Por Allan Kardec
A vida futura não é mais um problema; é um fato adquirido pela razão e pela demonstração para a quase unanimidade dos homens, porque os seus negadores não formam senão uma ínfima minoria, apesar do ruído que se esforçam por fazer. Não é, pois, a sua realidade que nos propusemos demonstrar aqui; isso seria repetir sem nada acrescentar à convicção geral. Estando o princípio admitido, como premissa, o que nos propusemos foi examinar a sua influência sobre a ordem social e a moralização, segundo a maneira pela qual é encarado.
As conseqüências sobre o princípio contrário, quer dizer, o niilismo, são igualmente muito bem conhecidas e muito bem compreendidas para que seja necessário desenvolvê-las pela segunda vez. Diremos simplesmente que, se fora demonstrado que a vida futura não existe, a vida presente não teria outro objetivo senão a manutenção de um corpo que, amanhã, em uma hora, poderia deixar de existir e tudo, neste caso, estaria acabado sem retorno. A conseqüência lógica de uma tal condição da Humanidade, seria a concentração de todos os pensamentos sobre o crescimento dos gozos materiais, sem cuidado com o prejuízo de outrem, por que então se privar, se impor sacrifícios? Que necessidade de se constranger para se melhorar, se corrigir de suas faltas? Seria, ainda, a perfeita inutilidade do remorso, do arrependimento, uma vez que não se teria nada a esperar; seria, enfim, a consagração do egoísmo e da máxima: O mundo é dos mais fortes e dos mais espertos. Sem a vida futura, a moral não é senão um embaraço, um código de convenção imposto arbitrariamente, mas não tem nenhuma raiz no coração. Uma sociedade fundada sobre tal crença não teria outro laço senão a força, e cairia logo em dissolução.
Que se objete que, entre os negadores da vida futura, há pessoas honestas, incapazes de fazerem conscientemente uma injustiça a outrem, e suscetíveis dos maiores devotamentos! Diremos primeiro que, entre muitos incrédulos, a negação do futuro é antes uma fanfarronice, uma jactância, o orgulho de passar por espíritos fortes, do que o resultado de uma convicção absoluta. No foro íntimo de sua consciência, há uma dúvida que os importuna, é porque procuram se atordoar; mas não é sem uma secreta dissimulação que eles pronunciam o terrível nada que os priva do fruto de todos os trabalhos da inteligência, e destrói para sempre as mais caras afeições. Mais de um daqueles que gritam mais alto, são os primeiros a tremer à idéia do desconhecido; também, quando se aproxima o momento fatal de entrar nesse desconhecido, bem poucos dormem o último sono com a firme convicção de que não despertarão em alguma parte, porque a Natureza jamais perde os seus direitos.
Dizemos, pois, que, entre a maioria, a incredulidade não é senão relativa; quer dizer, que a sua razão não estando satisfeita nem com os dogmas, nem com as crenças religiosas, e não tendo encontrado nenhuma parte com que encher o vazio que se fizera neles, concluíram que nada havia e construíram sistemas para justificar a negação; não são incrédulos senão por falta de melhor. Os incrédulos absolutos são muito raros, se é que existem.
Uma intuição latente e inconsciente do futuro pode, pois, reter um certo número deles sobre a encosta do mal, e poder-se-ia citar uma multidão de atos, mesmo entre os mais endurecidos, que testemunham esse sentimento secreto que os domina, à sua revelia.
É necessário dizer, também, que, qualquer que seja o grau de incredulidade, as pessoas de uma certa condição social são retidas pelo respeito humano; sua posição as obriga a manter-se numa linha de conduta muito reservada; o que temem, acima de tudo, é a infâmia e o desprezo, que, fazendo-lhes perder, pela queda da posição que ocupam, a consideração do mundo, privariam-nas dos gozos que proporcionam a si mesmas; se não têm sempre o fundo da virtude, têm ao menos o verniz. Mas, para aqueles que não têm nenhuma razão para se prender à opinião, que zombam do que dirão, e não se deixará de convir que não seja a maioria, que freio pode ser imposto ao transbordamento das paixões brutais e aos apetites grosseiros? Sobre qual base se apóia a teoria do bem e do mal, a necessidade de reformar seus maus pendores, o dever de respeitar o que os outros possuem, quando eles mesmos não possuem nada? Qual pode ser o estimulante do ponto de honra para as pessoas a quem se persuade de que não são mais do que animais? A lei, diz-se, está lá para mantê-los; mas a lei não é um código de moral que toca o coração; é uma força que sofrem, e que iludem se o podem; se tombam ao primeiro de seus golpes, é para eles uma chance má, ou uma falta de jeito, que tratam de reparar na primeira ocasião.
