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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Mestres antecessores de Kardec

Por Dora Incontri

O espiritismo não surgiu do nada. Todas as idéias se filiam a uma história. Fazem parte da construção lenta do processo evolutivo do homem. Uma tarefa urgente aos estudiosos da doutrina é contextualizá-la, apreendê-la no devir da História, para melhor compreender suas raízes, seu desenvolvimento e sua importância no tempo e no espaço.

Não se trata de situar o espiritismo como um reflexo das estruturas econômicas vigentes na época do seu nascimento ou como mera expressão de uma dada cultura. Esse o erro brutal das concepções antropológicas, exibidas nas universidades atuais. Nessa linha de interpretação, não existiria conteúdo de verdade – ou pelo menos, não há a preocupação por uma possível verdade proclamada por esta ou aquela manifestação cultural ou religiosa. O que há são idéias que refletem o contexto sócio-político-econômico de uma época. Assim, teríamos um espiritismo explicado e acabado dentro da ótica do século XIX, da herança racionalista francesa, fruto de um momento histórico. Essa visão relativista das idéias é conseqüência de toda a corrente inaugurada, de um lado pelo marxismo e do outro pelo positivismo – ambos aliás, primos-irmãos em ideologia e cujos descendentes são a sociologia e a antropologia atuais. Todas essas matizes de interpretação têm em comum a redução da realidade ao seu aspecto social. E sob essa ótica, não são mais as idéias, nem os indivíduos que movem o mundo, mas a sociedade, com sua divisão em classes, com seus conflitos de interesses e sua ânsia de progresso (predominantemente material) que gera idéias, e essas não têm qualquer sentido intrínseco de verdade atemporal.

Ora, justamente num ramo dessa corrente – o positivismo – que tanta influência teve na história do Brasil, querem alguns incluir Kardec. O positivismo, além de realizar esse corte materialista no real, o oposto do que faz o espiritismo, que aumenta a nossa percepção ao infinito, realizou, no plano histórico, a fragmentação das ciências, originando a especialização excessiva do conhecimento, também em oposição à proposta de síntese e de entrelaçamento das áreas, feita por Kardec.

É polêmico se Kardec teria ou não uma afinidade com o positivismo. Os espíritas se dividem. Os não-espíritas são quase unânimes em dizer que sim, mas há aí uma evidente má fé, porque a afirmação não vem acompanhada de estudos sérios e profundos (este é o caso de François Laplantine em seu livro, bastante superficial: LAPLANTINE, François e AUBRÉE, Marion. La Table, le Livre et les Esprits. Paris: JC Lattes, 1990) e fica patente a intenção de colocar o espiritismo no rol das doutrinas positivistas fracassadas e obscurantistas do século XIX. Pessoalmente, partilho a idéia de que há um abismo entre ambas as doutrinas, embora esta ou aquela idéia isolada possam ser aproximadas. O assunto requer um estudo mais aprofundado, mas apenas de passagem cito as seguintes discrepâncias: 1) o positivismo é coletivista, endeusa a humanidade, fazendo dela a sua religião; o espiritismo faz apelo ao indivíduo e não se perde em teorias totalitárias, em que o o ser individual se sacrifique em prol de um todo abstrato. 2) Isso se baseia nas opostas concepções de homem esposadas por ambas as doutrinas: para o positivismo, o homem não passa de fruto da espécie animal. O seu materialismo grosseiro está mesmo ultrapassado pelos atuais avanços da física. Para o espiritismo, o homem é antes de tudo espírito e aí reside o seu valor e a sua dignidade de ser, candidato à angelitude, herdeiro de potencialidades divinas. 3) O positivismo quer reduzir toda a apreensão do mundo à ciência materialista. Desprezou a filosofia e fez da religião algo meramente social; ao passo que o espiritismo quer promover o diálogo e a concordância entre as diversas formas de captação do real. 4) O positivismo tem uma estrutura doutrinária sistemática, fechada e foi contaminado por um personalismo patológico, que se manifestou no culto hierárquico ao seu fundador, Auguste Comte. O espiritismo pretende ser uma doutrina assistemática, como várias vezes advertiu Kardec, aberta e sem nenhuma forma de idolatria hierárquica.

