terça-feira, 8 de maio de 2012

Nova Visão dos Princípios Básicos


Por Jaci Régis

Em artigo publicado na edição de setembro de 1999, discutimos a necessidade de atualizar a abordagem dos temas doutrinários. Atualizar a abordagem não tem nada a ver com desmentir ou repelir qualquer dos fundamentos do Espiritismo. E, muito menos, alterar sob qualquer pretexto os textos originais de Kardec. Ao contrário.

Todavia, seja por ignorância ou má-fé, tenta-se constantemente confundir as coisas. Por exemplo, a reação epidérmica contra o artigo de Reinaldo Di Lucia, com o sugestivo título “Ultrapassar Kardec”. Algo semelhante às histéricas reações que nos acusam de quer “tirar Jesus”, simplesmente porque negamos valor ao evangelismo católico-protestante que avassala os centros espíritas em geral.

Vamos demonstrar como é mesmo urgente atualizar a abordagem dos cinco princípios básicos do Espiritismo, se quisermos que ele seja uma opção moderna e positiva no século 21.

A Questão da Nuança

No seu famoso discurso de 1º de novembro de 1868, intitulado “É o Espiritismo uma Religião?”, muito bem estudado por Krishnamurti Carvalho Dias, em O Laço e o Culto, Kardec expõe as dificuldades de definir o caráter do Espiritismo devido as nuanças de sua estrutura, paralelas, mas não confundidas com as religiões.

Kardec faz longa peroração sobre a comunhão do pensamento, que para ele é a base de qualquer assembléia religiosa. Ele fundamenta seu pensamento “religioso” no processo universal da comunhão de idéias. E diz que, afinal, a religião é um laço como prova Krishnamurti, não é um culto. Entretanto, ele não se peja de provocar com a pergunta: É o Espiritismo uma religião? E responde afirmativamente: Sim, em seu aspecto filosófico, ele é uma religião porque se funda sobre os elos da fraternidade e da comunhão do pensamento.. E abaixo rebate: O Espiritismo não é uma religião. E isso porque não há uma palavra que exprimir duas idéias deferentes.

Mais adiante diz em seu discurso: “as reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa. Pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que por isso as tomem por assembléias religiosas. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão é devida à falta de um vocábulo para cada idéia”

Essa nuança perfeitamente clara, para Allan Kardec, não pareceu muito clara, nem foi percebida, talvez porque tenha sido, em parte, muito difícil fazê-lo, diante das pressões culturais. Ou mesmo, talvez, conscientemente ignorada. Não houve um filosofar que fizesse perceber as dificuldades e evitar a aceitação tácita dos rituais e formas de entendimento consagradas no cristianismo. Houve  simplesmente a transposição para os centros de práticas religiosas de igrejas, das quais a maioria veio.

O esforço de atualização deve se concentrar no entendimento dessa nuança, na interface, nesse fio da navalha da verdade, de modo a criar a identidade do Espiritismo, como a pensou Kardec, embora ele mesmo tivesse dificuldades quase intransponíveis para torná-las acessíveis ao entendimento comum .

Deus

Todo o sistema religioso e filosófico da vida terrena está baseado na existência de Deus. Entretanto, não temos condições de compreender a natureza divina e decifrar a contento a forma como ela age.

Não obstante, não há quem, em termos de filosofia espiritualista e de crença religiosa, não pretenda, de alguma forma, tentar explicar Deus.

O Livro dos Espíritos, refletindo a dificuldade dos desencarnados, mesmo de categorias mais elevadas, em fornecer indicações razoáveis sobre a natureza divina, diz apenas que é “a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” e adverte que tentar desvendar seus segredos é penetrar num labirinto, sem saída. E afirma que o que se pode é aceitar que Deus existe.

Não obstante, o próprio Kardec não se furtou de listar uma série de perfeições que necessariamente Deus teria, pois, afirmou que, se não sabemos tudo o que Deus seja, sabemos o não pode deixar de ser.

Dentro daquele parâmetro de nuança, é fácil comprovar que se a teoria espírita nos liberta de idéias ancestrais sobre a divindade, na prática é muito difícil livrar-nos delas.

No filtrar desse suposto entendimento sobre Deus permanecem, explícita ou implicitamente, na consciência doutrinária, idéias semelhantes às das religiões. Kardec menciona que o Deus de Jesus é o Deus do amor e pai, uma reviravolta total sobre o possível entendimento da divindade, concretizada na crença judaica.

No fundo, todavia, permanece a figura do Deus Jeová dos judeus que, como é relatado no Velho Testamento, se imiscuía nos assuntos cotidianos, numa verdadeira promiscuidade com pessoas e profetas. Jeová era um Deus cruel.

Entre nós, diz-se, enfaticamente, que Deus não castiga, nem perdoa. Entretanto, todo o esquema explicativo sobre a vida terrena e mesmo na extra-física, se baseia no processo de culpa e castigo.

