quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Segunda Vista

Por Allan Kardec

Conhecimento do Futuro. Previsões.

Se, no estado sonambúlico, as manifestações da alma se tornam, de alguma sorte, ostensivas, seria absurdo pensar que, no estado normal, ela estivesse confinada em seu envoltório de maneira absoluta, como o caracol está encerrado em sua concha. Não é, de nenhum modo, a influência magnética que a desenvolve; essa influência não faz senão torná-la patente pela ação que exerce sobre os nossos órgãos. Ora, o estado sonambúlico não é sempre uma condição indispensável para essa manifestação; as faculdades que vimos se produzirem nesse estado, se desenvolvem, algumas vezes, espontaneamente no estado normal de certos indivíduos. Disso resulta, para eles, a faculdade de ver além dos limites de nossos sentidos; percebem as coisas ausentes por toda a parte onde a alma estende a sua ação; vêem, se podemos nos servir desta expressão, através da visão comum, e os quadros que descrevem, os fatos que contam, se apresentam a eles como o efeito de uma miragem, e é o fenômeno designado sob o nome de segunda vista. No sonambulismo, a clarividência é produzida pela mesma causa; a diferença é que, nesse estado, ela está isolada, independente da vida corpórea, ao passo que lhe é simultânea, naqueles que dela são dotados no estado de vigília.

A segunda vista quase nunca é permanente; em geral, esse fenômeno se produz espontaneamente, em certos momentos dados, sem ser um efeito da vontade, e provoca uma espécie de crise que modifica, algumas vezes, sensivelmente o estado físico: o olho tem alguma coisa de vago; parece olhar sem ver; toda a fisionomia reflete uma espécie de exaltação.

É de notar-se que as pessoas que dela gozam, não suspeitam disso; essa faculdade lhes parece natural como aquela de ver pelos olhos; para elas, é um atributo de seu ser, e que não lhes parece, de nenhum modo, fazer exceção. Acrescentai a isso que o esquecimento segue, muito freqüentemente, essa lucidez passageira, cuja lembrança, cada vez mais vaga, acaba por desaparecer como a de um sonho.

Há graus infinitos no poder da segunda vista, desde a sensação confusa, até a percepção tão clara e tão limpa como no sonambulismo. Falta-nos uma palavra para designar esse estado especial, e sobretudo os indivíduos que dele são suscetíveis: tem se servido da palavra vidente, e embora não dê exatamente o pensamento, adotá-la-emos até nova ordem, por falta de melhor.

Se aproximamos agora os fenômenos da clarividência sonambúlica e da segunda vista, compreende-se que o vidente possa ter a percepção das coisas ausentes; como o sonâmbulo, ele vê à distância; segue o curso dos acontecimentos, julga de sua tendência e pode, em alguns casos, prever-lhes o resultado.

É esse dom da segunda vista que, no estado rudimentar, dá a certas pessoas o tato, a perspicácia, uma espécie de segurança em seus atos, e que se pode chamar a justeza do golpe de vista moral. Mais desenvolvida, desperta os pressentimentos, mais desenvolvida ainda, mostra os acontecimentos realizados, ou no ponto de se realizarem; enfim, chega ao seu apogeu, é o êxtase desperto.

O fenômeno da segunda vista, como dissemos, é quase sempre natural e espontâneo; mas parece se produzir, mais freqüentemente, sob o império de certas circunstâncias. Os tempos de crise, de calamidade, de grandes emoções, todas as causas, enfim, que superexcitam o moral, provocam-lhe o desenvolvimento. Parece que a Providência, em presença dos perigos mais iminentes, multiplica, ao nosso redor, a faculdade de preveni-los.

Houve videntes em todos os tempos e em todas as nações; parece que certos povos a isso estejam mais naturalmente predispostos; diz-se que, na Escócia, o dom da segunda vista é muito comum. Encontra-se, assim tão freqüentemente, entre as pessoas do campo e os habitantes das montanhas.

Os videntes foram diversamente olhados segundo os tempos, os costumes e o grau de civilização. Aos olhos das pessoas céticas, passam por cérebros desarranjados, alucinados; as seitas religiosas deles fizeram profetas, sibilas, oráculos; nos séculos de superstição e de ignorância, eram feiticeiros que se queimavam. Para o homem sensato, que crê na força infinita da Natureza, e na inesgotável bondade do Criador, a dupla vista é uma faculdade inerente à espécie humana, pela qual Deus nos revela a existência de nossa essência material. Qual é aquele que não reconhece um dom dessa natureza em Jeanne d’Arc e numa multidão de outros personagens que a história qualifica de inspirados?