Associar, pois, o espiritismo ao positivismo revela falta de compreensão do verdadeiro sentido da doutrina codificada por Kardec, ou então pode se tratar de uma intenção não confessada de denegri-la. Não estou só nessa minha interpretação: Léon Denis criticou diversas vezes o materialismo positivista e, aqui no Brasil, Bezerra de Menezes se ergueu em polêmica com seus representantes.

Assim, fazer a história do espiritismo não é enquadrá-lo em alguma dessas teorias reducionistas da realidade, com as quais se trabalha atualmente nos redutos do academicismo mais radical. Trata-se, isso sim, de conceber a evolução das idéias filosóficas, religiosas e científicas e observar como essa evolução desemboca no espiritismo. Trata-se de fazer história das idéias e, se há alguma filosofia permeando a apreensão histórica, é a própria filosofia espírita que pode nos dar os elementos para a compreensão mais acurada do processo evolutivo. Essa apreensão é feita de maneira abrangente nas obras de J. Herculano Pires — o único até hoje a quem poderíamos chamar de filósofo espírita da história das idéias. Em seus livros, ele caminha de Platão a Sartre com a desenvoltura de alguém que se coloca do alto de uma montanha e vê as contribuições particulares de cada pensador, como tijolos, levados à construção do edifício da verdade.

As raízes mais evidentes e ainda pouco relacionadas com Kardec saltam aos olhos em seu mestre, Pestalozzi e no mestre de Pestalozzi, Rousseau. Em ambos, vamos encontrar subsídios para esse estudo. Entretanto, não haverá aqui uma referência mais específica ao tema da imortalidade da alma, pois trata-se de um conceito por demais obviamente enraizado na linha de pensamento aqui investigada. Desde a antiga filosofia grega, até um racionalista como Descartes, passando por toda a tradição cristã, sem contar as diversas doutrinas orientais, a imortalidade sempre foi o ponto de apoio de inúmeras formas de estruturação doutrinária.

Passemos, portanto, aos dois autores, que evidentemente aceitavam a imortalidade, mas que nem só por isso se ligam à corrente histórica do espiritismo. Em torno de Rousseau e em torno de Pestalozzi até hoje se acendem polêmicas para discutir uma questão mais nominal, que essencial: teriam sido eles iluministas ou românticos, racionalistas ou sentimentalistas? Ambos estão enraizados no século XVIII, berço, ou pelo menos palco da consolidação, de um racionalismo feroz, que atingiu o apogeu na ironia de um Voltaire ou no materialismo de um Helvetius e acabou entronizando a deusa Razão, durante a Revolução Francesa. Mas ambos se projetam igualmente no século XIX, influenciando o romantismo alemão e francês, abrindo as comportas de uma torrente de paixão, sentimento e religiosidade, nos tons literários de Victor Hugo ou nos delírios grandiloqüentes dos filósofos alemães… (O próprio século XIX, aliás, é o palco tanto do romantismo mais exarcebado, quanto das correntes cientificistas materialistas. Esse século foi tão fértil em idéias, movimentos e talentos, que pelo menos alguns volumes seriam necessários para situar o espiritismo nesse cenário, abarcando os aspectos estéticos, políticos, filosóficos, científicos, etc.)