Aqueles que pretendem que há mais mérito, para os incrédulos, em fazer o bem sem a esperança de uma remuneração na vida futura, na qual não crêem, se apóiam sobre um sofisma tão pouco fundado. Os crentes dizem também que o bem realizado tendo em vista vantagens que se pretende recolher, é menos meritório; vão mesmo mais longe, porque estão persuadidos de que, segundo o móvel que os faz agir, o mérito pode ser completamente anulado. A perspectiva da vida futura não exclui o desinteresse nas boas ações, porque a felicidade da qual ali se goza está, antes de tudo, subordinada ao grau de adiantamento moral; ora, os orgulhosos e os ambiciosos aí estão entre os menos bem favorecidos. Mas os incrédulos que fazem o bem são tão desinteressados como o pretendem? Se nada esperam do outro mundo, nada esperam deste? O amor-próprio nisso não é levado em conta? São insensíveis à aprovação dos homens? Estaria aí um grau de perfeição raro, e não cremos que haja muitos que a isso sejam levados unicamente pelo culto da matéria.
Uma objeção mais severa é esta: Se a crença na vida futura é um elemento moralizador, por que os homens que a pregaram, desde que estão sobre a Terra, são igualmente tão maus?
Primeiro, quem disse que não seriam piores sem isso? Não se poderia disso duvidar, considerando-se os resultados inevitáveis do niilismo popularizado. Não se vê, ao contrário, observando-se os diferentes escalões da Humanidade, desde a selvageria até a civilização, caminhar à frente do progresso intelectual e moral, o abrandamento dos costumes, e a idéia mais racional da vida futura? Mas esta idéia, ainda muito imperfeita, não pôde exercer a influência que ela terá, necessariamente, à medida que será melhor compreendida, e que se adquira noções mais justas sobre o futuro que nos está reservado.
Qualquer que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa muito com a sua alma, senão do ponto de vista místico. A vida futura, muito pouco claramente definida, não o impressiona senão vagamente; isso não é senão um objetivo que se perde ao longe, e não um meio, porque a sorte aí está irremediavelmente fixada, e nenhuma parte lhe foi apresentada como progressiva; de onde se conclui que ele o será pela eternidade o que foi ao sair daqui. Aliás, o quadro que dela se faz, as condições determinantes da felicidade ou da infelicidade que aí se experimentam, estão longe, sobretudo num século de exame como o nosso, de satisfazer completamente à razão. Depois, ela não se liga bastante diretamente à vida terrestre; entre as duas, não há nenhuma solidariedade, mas um abismo, de sorte que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas, perde quase sempre a outra de vista.
Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastara às inspirações dos homens; então, se deixavam conduzir; hoje, sob o reinado do livre exame, querem se conduzir eles mesmos, ver pelos seus próprios olhos, e compreender; as vagas noções da vida futura não estão à alturas das idéias novas, e não respondem mais às necessidades criadas pelo progresso. Com o desenvolvimento das idéias, tudo deve progredir ao redor do homem, porque tudo se liga, tudo é solidário na Natureza: ciências, crenças, cultos, legislações, meios de ação; o movimento para a frente é irresistivel, porque é a lei da existência dos seres; o que quer que seja que permaneça atrasado, abaixo do nível social, é posto de lado, como as vestes que não servem mais, e, finalmente, é levado pela onda que cresce.
Assim o foi com as idéias pueris sobre a vida futura com as quais se contentavam os nossos pais; persistir em impô-las hoje, seria levar à incredulidade. Para ser aceita pela opinião, e para exercer a sua influência moralizadora, a vida futura deve se apresentar sob o aspecto de uma coisa positiva, tangível de alguma sorte, capaz de suportar o exame; satisfatória para a razão, sem nada deixar na sombra. Foi no momento em que a insuficiência das noções do futuro abria a porta à duvida e à incredulidade, que novos meios de investigação foram dados ao homem para penetrar esse mistério, e fazê-lo compreender a vida futura, em sua realidade, em seu positivismo, em suas relações íntimas com a vida corpórea.
