terça-feira, 22 de março de 2011

Questão de vida ou morte para o Espiritismo

Por Manuel S. Porteiro

O que somos? Seres incapazes de autodeterminação, arrastados pela fatalidade ou totalmente comandados por fatores externos? Seres completamente livres, donos absolutos do nosso destino? Ou criaturas humanas dotadas de livre-arbítrio e responsabilidade, segundo nosso grau de evolução espiritual, e subordinadas às leis naturais e ao meio social em que vivemos?

Ao abordar o tema que me proponho desenvolver, não abrigo a pretensão de responder satisfatoriamente às exigências filosóficas às quais, sem dúvida, tem direito o culto leitor. Não pretendo, tampouco, em um simples trabalho, abarcar em todos os seus aspectos um ponto de doutrina tão vasto e complexo, tão difícil e, sobretudo, tão superior às minhas forças intelectuais como é o livre-arbítrio e sua antítese, o determinismo, quando ilustres psicólogos, esclarecidos espiritistas têm escrito muito a respeito sem haver esgotado o tema. E creio que a solução satisfatória de problema tão escabroso corresponde à psicologia do porvir, refletida nas luzes do Espiritismo.

Esta afirmação parecerá estranha, evidentemente, aos partidários do espiritualismo clássico, que crêem que o livre-arbítrio é um ponto de doutrina perfeitamente esclarecido, que não pode nem deve ser posto em dúvida, porque tem sido considerado por filósofos e teólogos como um dogma indiscutível, fundado na consciência universal. Também parecerá estranho aos deterministas, que crêem haver resolvido o problema da liberdade humana, negando-a e afirmando o determinismo com as elaborações da fisiopsicologia, com o materialismo histórico ou com a lei de causalidade universal.

O Espiritismo, ainda que sustente como fundamento de sua moral o livre-arbítrio, não faz dele um dogma infalível nem põe travas à inteligência de seus adeptos, impedindo-os de refletirem, analisarem e esclarecerem esta questão, do mesmo modo que não exclui da análise os seus fenômenos, embora aceitos em grande parte como produzidos por entidades espirituais que viveram na Terra. Pelo contrário, a experiência, o livre exame, o raciocínio são, para o Espiritismo, a base de sua filosofia, e para o espiritista o fundamento de suas convicções, ainda que, como em toda doutrina racionalista, se diferencie em detalhes na apreciação dos fatos e dos postulados que deles se depreendem.

Nós, espiritistas, não queremos vencer sustentando um “preconceito”, como mais de um sábio mal-intencionado já disse. Buscamos a verdade e, crendo estar na posse de uma partícula desta, desejamos ilustrar com ela, na medida de nossos conhecimentos. Sabemos muito bem que não há verdades absolutas, que todas são relativas ao grau de capacidade e instrução de cada indivíduo, ao desenvolvimento científico de cada época e ao limite traçado à inteligência humana.

Deste ponto de vista abordaremos o tema, não sem antes entrarmos em algumas considerações preliminares sobre a relativa importância que, a nosso ver, tem para o Espiritismo a solução de tão árduo problema.

O materialismo tem pretendido tornar o livre-arbítrio uma questão de vida ou de morte para o Espiritismo, e é por isso que sobre ele foram dirigidos seus melhores ataques, opondo-se-lhes o determinismo em suas diversas formas, inclusive o fanatismo. E não poucos espiritistas, fazendo desta uma questão fundamental, têm respondido às impugnações, acreditando sem dúvida que, se não somos livres nem responsáveis por nossos atos, a causa do Espiritismo está perdida e seu conceito moral aniquilado.

Longe de nós pretender debilitar a tese da liberdade, tal como se a depreende da filosofia espírita. Cremos que, com o livre-arbítrio ou sem ele, com a responsabilidade ou sem ela, o Espiritismo não sofre nenhum enfraquecimento e que o ser humano, tanto hoje como ontem e amanhã, seguirá igualmente o curso de sua evolução ascendente até seu destino superior, acredite ou não em sua liberdade moral e no mérito ou demérito de suas ações. Isso porque o que ele não fizer por sua livre vontade o fará apesar dela e, sem dúvida, com mais acerto, já que o Ser onisciente, que rege os destinos do Universo e de suas criaturas, sabe melhor do que estas o que convém a seus fins. E, ainda que o homem filosoficamente não o queira, lhe dará eternamente a satisfação pelas boas ações e o remorso pelas más; e onde e quando queira que este faça bem, tal bem será, tarde ou cedo, meritório à sua consciência e à de seus semelhantes, recebendo a justa e natural sanção por todas as suas ações, seja libertista, determinista ou fatalista.

É curioso observar a divergência e o ilogismo que existem no campo da filosofia e das religiões. Sócrates e Platão, as maiores figuras do espiritualismo clássico, cuja sublime moral se identifica com a moral espírita, sequer mencionam a vontade e o livre-arbítrio. Epicuro, filósofo sensualista e de certo modo materialista, posto que nega a imortalidade da alma, é partidário do livre-arbítrio: “Ainda que o acaso o persiga com as coisas mais molestas, as enfermidades e os padecimentos – disse –, o homem reto e bom permanece livre, independente, feliz, pois pode evitar tudo isso com um movimento para diante ou para trás, escapando assim à dor e à perturbação, como o átomo ao seu destino.”

Trecho de Conferência proferida na Sociedade Constância, no dia 5 de junho de 1929, e publicada pela revista “La Idea”, em 1936. Tradução de Ciro Pirondi.

Edição Digital
PENSE – Pensamento Social Espírita
www.viasantos.com/pense

Fonte:
Caderno Cultural Espírita - nº 1
Santos - Licespe – 1987

Saiba mais sobre Manuel S. Porteiro clicando aqui.

0 comentários:

Postar um comentário