Embora haja divergências entre Rousseau e Pestalozzi, pois esse último, como discípulo, ultrapassou o mestre, sobretudo na aplicação prática das idéias educacionais, pode-se falar de muitas afinidades entre ambos. A primeira delas, que é justamente a causa dessas polêmicas, é a seguinte: tanto um como o outro não podiam se desfazer dessa herança racionalista, iniciada por Descartes já um século antes. Nem mesmo pretendiam a apreensão irracional da vida, banindo as conquistas da humanidade nesse sentido. Uma prova disso é a rejeição dos dogmas irracionais das igrejas vigentes, a preocupação pedagógica do desenvolvimento racional do educando, para o que Pestalozzi, por exemplo, baseado em Rousseau, criou um método próprio, que sempre partia do mais simples ao mais complexo, da unidade ao composto, da observação à teoria, e assim por diante.

Entretanto, ambos são igualmente declarados como precursores ou mesmo fundadores do romantismo – o primeiro da estética e da filosofia românticas e o segundo, da pedagogia romântica. É que, tanto por temperamento, quanto provavelmente por suas respectivas missões, Rousseau e Pestalozzi se esforçaram por fugir de um racionalismo estéril, sufocante do espírito e apartado do sentimento moral. Tentam restabelecer os direitos do coração – nem de longe entendido aqui num sentido piegas ou mesmo romantiqueiro. Para eles, a moral – sua preocupação básica – não é mera questão racional, não pode ser apenas encarada do ponto de vista pragmático ou do puro dever social, ou ainda como dogma institucional. A moral é antes de tudo um despertar de sentimentos elevados. Para Rousseau, a própria consciência não se manifesta através de regras, mas pela voz do sentimento – a primeira reação a uma infração moral é o sentimento de remorso.

Para ambos, o próprio desenvolvimento da razão e sua capacidade de compreender e de pesquisar a verdade está relacionada com a elevação de sentimentos. Ou seja, a reta razão, de que fala Rousseau, só pode ser exercitada se aquecida pela luz do sentimento puro. Pestalozzi vai ainda mais longe. Em Rousseau, talvez possamos ainda falar de uma dicotomia, ou pelo menos de uma dualidade, de razão e sentimento, um influenciando o outro, mas ainda apreendidos em compartimentos estanques. Já em Pestalozzi, existe uma apreensão unitária do homem, onde razão, sentimento e ação, se integram e se entrelaçam. Pestalozzi propõe uma educação integral do homem, para desenvolver harmoniosamente todas as potências do espírito, simbolizadas na tríade: cabeça, mão, coração.

Erram, portanto, tanto os que reduzem Rousseau e Pestalozzi a meros iluministas, como aqueles que os incham como românticos acabados. Eles quiseram justamente promover o equilíbrio do homem, resgatando o sentimento, desprezado pelos iluministas mais radicais, mas sem abdicar da razão. Foram autores de transição entre duas épocas, e portanto, assimilaram o que havia de melhor no passado, mas semearam os germes do futuro. Estão, isso sim, acima da rotulagem das escolas de pensamento, porque os verdadeiros gênios transcendem sempre o mero paradigma vigente.

Isso tudo se torna ainda mais flagrante na religiosidade de Rousseau e de Pestalozzi. Antes de mais nada, não é demais lembrar que ambos nasceram no mesmo país protestante, a Suíça, e foram alimentados numa fé que, embora já cristalizada institucionalmente – ou seja, já cadaverizada em sua essência – pressupunha algum avanço em relação à Igreja de Roma. A Reforma de fato deu um grande impulso, dentro das limitações das circunstâncias históricas, ao processo de volta ao cristianismo primitivo e de dessacralização da Igreja Católica.

No caso de Pestalozzi, a influência foi ainda mais benéfica. Pois se Rousseau nasceu em Genebra, onde o temível e árido Calvino havia pontificado, Pestalozzi nasceu em Zurique, onde através da língua e, portanto, da cultura alemã e pelas mãos de seu avô pastor, lhe chegaram os ventos mais amenos do pietismo alemão. O pietismo foi um movimento dentro da Reforma, que pretendia justamente fugir da aridez teológica para reacender a prática e a devoção cristãs. Seu fundador, Philipp Jacob Spener (1635-1705), pretendia revitalizar a presença de Jesus no coração dos fiéis e pregava que o verdadeiro cristianismo se dá antes pela prática da caridade do que pelas especulações teológicas, e antes realizado por leigos, do que monopolizado pelo clero… É supérfluo dizer da afinidade de algumas idéias pietistas com a proposta espírita. Aliás, segundo os livros de história das religiões, num sentido mais vasto, são chamados de pietistas, quaisquer grupos cristãos – e não apenas o fundado por Spener – cujo núcleo doutrinário seja a prática individual da devoção e da moral de Cristo, em oposição às formas institucionais das igrejas.

