terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cristianismo x Espiritismo

Por Eugenio Lara

As relações entre Cristianismo e Espiritismo sempre despertaram controvérsias históricas, desde que este surgiu na França, em 1857. Até hoje, espíritas cristãos, religiosos não se entendem com espíritas laicos e livres-pensadores. Ora, será que o fundador do Espiritismo, Allan Kardec, imaginava os conflitos, cisões e o descompasso que haveria entre os espíritas devido a essas controvérsias? Quais motivos o levaram a interpretar o Cristianismo sob a ótica espírita?

Na “Revista Espírita”, amiúde, Kardec reafirma o caráter científico do Espiritismo, expresso no preâmbulo de “O Que é o Espiritismo” (1860). Até o lançamento de “O Livro dos Médiuns” (1861), é coerente com essa definição, de que o verdadeiro caráter do Espiritismo é o de uma ciência, jamais o de uma religião. 

No entanto, a partir do lançamento de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (1864), sem deixar de sustentar o Espiritismo como ciência de observação, ele dedica-se à leitura hermenêutica e exegética dos evangelhos canônicos e vincula historicamente o Espiritismo à teologia judaico-cristã, colocando-o como a Terceira Revelação, o Consolador Prometido, o Espírito de Verdade que Jesus Cristo prometera enviar após a “Ascensão aos céus”. Kardec chega a admitir, sutilmente, que O Espírito de Verdade seria o próprio Cristo, contrariando o que afirmara em “Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas” (1858), quando revelou que esse espírito teria sido um grande filósofo da Antiguidade.

Não há como negar, portanto, a vinculação do Espiritismo ao Cristianismo, a começar pela terminologia adotada. A tal “questão religiosa” nasce com a Igreja e Roustaing, mas é reafirmada pelo próprio Kardec por sua adesão ao Cristianismo, mesmo tendo negado que o Espiritismo fosse religião em várias oportunidades, principalmente no famoso Discurso de Abertura (1868).

Muitas são as interpretações da postura de Kardec. Há quem imagine que ele fundou uma espécie de Neocristianismo, um Cristianismo em novo formato. Outros entendem que ele fez concessão à Igreja ao escrever aquela série de obras após “O Livro dos Médiuns”. Para muitos, o Espiritismo é a revivescência do Cristianismo, o Cristianismo redivivo.

CONTEXTO HISTÓRICO

Ora, não houve concessão alguma ao Cristianismo, à Igreja, senão o comportamento de Kardec em relação à pressão dos cristãos teria sido outro. Ele não era um sujeito frouxo, inseguro. Basta ver a polêmica que trava com o Abade Chesnel. Por outro lado, é equivocada a tese de que Kardec queria fazer do Espiritismo uma forma arrojada e sofisticada de Cristianismo, de que ele, sem querer querendo, fundou uma nova religião cristã. Essa leitura seria correta, por exemplo, em relação ao Espiritismo Cristão, de Jean-Baptiste Roustaing e à Igreja Mórmon, de Joseph Smith, mas nunca em relação à Doutrina Kardecista. E além do mais, o Espiritismo não adota a Bíblia como a palavra de Deus, sustentáculo da doutrina cristã. Esse fato, por si só, exclui a Doutrina Kardecista do rol das religiões cristãs. O Espiritismo não é um Cristianismo.

Essa questão necessita ser analisada em seu contexto histórico. A atitude de Kardec representa uma resposta à demanda social e cultural de seu tempo. A partir de 1860, ele é estimulado a sair de seu gabinete, em Paris, e viajar por toda a França, Suíça, Bélgica a fim de atender aos apelos dos novos grupos espíritas que surgiam nesses países. Eram grupos formados, em boa parte, por pessoas humildes. Em sua cidade natal, Lyon, por exemplo, um polo industrial equivalente ao nosso atual ABC, Kardec deu de cara com muitos operários, gente simples, desdentada, de mãos calejadas, semianalfabeta. Isso deve ter sido algo inusitado, surpreendente para ele, acostumado a um público com outro perfil, mais elitista, bem mais sofisticado. 

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) era composta por integrantes da elite francesa, da nata da sociedade: intelectuais, magistrados, empresários, médicos, acadêmicos etc. Enquanto que muitos desses novos grupos periféricos possuíam um perfil mais modesto, com outras particularidades e uma influência muito tenaz do Cristianismo, porque formados por pessoas recém-saídas do catolicismo ou que ainda frequentavam a Igreja. A propósito, Kardec achava que o sujeito poderia ser espírita sem deixar de ser católico, sem deixar de ter alguma religião. Essa orientação não é gratuita.