Tem-se falado, freqüentemente, de cartomantes que dizem coisas surpreendentes de verdade. Estamos longe de nos fazer apologistas de ledores de sorte, que exploram a credulidade de espíritos fracos, e cuja linguagem ambígua se presta a todas as combinações de uma imaginação ferida; mas não há nada de impossível em que, certas pessoas, fazendo esse ofício, tenham o dom da segunda vista, mesmo com o seu desconhecimento; desde então as cartas não são, em suas mãos, senão um meio, senão um pretexto, uma base de conversação; elas falam segundo o que vêem, e não segundo o que indicam as cartas que apenas olham.

Ocorre o mesmo com outros meios de adivinhação, tais como as linhas das mãos, o resíduo de café, as claras de ovo e outros símbolos místicos. Os sinais da mão, talvez, tenham mais valor do que todos os outros meios, de nenhum modo por si mesmos, mas porque o suposto adivinho, tomando e apalpando a mão do consulente, se está dotado da segunda vista, encontra-se em relação mais direta com este último, como ocorre nas consultas sonambúlicas.

Podem colocar-se os médiuns videntes na categoria das pessoas gozando da dupla vista. Como estes últimos, com efeito, os médiuns videntes crêem ver pelos olhos, mas, em realidade, é a alma que vê, e é a razão pela qual vêem tão bem de olhos fechados, quanto de olhos abertos; segue-se, necessariamente, que um cego poderia ser médium vidente tão bem quanto aquele cuja visão está intacta. Um estudo interessante a fazer seria saber se esta faculdade é mais freqüente nos cegos. Seríamos levados a crer, tendo em vista que, assim como se pode disso se convencer pela experiência, a privação de se comunicar com o exterior, em razão da ausência de certos sentidos, em geral, dá mais poder à faculdade de abstração da alma e, por conseguinte, mais desenvolvimento ao sentido íntimo pelo qual ela se põe em relação com o mundo espiritual.

Os médiuns videntes podem, pois, ser comparados às pessoas que gozam da visão espiritual; mas seria, talvez, muito absoluto considerar estes últimos como médiuns; porque a mediunidade consistindo unicamente na intervenção dos Espíritos, o que se faz por si mesmo não pode ser considerado como um ato mediúnico. Aquele que possui a visão espiritual vê pelo seu próprio Espírito, e nada implica, no desenvolvimento de sua faculdade, a necessidade do concurso de um Espírito estranho.

Isto posto, examinemos até que ponto a faculdade da dupla vista pode nos permitir descobrir as coisas ocultas e de penetrar no futuro.

De todos os tempos, os homens quiseram conhecer o futuro, e poder-se-iam escrever volumes sobre os meios inventados pela superstição para levantar o véu que cobre o nosso destino. A Natureza foi muito sábia no-lo escondendo; cada um de nós tem a sua missão providencial na grande colmeia humana, e concorre à obra comum na sua esfera de atividade. Se soubéssemos, antecipadamente, o fim de cada coisa, ninguém duvide que a harmonia geral com isso sofreria. Um futuro feliz assegurado tiraria do homem toda atividade, uma vez que não teria necessidade de nenhum esforço para chegar ao objetivo que se propôs: seu bem-estar; todas as forças físicas e morais seriam paralisadas, e a marcha progressiva da Humanidade seria detida. A certeza da infelicidade teria as mesmas conseqüências pelo efeito do desencorajamento; todos renunciariam lutar contra o decreto definitivo do destino. O conhecimento absoluto do futuro seria, pois, um presente funesto que nos conduziria ao dogma da fatalidade, o mais perigoso de todos, o mais antipático ao desenvolvimento das idéias. É a incerteza, do momento de nosso fim neste mundo que nos faz trabalhar até a última batida de nosso coração. O viajor arrastado por um veículo abandona-se ao movimento que deve conduzi-lo ao objetivo, sem pensar em se fazer desviar, porque sabe da sua impossibilidade; tal seria o homem que conhecesse o seu destino irrevogável. Se os videntes pudessem transgredir essa lei da Providência, seriam os iguais da divindade; também, tal não é, de nenhum modo, a sua missão.

Nos fenômenos da dupla vista, estando a alma em parte desligada do envoltório material que limita as nossas faculdades, não há mais, para ela, nem duração, nem distâncias; abarcando o tempo e o espaço, tudo se confunde no presente. Livre de seus entraves, ela julga os efeitos e as causas melhor do que não podemos fazê-lo: vê as conseqüências das coisas presentes e pode nos fazer pressenti-las; é nesse sentido que se deve entender o dom da presciência atribuído aos videntes.

Suas previsões não são senão o resultado de uma consciência mais clara do que existe, e não uma predição de coisas fortuitas sem laço com o presente; é uma dedução lógica do conhecido para chegar ao desconhecido, que depende, muito freqüentemente, de nossa maneira de fazer. Quando um perigo nos ameaça, se somos advertidos, estamos no caso de fazermos o que é preciso para evitá-lo: com a liberdade de fazê-lo ou não.