Eis um ponto-chave, tanto em Rousseau como em Pestalozzi: ambos baseiam a religiosidade no indivíduo. E esse indivíduo é concebido de forma integral, guiado pela razão e iluminado pelo sentimento. A religião não emana de uma fonte artificial, implantada e mantida pelos homens, de alguma igreja, hierarquia ou instituição qualquer. A religião emana do homem, porque ele é animado pelo Espírito Divino e a natureza à sua volta também o é. A religião é essa forma de sintonia com a própria essência divina, com a essência divina da natureza, e com o Criador, que a tudo transcende; uma sintonia, sem a necessidade de intermediários, sem a obrigação de se obtê-la ou mesmo manifestá-la através de qualquer tipo de ritualística.

A única conseqüência óbvia e desejável dessa conexão consigo mesmo, com o cosmos e com o Ser Supremo é a prática da fraternidade, da justiça e do amor na sociedade. Portanto, a religião individual se traduz naturalmente em prática moral. Assim diz Pestalozzi:

E a fonte da justiça e de toda a felicidade no mundo, a fonte do amor e do sentido de fraternidade humana, repousa no grande pensamento da religião: de que somos filhos de Deus, e de que a fé nessa verdade é a base segura para toda a felicidade do mundo. (…) toda força interior da moralidade, do esclarecimento e da sabedoria repousa nessa base: na fé da humanidade em Deus. (PESTALOZZI, Johann Heinrich: Abendstunde eines Einsiedlers. in Kleine Schriften zur Volkserziehung und Menschenbildung. Bad Heilbrunn: Ed. Julius Klinkhardt, 1983, p. 17)

Digno de nota é que se Rousseau é muitas vezes erroneamente interpretado como mero deísta, com uma noção ainda bastante iluminista de Deus, em que a Divindade teria sido causa do mundo, mas não estaria mais presente no universo, ao contrário, Pestalozzi é, algumas vezes, interpretado erroneamente num sentido oposto, o de uma concepção totalmente panteísta de Deus. Nenhuma das duas posições é verdadeira. Rousseau evoluiu do iluminismo deísta para uma concepção mais abrangente de Deus, em que ele é causa primeira, mas também imanência na consciência humana e presença viva em todas as coisas. E Pestalozzi, apesar de se referir constantemente à imanência de Deus, ainda o considera como Ser transcendente e dirige-se a Ele em prece.

A idéia mais evidente, nesse devir evolutivo, que aqui se esboça e que vem desde o Renascimento, atingindo sua culminância nos séculos XVIII e XIX, é a restituição aos homens de sua autonomia individual, é a tentativa progressiva de romper as tutelas, para reconhecer a infinita capacidade humana de pensar, procurar a verdade e encontrar a si mesmo e a Deus. Nesse movimento de libertação, contudo, muitos se perderam na rebeldia completa, endureceram seus corações na luta e caíram no materialismo grosseiro ou em outras formas de tutela, que não as religiosas, como as tutelas de Estados totalitários. E no entanto, entre os que mais permaneceram em equilíbrio, procurando reconhecer a autonomia humana, mas promovendo ao mesmo tempo o homem em sua totalidade, e acenando-lhe sobretudo a tutela de Deus – de cujas leis não podemos escapar, pois estamos inseridos num universo, por Ele sustentado – estão justamente Rousseau e Pestalozzi.