Os livros que escreveu, a partir de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, visam atender à necessidade de se vislumbrar, no próprio Cristianismo, elementos interpretativos fornecidos pelo Espiritismo, a partir não somente da experimentação, do empirismo no campo mediúnico, mas também em sua filosofia, na sua teoria de valores. Ele entendia, inclusive, que o Espiritismo teria a missão de oferecer à Igreja a base empírica para seus dogmas e princípios, de que ele funcionaria como elo, de religação entre a ciência e a religião. 

RELIGIOSO OU RELIGIONÁRIO? 

Oportuno lembrar que no século 19, devido ao avanço econômico, da ciência e dos costumes, as religiões perdem terreno, adeptos e o poder que sempre tiveram, porque são inimigas do progresso, da modernidade e não acompanham as mudanças de seu tempo.

O Espiritismo nasce justamente em pleno surgimento da modernidade, em meio à crise das religiões, particularmente a católica, e procura dar conta de questões onde a religião fracassou, especialmente a cristã, daí o esforço de Kardec em escrever obras que atendessem a essa demanda. Não foi nenhum tipo de concessão e nem houve intenção de se fundar uma nova religião cristã ou de instituir “A Religião”, em Espírito e Verdade. 

Outro aspecto é o fato de que o Espiritismo, apesar de definido por Kardec como filosofia espiritualista, não dialoga com boa parte da tradição filosófica ocidental. Ou seja, a conexão direta do Espiritismo não é com Espinosa, Kant, Hegel etc., mas sim com o humanismo iluminista, o espiritualismo em geral, com a tradição espiritualista francesa, com o “Spiritualism” norte-americano e inglês, com o espiritualismo filosófico (Pierre Leroux, Jean Reynaud, Ephraim Lessing etc.), com os utópicos (Fourier, Cabet, Saint-Simon). Deve-se acrescentar ainda a cultura gaulesa e bretã, céltica, pois estamos na pátria dos celtas gauleses. 

A busca do diálogo com o judaico-cristianismo surge da necessidade cultural, religiosa na França do século 19. O Cristianismo não tinha nesse país a mesma força que na Espanha (daí o Auto de Fé de Barcelona), mas era a religião hegemônica. Se Kardec não fosse homem de prestígio, se não privasse da amizade de Napoleão III e de muitos outros maçons e membros da elite francesa, se não tivesse amigos influentes, a Igreja esmagaria o Espiritismo, que teria abortado logo de início. Ela somente conseguiria seu antigo intento com o infame “Processo dos Espíritas” (1875).

Kardec sabia que haveria divergências, cisões, por isso redigiu o Projeto 1868 e delineou rumos seguros à organização do Espiritismo como movimento social. O Período Religioso, imaginado por ele na sua prospecção cartesiana da propagação espírita, não tem o sentido de laço, de elo, de comunhão entre os espíritas. O religioso aí é no sentido religioso mesmo, sem trocadilho. É religioso com significado de culto. Senão, segundo a acepção que aplicava ao termo religião, ele deveria denominar esse período de Religionário, usando o termo religião no sentido de laço (religion). Vislumbrou que após esse Período Religioso, impregnado pelo Cristianismo, haveria outro, de transição, até o Espiritismo assumir integralmente sua vocação natural de “influência sobre a ordem social”, no Período de Regeneração Social. O escritor espírita Jaci Regis (1932-2010), muito perspicaz, chamou nos anos 1980 esse período intermediário de Espiritização. Fosse hoje, ele o chamaria de Período Pós-Cristão.

A conexão entre Cristianismo e Espiritismo é um tema complexo, exige conhecimento histórico, de filosofia, teologia, antropologia e muitas áreas outras. Não basta somente conhecer a Kardequiana, é preciso situa-la em seu contexto histórico. Muitas polêmicas e divergências poderiam ser amainadas se os espíritas fizessem esse tipo de leitura, ao invés de ficarem garimpando na Kardequiana, aqui e ali, palavras de Allan Kardec sobre essa questão.

Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), é autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita e em edição digital: “Racismo e Espiritismo”; “Milenarismo e Espiritismo”; “Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico”; “Conceito Espírita de Evolução” e “Os Quatro Espíritos de Kardec”. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Fonte: PENSE - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1459.html

Um comentário:

  1. Muito boa a atitude de discutir abertamente a questão laico x cristã... que por acaso, é o que me afastou do espiritismo, pois eu tenho um raciocínio científico que deixa espaço pra influências cristãs.
    Abraços!

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