domingo, 18 de setembro de 2011

Mística Marciana e Segurança Doutrinária

Por Sérgio Aleixo

Ressaltam a seu favor, os que reclamam atualizações doutrinárias, a dita de Kardec que afirma que, se uma verdade nova se revela, o Espiritismo a aceita; todavia, omitem a condição estabelecida pelo mestre para que tal ocorra. De ordem física ou metafísica, novos informes que venham a integrar-lhe o cômputo de ensinos, necessariamente, já se devem encontrar no “estado de verdades práticas e saídas do domínio da utopia, sem o que o Espiritismo se suicidaria”.[1] E esta praticidade consiste em quê? Análises rigorosamente filosóficas respaldadas, até onde seja possível, em pesquisas demonstradamente científicas. Tal é o espírito da doutrina.

Leia-se mais atentamente a nota ao n. 188 de O Livro dos Espíritos: “De todos os globos que constituem o nosso sistema planetário, segundo os espíritos, a Terra é daqueles cujos habitantes são menos adiantados, física e moralmente; Marte lhe seria ainda inferior, e Júpiter, muito superior, em todos os sentidos”.

Kardec apresenta o ensino dos espíritos que lhe fora dado registrar até aquele momento, a este particular respeito, em caráter transitório, pois o relega ao patamar de mera hipótese, razão por que se valeu da forma verbal francesa correspondente ao futuro do pretérito do nosso idioma pátrio: “seria”, e posta, ao demais, numa nota de rodapé, não no texto principal.

Atualizar, pois, o quê, se não foi consignado ali grau absoluto de certeza? Nada mais adequado da parte do codificador, sobretudo quando não se refere propriamente ao princípio em si da pluralidade dos mundos habitados, mas a um assunto de interesse secundário: a vida neste ou naquele planeta, que não reclama sequer a chancela da universalidade de ensino.

A única garantia segura do ensino dos espíritos está na concordância das revelações feitas espontaneamente, através de um grande número de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos lugares. Compreende-se que não se trata aqui de comunicações relativas a interesses secundários, mas das que se referem aos próprios princípios da doutrina.[2]

De mais a mais, o que parece ignorado é que a verdadeira atualização foi perpetrada pelo próprio Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, III, 8 a 12. O texto é considerado parte das Instruções dos Espíritos, mas quem o redige, à guisa de “Resumo do ensinamento de todos os espíritos superiores” sobre “Mundos superiores e mundos inferiores”, é Allan Kardec! O mestre não declina, ali, o nome de nenhum planeta sequer, como quem sinaliza para o fato de que só as generalidades interessavam à chancela da universalidade do ensino, devendo ser abandonados os méritos das circunscrições, na certa, por absoluta falência dos instrumentos e meios de aferição.

Logo, um suposto apêndice atualizador, como querem alguns, converter-se-ia em foco de confusão acerca do assunto, seja por não contemplar o real tratamento que a matéria recebeu já na codificação espírita, seja no que respeita às pseudossoluções apresentadas, como a infalibilidade dos conteúdos da obra psicografada por Chico Xavier, o que seria um acinte.

Em termos espíritas, nada que venha de uma única fonte mediúnica, seja qual for, jamais poderá ser considerado “inquestionável”. Seria um retorno à ancestral infalibilidade divinatória sem qualquer justificativa à luz da doutrina. A codificação kardeciana assegura que “o melhor [médium] é o que, simpatizando somente com os bons espíritos, tem sido enganado menos vezes”, assim como preconiza que, “por melhor que seja um médium, jamais é tão perfeito que não tenha um lado fraco, pelo qual possa ser atacado”.[3]

Por outro lado, se Kardec publicou em A Gênese ditados recebidos de um só médium, sobre Uranografia Geral, é porque se fiou noutras fontes mediúnicas concordantes de que dispunha, aferidas por lógica severa e esmerada cultura de época; esses ditados, aliás, talvez tivessem sido rejeitados por Kardec, no todo ou em parte, se os dados positivos adquiridos até aquele ano já atestassem, por exemplo, que, sim, Marte possui satélites.[4]

De qualquer forma, a presença ou ausência de corpos celestes, bem como sua constituição, não é matéria afeta à Doutrina Espírita em si. Kardec disse certa vez que, no domínio científico, nada cabe ao Espiritismo resolver de forma definitiva, “naquilo que não é essencialmente de sua alçada”.[5]

Portanto, nenhum precedente há nisto que enseje a atualização sugerida, ainda menos nos termos pretendidos. E alegar a existência de um ensino concordante de alguns poucos espíritos na produção de Chico Xavier fora esquecer que tal situação é aquela em que várias entidades se comunicam por um único médium, o que só se aproxima do que seria, para Kardec, a concordância de ensino “menos segura de todas”.[6] Não seria prudente aplicar tão franzino acordo.