O traço original e comum a ambos os autores, que apenas é encontrado tão fortemente num dos maiores filósofos de todos os tempos – Platão – e no antecessor de ambos – Comenius – é o desaguar de todas as idéias na idéia magna da educação. O maior e talvez único meio de reintegrar o homem em si mesmo, entregando-lhe a tutela de si próprio, cultivando-lhe a reta razão e o sentimento elevado, é dado pelo ato pedagógico.

A diferença entre os dois educadores, e que indica a superioridade de Pestalozzi, é que Rousseau, apesar de sua aguda consciência da moral e da religião em seu sentido mais elevado, não foi capaz de traduzi-la em atos e há sempre a contradição do pensador Rousseau, proclamando a beleza de uma educação revolucionária em Emílio, com o pai Rousseau, abandonando os próprios filhos. (É preciso que se diga do seu intenso arrependimento, ainda em vida, por tal feito, que também teve algumas atenuantes, dentro das circunstâncias de sua posição familiar.) Ao invés, Pestalozzi projetou suas idéias em ação de amor e socorreu crianças órfãs, educou pobres e ricos, ajudou a erguer um novo conceito de educação, teorizando e praticando uma pedagogia do amor. Ele precedeu o espiritismo não apenas em idéias, mas foi um fiel representante da máxima "Fora da Caridade não há Salvação".

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A Síntese Kardequiana


Allan Kardec

Por Maurice Herbert Jones

Segundo o filósofo e pacifista britânico Bertrand Russel, a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém, onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos – esta terra de ninguém é uma terra de todos: é o chão da Filosofia.

O mundo, indaga ele, está dividido em espírito e matéria?  Se assim é, o que é o espírito e o que é a matéria? Quem está sujeito a quem? Será o espírito dotado de alguma independência?  Possui o universo alguma unidade ou propósito e se possui estará ele evoluindo a caminho da sua finalidade? Será que existem mesmo leis da natureza ou só acreditamos nelas devido ao nosso amor pela ordem? Existe alguma maneira de viver que seja mais nobre ou menos nobre? Em que consistiria o modo de vida nobre e como realizá-lo?

Evidentemente não encontraremos respostas a estas questões nos laboratórios. Responder a elas é empenho da Filosofia pois, se nem  todas as nossas especulações podem ser respondidas pela Ciência, é também verdade que  as respostas confiantes dos teólogos, aceitas no passado, já não nos convencem mais,  conclui o pensador na sua “História da Filosofia Ocidental”.

Seria o Espiritismo numa resposta inteligente a estas profundas questões de ordem filosófica? Vários elementos que estruturam o pensamento espírita respondem positivamente a esta indagação e o credenciam como um modo moderno, ventilado e revolucionário de percepção do homem e do mundo, bem como precioso instrumento pedagógico para o autoconhecimento e controle racional da própria evolução. 

O grande problema da ética como estudo racional da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo, como pode ser o homem persuadido a ser bom. A esta intrigante questão o Espiritismo responde com a idéia da evolução e, sobretudo, com os princípios da reencarnação e da causalidade que oferecem substrato racional riquíssimo para a adoção consciente de um modelo comportamental fundamentado na tolerância racial e social, configurando assim a ética natural, sonhada por Sócrates, capaz de construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos.

Na visão do filósofo J.Herculano Pires, O Livro dos Espíritos, veículo privilegiado destas idéias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto,  o arcabouço filosófico do Espiritismo.

Como se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo até os dias atuais.

A precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de Kardec herdeiro natural de uma magnífica linhagem de educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna, passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu “Emílio”, terminando  no grande e sábio mestre da educação como ato de amor, J.H. Pestalozzi.  

Como um estuário das correntes de idéias mais generosas e libertárias que irrigaram a cultura da Europa desde a renascença, Kardec chegou à maturidade equipado, moral e intelectualmente, para a grande tarefa de sua vida: a construção de uma síntese conceptual do mundo moderno, a Codificação Espírita, centrada na idéia da evolução e na realidade e primado da vida espiritual.