Por que se toma, em geral, tão pouco cuidado com a vida futura? Entretanto, trata-se de uma atualidade, uma vez que se vêem, cada dia, milhares de homens partirem para essa destinação desconhecida? Como cada um de nós deverá partir ao seu turno, e porque a hora da partida pode soar a qualquer minuto, parece natural inquietar-se com o que disso advirá. Por que isso não é feito? Precisamente porque a destinação é desconhecida, e que não se teve, até o presente, nenhum meio para conhecê-la. A ciência inexorável veio desalojá-la dos lugares onde estava circunscrita. Ela está perto? Está longe? Está perdida no infinito? As filosofias dos tempos passados não respondiam nada, porque elas mesmas nada sabiam disso; então, diz-se: "Será o que for"; daí a indiferença.
Ensinam-nos bem que nela se é feliz ou infeliz segundo se tenha bem ou mal vivido; mas isso é tão vago! Em que consiste essa felicidade e essa infelicidade? O quadro que dela se faz está de tal modo em desacordo com a idéia que fazemos da justiça de Deus, semeado de tantas contradições, de inconseqüências, de impossibilidades radicais, que, involuntariamente, se é tomado pela dúvida, se não for pela incredulidade absoluta, e depois se diz que aqueles que se enganaram sobre os lugares assinalados para as moradas futuras puderam, do mesmo modo, ser induzidos em erro sobre as condições que marcam para a felicidade e para o sofrimento. Aliás, como estaremos naquele mundo? Ali seremos seres concretos ou abstratos? Teremos uma forma, uma aparência? Se não temos nada de material, como se pode ali sentir sofrimentos materiais? Se os felizes nada têm a fazer, a ociosidade perpétua, em lugar de uma recompensa, torna-se um suplício, a menos que se admita o Nirvana do Budismo, que não é muito invejável.
O homem não se preocupará com a vida futura senão quando nela ver um objetivo limpo e claramente definido, uma situação lógica, respondendo a todas as suas aspirações, resolvendo todas as dificuldades do presente, e nela não encontre nada que a razão não possa admitir. Se se preocupa com o dia de amanhã, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida da véspera: elas são solidárias, uma com a outra; sabe-se que, do que se faz hoje, depende a posição de amanhã, e do que se fizer amanhã dependerá a posição do depois-de-amanhã, a assim por diante.
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente: quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas idéias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma conseqüência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização.
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura.
Fonte: Obras Póstumas
A vida futura não é mais um problema; é um fato adquirido pela razão e pela demonstração para a quase unanimidade dos homens, porque os seus negadores não formam senão uma ínfima minoria, apesar do ruído que se esforçam por fazer. Não é, pois, a sua realidade que nos propusemos demonstrar aqui; isso seria repetir sem nada acrescentar à convicção geral. Estando o princípio admitido, como premissa, o que nos propusemos foi examinar a sua influência sobre a ordem social e a moralização, segundo a maneira pela qual é encarado.
As conseqüências sobre o princípio contrário, quer dizer, o niilismo, são igualmente muito bem conhecidas e muito bem compreendidas para que seja necessário desenvolvê-las pela segunda vez. Diremos simplesmente que, se fora demonstrado que a vida futura não existe, a vida presente não teria outro objetivo senão a manutenção de um corpo que, amanhã, em uma hora, poderia deixar de existir e tudo, neste caso, estaria acabado sem retorno. A conseqüência lógica de uma tal condição da Humanidade, seria a concentração de todos os pensamentos sobre o crescimento dos gozos materiais, sem cuidado com o prejuízo de outrem, por que então se privar, se impor sacrifícios? Que necessidade de se constranger para se melhorar, se corrigir de suas faltas? Seria, ainda, a perfeita inutilidade do remorso, do arrependimento, uma vez que não se teria nada a esperar; seria, enfim, a consagração do egoísmo e da máxima: O mundo é dos mais fortes e dos mais espertos. Sem a vida futura, a moral não é senão um embaraço, um código de convenção imposto arbitrariamente, mas não tem nenhuma raiz no coração. Uma sociedade fundada sobre tal crença não teria outro laço senão a força, e cairia logo em dissolução.
Que se objete que, entre os negadores da vida futura, há pessoas honestas, incapazes de fazerem conscientemente uma injustiça a outrem, e suscetíveis dos maiores devotamentos! Diremos primeiro que, entre muitos incrédulos, a negação do futuro é antes uma fanfarronice, uma jactância, o orgulho de passar por espíritos fortes, do que o resultado de uma convicção absoluta. No foro íntimo de sua consciência, há uma dúvida que os importuna, é porque procuram se atordoar; mas não é sem uma secreta dissimulação que eles pronunciam o terrível nada que os priva do fruto de todos os trabalhos da inteligência, e destrói para sempre as mais caras afeições. Mais de um daqueles que gritam mais alto, são os primeiros a tremer à idéia do desconhecido; também, quando se aproxima o momento fatal de entrar nesse desconhecido, bem poucos dormem o último sono com a firme convicção de que não despertarão em alguma parte, porque a Natureza jamais perde os seus direitos.