O informe de O Livro dos Espíritos era de interesse evidentemente secundário, não reclamando sequer universalidade e, ainda assim, foi afastado por um Kardec posto ante os dados concordantes desta mesma universalidade, que não alcançaram segurança que permitisse ao codificador afirmar o mérito das circunscrições a respeito, sendo suficientes, todavia, para chancelar as generalidades, as probabilidades, como o prova o procedimento do gênio lionês em O Evangelho Segundo o Espiritismo, III, 8 a 12.

Além do mais, devemos crer cegamente nisto que, na verdade, parece um conto ficcional de moral vegetariana, que a humanidade marciana evoluiu mais rapidamente que a terrena e, desde a formação dos seus núcleos sociais, nunca precisou destruir para viver, diversamente das “concepções” dos homens na Terra, cuja vida não prossegue sem morte? Na Terra, a vida não prossegue sem morte só por força das concepções humanas, mas, antes disso, pelo imperativo das leis naturais.

Doutra forma, que teria sido feito das fases marcianas de mundo primitivo, de provas e expiações, ou mesmo de regeneração? A vida só transcorre sem morte, fora da universal lei de destruição, quando o espírito está desencarnado, de posse tão só de seu corpo espiritual. Os marcianos acaso não precisaram da matéria densa para evoluir de início? Seria um convite a teses não espíritas.

De mais a mais, supor que haja seres inteligentes em Marte só porque lá existe água é muito precipitado. Mais ainda quando se imagina que habitem “em outra dimensão física” do planeta. Que quer isto dizer em termos espíritas? Fale-se em dimensão física ou em dimensão extrafísica. Numa ou noutra. A água serviria a seres inteligentes de constituição orgânica, e destes não há qualquer vestígio. Até segunda ordem, a química física do Universo é uma só.

A situação de Marte é mais compatível com a de um “mundo transitório” de O Livro dos Espíritos, 234 a 236. Sua superfície é estéril porque os que o habitam de nada precisam; são espíritos errantes, que ali se encontram com o fim de instruir-se e de repousar de erraticidades muito longas e um pouco penosas, gozando de maior ou menor bem-estar conforme a natureza de cada um. Como disse Kardec: “Ninguém poderá negar que há, nesta ideia dos mundos ainda impróprios para a vida material, e entretanto povoados de seres apropriados ao seu estado, alguma coisa de grande e sublime, onde talvez se encontre a solução de muitos problemas”.

Poderiam ser espíritos de antigas civilizações marcianas? Quem sabe? Neste caso, ainda assim, não hão de ter evoluído ao arrepio da universal lei de destruição; não poderiam ter chegado à civilização e à espiritualização sem haver galgado o progresso que os tirou da barbárie inicial. O Livro dos Espíritos, 742, prevê que, na barbaria, a guerra “é um estado normal”, e que, à medida que o homem progride, menos frequente ela se torna, porque lhe evita as causas, mesmo lhe adicionando humanidade, quando “se faz necessária”.

Por estas e outras é que um vulto gigantesco como J. Herculano Pires [1914-1979], cuja ausência carnal já completou trinta e uma das nossas translações planetárias, sempre deve ser lembrado em suas advertências ao movimento espírita “organizado”, para que a codificação kardeciana seja mais respeitada e perquirida em suas muito específicas e mais altas razões.

Não, portanto, à atualização em forma de apêndice que, desde junho de 2008, intenta-se impor à nota ao n. 188 de O Livro dos Espíritos. A solução dada por Kardec, já na codificação, é a que mais convém à higidez doutrinária. Quando muito, que pequeno aditamento editorial remeta o leitor a um confronto com O Livro dos Médiuns, 296, observação à 32.ª pergunta; e com O Evangelho Segundo o Espiritismo, III, 8 a 12.

[1] A Gênese, I, 55.

[2] KARDEC. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.

[3] O Livro dos Médiuns, 226, 9.ª e 10.ª

[4] Cf. A Gênese, VI, 26: “Alguns planetas como Mercúrio, Vênus e Marte não deram origem a nenhum astro secundário; enquanto que outros, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc., formaram um ou mais”. Como digo no ensaio seguinte, Kardec e os Exilados, é verdade que Fobos e Deimos foram descobertos apenas depois dessas psicografias, em 1877. Não surpreende que os espíritos deixem de revelar o que só aos homens compete descobrir, mas quando prestam informações falsas, o caso é outro.

[5] « ...en ce qui n'est pas essentiellement de son ressort ». In : Revista Espírita. Jul/1868. A Geração Espontânea e “A Gênese”.

[6] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.

Fonte: Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2010_03_24_archive.html

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