Esta extraordinária façanha, resultado do trabalho de homens encarnados, assessorados por homens desencarnados, tornou-se possível, no tempo e no espaço, pela feliz conjugação de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais aliados à sensibilidade, lucidez e coragem do mestre educador Hippolyte Léon Denizard Rivail cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando neste 3 de outubro de 2004.

Segundo muitos historiadores, o Renascimento  e a Reforma Luterana são as duas mais importantes nascentes da história moderna. Uma libertou o espírito e embelezou a vida, oferecendo ao homem o direito à felicidade aqui na terra; a outra estimulou a crença e o senso moral. As idéias contidas no bojo destes movimentos, propagadas pelas facilidades oferecidas pela descoberta de Gutenberg e dinamizadas pela revolução conceptual produzida pela descoberta da América e pela revelação de Copérnico, varreram a Europa a partir do final do Séc. XV e início do Séc. XVI, desencadeando uma  irresistível avalanche de mudanças, crises  e conflitos ideológicos num mundo cansado do repouso medieval e ansioso pela descoberta de novos mundos, novos caminhos, novas idéias.

No Século XVIII o Renascimento cede espaço para o Iluminismo que, tendo razão e liberdade como estandarte, enfrenta a superstição e a opressão, produzindo significativa redução de importância da Igreja e influindo por seus princípios na independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, fatos que, entre outros, assinalam o colapso da França feudal, uma importante ampliação das liberdades civis e a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.

Se acrescentarmos a este sintético painel o crescimento exponencial da população a partir de 1750 em função de avanços na produção agrícola, higiene e medicina e mais a revolução industrial iniciada na Inglaterra provocando intenso deslocamento das populações rurais para as cidades com todo o conjunto de conseqüências sociais, políticas e econômicas, encerraremos o século das luzes já experimentando um certo cansaço da arrogância racionalista e criando espaço para o surgimento do Romantismo que valorizando o sentimento caracteriza o século XIX, o século de Kardec.

O nascimento em 1804 e a formação intelecto-moral  do futuro Codificador do Espiritismo ocorre em plena era de Napoleão que, no mesmo ano é coroado Imperador  e promulga o Código Civil dos Franceses ou “Código de Napoleão”, de importância decisiva no direito ocidental e, conforme o próprio Imperador, sua maior obra.

Kardec era um homem da sua época, cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam. Enquanto aprimorava sua formação no Instituto de Pestalozzi em Yverdon e, depois, na vida profissional, como educador, outros acontecimentos ocorriam, com enorme significado e presença na sua futura e máxima obra.

Além dos importantes desdobramentos geopolíticos do período napoleônico, podemos identificar as revolucionárias teorias evolucionistas de Lamark e Darwin de enorme repercussão,  a Filosofia Positivista de Auguste Comte e, até, o Manifesto Comunista de Marx e Engels, produto da agitação social da nova classe operária.

Neste cenário imponente e desafiador, buscava-se afanosamente um novo modelo conceptual para o tempo novo que surgia, pois os paradigmas vigentes haviam esgotado a capacidade de oferecer segurança e identidade.  É então que, já maduro e sensível às inquietações do seu mundo e à convocação do mundo espiritual, Kardec aceita a responsabilidade de liderar o grande esforço para construção de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar a verdade.

E assim, como uma flor tardia da primavera iluminista, nascida no solo adubado pelo romantismo de Rousseau e Pestalozzi, surgiu o Espiritismo que, com seu “humanismo espiritocêntrico”, busca superar, dialeticamente, o conflito entre o pensamento medieval centrado em Deus e o humanismo organocêntrico da renascença e iluminismo. A cosmovisão inovadora e sintética oferecida por Kardec ao mundo nascia, robusta e perturbadora, desafiando os paradigmas senis e anunciando, no dizer do físico inglês Oliver Lodge, “uma nova revolução copérnica”.