Dizemos, pois, que, entre a maioria, a incredulidade não é senão relativa; quer dizer, que a sua razão não estando satisfeita nem com os dogmas, nem com as crenças religiosas, e não tendo encontrado nenhuma parte com que encher o vazio que se fizera neles, concluíram que nada havia e construíram sistemas para justificar a negação; não são incrédulos senão por falta de melhor. Os incrédulos absolutos são muito raros, se é que existem.
Uma intuição latente e inconsciente do futuro pode, pois, reter um certo número deles sobre a encosta do mal, e poder-se-ia citar uma multidão de atos, mesmo entre os mais endurecidos, que testemunham esse sentimento secreto que os domina, à sua revelia.
É necessário dizer, também, que, qualquer que seja o grau de incredulidade, as pessoas de uma certa condição social são retidas pelo respeito humano; sua posição as obriga a manter-se numa linha de conduta muito reservada; o que temem, acima de tudo, é a infâmia e o desprezo, que, fazendo-lhes perder, pela queda da posição que ocupam, a consideração do mundo, privariam-nas dos gozos que proporcionam a si mesmas; se não têm sempre o fundo da virtude, têm ao menos o verniz. Mas, para aqueles que não têm nenhuma razão para se prender à opinião, que zombam do que dirão, e não se deixará de convir que não seja a maioria, que freio pode ser imposto ao transbordamento das paixões brutais e aos apetites grosseiros? Sobre qual base se apóia a teoria do bem e do mal, a necessidade de reformar seus maus pendores, o dever de respeitar o que os outros possuem, quando eles mesmos não possuem nada? Qual pode ser o estimulante do ponto de honra para as pessoas a quem se persuade de que não são mais do que animais? A lei, diz-se, está lá para mantê-los; mas a lei não é um código de moral que toca o coração; é uma força que sofrem, e que iludem se o podem; se tombam ao primeiro de seus golpes, é para eles uma chance má, ou uma falta de jeito, que tratam de reparar na primeira ocasião.
Aqueles que pretendem que há mais mérito, para os incrédulos, em fazer o bem sem a esperança de uma remuneração na vida futura, na qual não crêem, se apóiam sobre um sofisma tão pouco fundado. Os crentes dizem também que o bem realizado tendo em vista vantagens que se pretende recolher, é menos meritório; vão mesmo mais longe, porque estão persuadidos de que, segundo o móvel que os faz agir, o mérito pode ser completamente anulado. A perspectiva da vida futura não exclui o desinteresse nas boas ações, porque a felicidade da qual ali se goza está, antes de tudo, subordinada ao grau de adiantamento moral; ora, os orgulhosos e os ambiciosos aí estão entre os menos bem favorecidos. Mas os incrédulos que fazem o bem são tão desinteressados como o pretendem? Se nada esperam do outro mundo, nada esperam deste? O amor-próprio nisso não é levado em conta? São insensíveis à aprovação dos homens? Estaria aí um grau de perfeição raro, e não cremos que haja muitos que a isso sejam levados unicamente pelo culto da matéria.
Uma objeção mais severa é esta: Se a crença na vida futura é um elemento moralizador, por que os homens que a pregaram, desde que estão sobre a Terra, são igualmente tão maus?
Primeiro, quem disse que não seriam piores sem isso? Não se poderia disso duvidar, considerando-se os resultados inevitáveis do niilismo popularizado. Não se vê, ao contrário, observando-se os diferentes escalões da Humanidade, desde a selvageria até a civilização, caminhar à frente do progresso intelectual e moral, o abrandamento dos costumes, e a idéia mais racional da vida futura? Mas esta idéia, ainda muito imperfeita, não pôde exercer a influência que ela terá, necessariamente, à medida que será melhor compreendida, e que se adquira noções mais justas sobre o futuro que nos está reservado.