Em semelhante caso, o vidente se encontra em presença do perigo que se nos acha oculto; ele o assinala, indica o meio de afastá-lo, senão o acontecimento segue o seu curso.

Suponhamos um carro conduzido numa estrada terminando num abismo, que o condutor não pode perceber; é bem evidente que, se nada vem fazê-lo desviar, irá nele se precipitar; suponhamos, por outro lado, um homem colocado de maneira a dominar a estrada em linha reta; que esse homem, vendo a perda inevitável do viajor, possa adverti-lo para desviar-se a tempo, o perigo será conjurado. De sua posição, dominando o espaço, vê o que o viajor, cuja visão está circunscrita pelos acidentes do terreno, não pode distinguir; pode ele ver se uma causa fortuita vai pôr obstáculo à sua queda; conhece, pois, antecipadamente, o resultado do acontecimento e pode predizê-lo.

Que esse mesmo homem, colocado sobre uma montanha, perceba ao longe, no caminho, uma tropa inimiga se dirigindo para uma aldeia que quer incendiar; ser-lhe-á fácil, calculando o espaço e a velocidade, prever o momento da chegada da tropa. Se, descendo à aldeia, diz simplesmente: A tal hora a aldeia será incendiada, o acontecimento vindo se cumprir, ele passará, aos olhos da multidão ignorante, por um adivinho, um feiticeiro, ao passo que, muito simplesmente, viu o que os outros não podiam ver, e disso deduziu as conseqüências.

Ora, o vidente, como esse homem, abarca e segue o curso dos acontecimentos; não lhe prevê o resultado pelo dom da adivinhação; ele o vê! Pode, pois, vos dizer se estais no bom caminho, vos indicar o melhor, e vos anunciar o que encontrareis no fim do caminho; é, para vós, o fio de Ariadne que vos mostra a saída do labirinto.

Há distância daí, como se vê, à predição propriamente dita, tal como a entendemos na acepção vulgar da palavra. Nada é tirado ao livre arbítrio do homem, que permanece sempre senhor para agir ou não agir, que cumpre ou deixa de cumprir os acontecimentos pela sua vontade ou pela sua inércia; se lhe indica o meio para chegar ao objetivo, cabe-lhe dele fazer uso. Supô-lo submetido a uma fatalidade inexorável pelos menores acontecimentos da vida, é deserdá-lo de seu mais belo atributo: a inteligência; é assimilá-lo ao animal. O vidente não é, pois, de nenhum modo, um adivinho; é um ser que percebe o que não vemos; é para nós o cão do cego. Nada, pois, aqui, contradiz os objetivos da Providência sobre o segredo de nosso destino; é ela mesma que nos dá um guia.

Tal é o ponto de vista sob o qual deve ser encarado o conhecimento do futuro nas pessoas dotadas de dupla vista. Se esse futuro fosse fortuito, se dependesse do que se chama o acaso, se não se ligasse em nada às circunstâncias presentes, nenhuma clarividência poderia penetrá-lo, e toda previsão, nesse caso, não poderia oferecer nenhuma certeza. O vidente, e por isso entendemos o verdadeiro vidente, o vidente sério, e não o charlatão que o simula, o verdadeiro vidente, dizemos, não diz nada do que o vulgo chama a boa sorte; ele prevê o resultado do presente, nada mais, e isso já é muito.

Quantos erros, quantas falsas deligências, quantas tentativas inúteis não evitaríamos, se tivéssemos sempre um guia seguro para nos esclarecer; quantos homens estão deslocados no mundo por não terem sido lançados no caminho que a Natureza traçou para as suas faculdades!

Quantos fracassos por ter seguido os conselhos de uma obstinação irrefletida! Uma pessoa poderia lhe dizer: "Não tenteis tal coisa porque as vossas faculdades intelectuais são insuficientes, porque ela não convém nem ao vosso caráter, nem à vossa constituição física, ou bem ainda porque não sereis secundado segundo a necessidade; ou bem ainda porque vos enganais sobre a importância dessa coisa, porque encontrareis tal entrave que não prevedes." Em outras circunstâncias, ter-lhe-ia dito: "Triunfareis em tal coisa, se a tomardes de tal ou tal maneira; se evitardes tal deligência que pode vos comprometer." Sondando as disposições e o caráter, ter-lhe-ia dito: "Desconfiai de tal armadilha que se quer vos estender;" depois teria acrescentado: "Estais prevenidos, meu papel está findo; eu vos mostro o perigo; se sucumbirdes não acuseis nem a sorte, nem a fatalidade, nem a Providência, mas só a vós. Que pode o médico, quando o enfermo não tem em nenhuma conta os seus conselhos?"

Fonte: Obras Póstumas

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