundar uma religião aproveitando-se do prestígio intelectual do Espiritismo.   

A figura central das religiões cristãs, Jesus, ele mesmo não fundou nenhuma religião. Nascido judeu, que no mundo moderno contam cerca de 14 milhões, o moço de Nazaré sequer mencionou que fossem criadas religiões em seu nome, do que infere-se que nenhuma tem o seu endosso. Ele apenas disse: 

"Onde estiverem reunidos dois ou três em meu nome, aí estarei."

Estabeleceram-se, principalmente com as viagens de Paulo de Tarso, inúmeras congregações pelo mundo oriental, que depois se espalharam ultrapassando-lhe as fronteiras. 

Há controvérsias com relação ao início do surgimento da Igreja Católica: uns apontam que foi fundada por Jesus, hipótese naturalmente refutada; outros dizem que surgiu no Pentecostes, também irrefletida, já que por muitos séculos Roma perseguiu os cristãos; outros ainda garantem que ocorreu por volta do século IV, mais precisamente no ano de 325, o que parece mais lógico. Somente após o Édito de Milão, acordo que garantia tolerância ao cristianismo, no pontificado do papa Melquíades e após o Primeiro Concílio de Nicéia, com Silvestre I, no qual  estava em pauta pela primeira vez a discussão sobre a natureza de Jesus, o que gerou inúmeras controvérsias, foi que a figura de Jesus ficou associada, oportunistamente, à Igreja Romana.

Confundir Jesus com a sua mensagem é atitude normal entre grande parte de adeptos, inclusive de adeptos espíritas. Fato compreensível para a Religião Espírita, mas não para os partidários do puro Espiritismo.

Para o Espiritismo não há nenhuma figura a quem se deva devotar toda a confiança. Todos merecem respeito, mas não há quem o mereça sem exames., compreendendo-se que infalíveis, só os Espíritos Superiores.

A religiosidade aparece como sentimento intrínseco e individual. Religiosidade tem a ver com crescimento espiritual, e não com religião.

Pois bem, a mensagem de Jesus é o parâmetro, sua simplicidade é que tem que ser admirada e se tornar meta para qualquer pessoa, suas orientações sobre amar o próximo, perdoar e orar pelos inimigos é que são o Mestre, e não ele mesmo; Jesus é o frasco de perfume, sua mensagem é a essência do perfume. E é a esta essência que deve ser o objetivo de todos. Esta essência (sua mensagem) exala por todo o mundo através de bocas não cristãs, desde que houve homens capazes de compreendê-la. O Cristo existiu para a Terra de dois mil anos para cá, antes dele a essência, a mensagem já convertia homens fracos e imperfeitos a se tornarem homens melhores.

Ele afirmou: "Chamaste-me mestre e senhor, e dizeis bem, pois eu o sou." Ora, naquele momento em que ele estava encarnado a sua figura física exercia forte impressão ou ainda, autoridade sobre os outros, autoridade, inclusive reconhecida pelos espíritos obsessores a quem ele 'expulsou'. Ele sabia que suas palavras permaneceriam, precisamente pelo apelo renovador que tinham.

Esta auto-intitulação só pode ser reprovada se forem constatados erros de tradução também nesta passagem. 

Associar a figura de Jesus a esta ou aquela religião é o mesmo que denegrir sua imagem, pois ele não veio ao mundo para isso. Ao contrário, ele veio dizer que títulos religiosos não compram o "reino dos céus", mas o coração puro conquista este reino. A imperfeição humana conduziu-O para os altares, mas ninguém O inquiriu se ele gostaria de ter os pés beijados, justo ele que lavou os pés dos seus discípulos.

É bom que ele seja respeitado, que não seja confundido com os homens mercenários e fanáticos, pois como homem foi coerente, soube respeitar as tradições da sua época sem ser omisso. Como Espírito continua inspirando outros capazes de espalhar sua essência por esta humanidade ingrata e orgulhosa, se achando já dona do Saber, quando apenas dá os primeiros passos.

Assim, ao que parece, querem banir com o Cristo do Espiritismo, quando o próprio Codificador lhe dirigia o maior respeito, lhe mensionava com deferência, falando inclusive de um Espiritismo Cristão, ao passo que a Religião Espírita o quer tal qual pintado pelo catolocismo.

Doutrina Espírita e Religião Espírita, definitivamente, não se dialogam, mas nem por isso é necessário se tornarem adversárias, basta que cada uma ocupe seu lugar. O maior problema da nova religião é que suas opiniões, seus postulados e suas máximas são basicamente todos oriundos de Espíritos sem a chancela racionalizada do Codificador, ou seja, Espíritos pulverizaram revelações e noticiários do plano espiritual por toda a parte, sem que houvesse a preocupação de se utilizar os métodos kardequianos para lhes abonar ou descartar. Tudo foi aceito sem precaução, sem ajuizamento, fazendo que estes Espíritos tivessem mais autoridade do que Kardec. 
Ou seja, trata-se de uma pedra angular já torta e, por isso mesmo, frágil.

Surge, então, o pensamento de que Kardec está ultrapassado, também no seio dos ditos espíritas "científicos", portanto estes, apesar de tentar combater os "religiosos", compartilham com eles a mesma ideia, com certeza a mais perigosa. Porque será necessário compreender a fundo a Codificação e aguardar o tempo. Muitos estão convictos de que as complementações doutrinárias advirão ainda nesta geração; mas quem garantiu isso? Isto prova o quanto os vícios humanos tardam para se extinguirem: o imediatismo esteve presente em todos os tempos, vide as narrações bíblicas.

Fazendo um trocadilho, a verdade é que a Doutrina Espírita realiza um monólogo, em que os que a escutam são ainda muito poucos. Basta observar os pareceres dos que se intitulam defensores da verdade, da razão, da racionalidade: Kardec virou um pesquisador, um simples estudioso, que por acaso deu com as mesas girantes. Daí, por acaso ele conhecia o Magnetismo, por acaso ele resolveu perceber que os fenômenos não eram necessariamente magnéticos, por acaso ele publica O Livro dos Espíritos, tudo por acaso. Jesus: uma personagem obscura, do qual a história não se preocupou em registrar, e por isso mesmo não passa de uma ficção. As pessoas não sabem que a história registra o que convém, registra o que ela quer e da maneira que quer. É preciso que elas descubram que o mais verdadeiro da história é justamente o que incomoda e tem que ficar escondido.

Há impasses, inegavelmente, no seio dos adeptos, mas é preciso impedir dissenções que comprometam o trabalho de divulgação doutrinária.

O respeito não pode faltar às diversas religiões, inclusive à Espírita. É preciso que se pense que os erros tem que ser combatidos, os incautos alertados, todos os que agem de má fé tem que ser desmascarados. Mas não serão as ofensas pessoais que atingirão tal fim. Os argumentos frios, ponderados e respeitosos serão melhor tolerados e poderão, à elegância francesa do Codificador, rebater e levar as pessoas ao raciocínio lógico.

Kardec idealizou a unidade da Doutrina Espírita e, se ainda está-se a passos com as divergências, é por que naturalmente não chegou o tempo da maturidade. 

Fonte: Crítica Espírita - http://criticaespirita.blogspot.com/2013/10/doutrina-espirita-e-religiao-espirita.html

Um comentário:

  1. Muito bom o texto, vou analisar com mais cuidado os conceitos aqui analisados, principalmente a questão de falta de validação das comunicações...

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