Qualquer que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa muito com a sua alma, senão do ponto de vista místico. A vida futura, muito pouco claramente definida, não o impressiona senão vagamente; isso não é senão um objetivo que se perde ao longe, e não um meio, porque a sorte aí está irremediavelmente fixada, e nenhuma parte lhe foi apresentada como progressiva; de onde se conclui que ele o será pela eternidade o que foi ao sair daqui. Aliás, o quadro que dela se faz, as condições determinantes da felicidade ou da infelicidade que aí se experimentam, estão longe, sobretudo num século de exame como o nosso, de satisfazer completamente à razão. Depois, ela não se liga bastante diretamente à vida terrestre; entre as duas, não há nenhuma solidariedade, mas um abismo, de sorte que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas, perde quase sempre a outra de vista.
Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastara às inspirações dos homens; então, se deixavam conduzir; hoje, sob o reinado do livre exame, querem se conduzir eles mesmos, ver pelos seus próprios olhos, e compreender; as vagas noções da vida futura não estão à alturas das idéias novas, e não respondem mais às necessidades criadas pelo progresso. Com o desenvolvimento das idéias, tudo deve progredir ao redor do homem, porque tudo se liga, tudo é solidário na Natureza: ciências, crenças, cultos, legislações, meios de ação; o movimento para a frente é irresistivel, porque é a lei da existência dos seres; o que quer que seja que permaneça atrasado, abaixo do nível social, é posto de lado, como as vestes que não servem mais, e, finalmente, é levado pela onda que cresce.
Assim o foi com as idéias pueris sobre a vida futura com as quais se contentavam os nossos pais; persistir em impô-las hoje, seria levar à incredulidade. Para ser aceita pela opinião, e para exercer a sua influência moralizadora, a vida futura deve se apresentar sob o aspecto de uma coisa positiva, tangível de alguma sorte, capaz de suportar o exame; satisfatória para a razão, sem nada deixar na sombra. Foi no momento em que a insuficiência das noções do futuro abria a porta à duvida e à incredulidade, que novos meios de investigação foram dados ao homem para penetrar esse mistério, e fazê-lo compreender a vida futura, em sua realidade, em seu positivismo, em suas relações íntimas com a vida corpórea.
Por que se toma, em geral, tão pouco cuidado com a vida futura? Entretanto, trata-se de uma atualidade, uma vez que se vêem, cada dia, milhares de homens partirem para essa destinação desconhecida? Como cada um de nós deverá partir ao seu turno, e porque a hora da partida pode soar a qualquer minuto, parece natural inquietar-se com o que disso advirá. Por que isso não é feito? Precisamente porque a destinação é desconhecida, e que não se teve, até o presente, nenhum meio para conhecê-la. A ciência inexorável veio desalojá-la dos lugares onde estava circunscrita. Ela está perto? Está longe? Está perdida no infinito? As filosofias dos tempos passados não respondiam nada, porque elas mesmas nada sabiam disso; então, diz-se: "Será o que for"; daí a indiferença.
Ensinam-nos bem que nela se é feliz ou infeliz segundo se tenha bem ou mal vivido; mas isso é tão vago! Em que consiste essa felicidade e essa infelicidade? O quadro que dela se faz está de tal modo em desacordo com a idéia que fazemos da justiça de Deus, semeado de tantas contradições, de inconseqüências, de impossibilidades radicais, que, involuntariamente, se é tomado pela dúvida, se não for pela incredulidade absoluta, e depois se diz que aqueles que se enganaram sobre os lugares assinalados para as moradas futuras puderam, do mesmo modo, ser induzidos em erro sobre as condições que marcam para a felicidade e para o sofrimento. Aliás, como estaremos naquele mundo? Ali seremos seres concretos ou abstratos? Teremos uma forma, uma aparência? Se não temos nada de material, como se pode ali sentir sofrimentos materiais? Se os felizes nada têm a fazer, a ociosidade perpétua, em lugar de uma recompensa, torna-se um suplício, a menos que se admita o Nirvana do Budismo, que não é muito invejável.
O homem não se preocupará com a vida futura senão quando nela ver um objetivo limpo e claramente definido, uma situação lógica, respondendo a todas as suas aspirações, resolvendo todas as dificuldades do presente, e nela não encontre nada que a razão não possa admitir. Se se preocupa com o dia de amanhã, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida da véspera: elas são solidárias, uma com a outra; sabe-se que, do que se faz hoje, depende a posição de amanhã, e do que se fizer amanhã dependerá a posição do depois-de-amanhã, a assim por diante.
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente: quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas idéias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma conseqüência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização.
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura.
Fonte: Obras Póstumas
0 comentários:
Postar um comentário