A afirmativa do presidente da FEB, que ocupa subjetivamente o papel de Sumo Sacerdote, na novel religião espírita, de que “este orbe de expiações e provas, áspero pela sua própria natureza e pela imperfeição de seus habitantes” mostra como precisamos mudar a forma de encarar a vida e superar a condenação ao planeta e sua população. Decorre disso a utilização da reencarnação como instrumento de punição. E evidencia que Deus pode não castigar, mas cobra e bem cobrado, impondo sofrimento e dor.

Para justificar o sofrimento humano, nas provas e expiações, chega-se a pensar que Deus deixa suas criaturas sofrerem, às vezes horrores, não porque não as ama, mas por amá-las assiste impassível suas dores, que afinal, diz-se, é para próprio bem delas.

Aqui, o pecado original do cristianismo foi substituído pelo pecado originário de outras vidas, de modo que a aparente não presença da divindade é justificada pela necessidade de pagar dívidas perante a contabilidade divina, que como se propala, é implacável, pois cobra ceitil por ceitil.

Quando se ora a Deus, pensa-se nele como um pessoa que está em algum lugar do universo e que dispõe de todos os poderes e que pode, se quiser, atender nossos rogos, salvar-nos do perigo, da doença e da miséria. Como geralmente isso não acontece, o silêncio é mais por temer sua ira do que aceitar a Lei Natural.

O Espiritismo diz que a divindade governa a vida universal, incluindo a das pessoas, pela Lei divina ou natural, que – eis aí uma nuança – não é fria nem apenas racional, mas afetiva e emocional.

Não temos, pois, que rever essas posições em relação a Deus, ainda que sem a veleidade de entendê-lo na sua essência e na operacionalidade?

O Espírito

O Espírito é o ser inteligente do Universo, diz O Livro dos Espíritos. Foi criado pela vontade divina, simples e ignorante e para coadjuvar a obra de Deus.

Os Espíritos, no nosso nível, pertencem à humanidade, estejam encarnados ou desencarnados. São unidades solitárias, que desenvolvem personalidades extremamente singulares. É difícil entender porque desenvolvem instintos e perversões morais, com maior facilidade do que virtudes e atitudes equilibradas.

Afirma-se que isso é decorrente de seu estado evolutivo, mas no julgamento geral, essa dissonância é tida como um defeito que poderia ser superado pela vontade.

Embora dizendo que estamos num plano inferior, não raro exige-se comportamentos superiores.

O Espírito é imortal, isto é, tem em si um mecanismo de permanência, devido à sua natureza específica – talvez energética- que lhe torna imune ao tempo, da forma como conhecemos o tempo e o desgaste do corpo físico.

Entretanto, existe uma certa diferença básica do comportamento e da vivência do Espírito conforme ele está encarnado ou desencarnado.

Quando encarnado, o Espírito ou alma, está constrangida pelo corpo físico. Este, a “matéria”, é um verdadeiro escafrandro para a alma. Estando ligado ao corpo físico, o Espírito se vê tolhido, sua visão é restrita, sua inteligência se abafa, seu passado some simplesmente.

Cada existência terrena é, para o Espírito, o mergulho na zona da neblina e ele deseja ardentemente voltar à sua pátria espiritual (numa espécie de princípio da morte de Freud), para livrar-se do corpo ignóbil e integrar toda a sua potencialidade intelectual e afetiva.

Nada sabemos sobre a natureza do Espírito. Mas existe todo um conjunto de afirmativas sobre sua natureza moral. Em torno de seu modo de estar e agir no mundo, se define o bem e o mal, a felicidade e a infelicidade. O futuro do ser humano se mostra não apenas possível, no aspecto de sua permanência enquanto ser em si mesmo, mas sobretudo como um ser moral, sujeito à Lei Natural.

O mundo extra-físico, habitat do Espírito, é descrito, sonhado, entendido e visto como um lugar de sol e luz, um inferno e um céu ou quase céu, pois para nós o céu está muito longe. Há descrições detalhadas de lugares, organizações, hierarquias e objetivos definidos, mas também uma certa liberalidade na organização de setores malignos. Que influenciam as pessoas que estejam ligadas a eles.

Não temos muito a aprender sobre esse lugar? E, mais ainda, sobre como cada Espírito desenvolve a si mesmo no abrangente e multifáacetário ambiente existencial, no corpo físico e fora dele?

A Mediunidade

A mediunidade é o instrumento de comunicação com os Espíritos. Serve sobretudo para provar a imortalidade.

Os Espíritos são seres humanos desencarnados e compõem uma escala praticamente infinita de valores intelectuais, visão filosófica, religiosa, humana e moral.

Não há médiuns infalíveis.

Todas as comunicações devem passar pelo crivo da razão.

Os Espíritos não têm a verdade. São opiniáticos, possuem visões e fazem análises pessoais.

Esses princípios, estatuídos por Kardec, estão longe de serem acatados e seguidos pelos espíritas. Bem ao contrário.

Certos Espíritos são considerados portadores da verdade. Estão acima de qualquer suspeita ou análise. Muitos médiuns se tornaram infalíveis, são declarados missionários, razão porque o que dizem é tomado como manifestação divina. Duvidar ou questioná-los é heresia. Multiplicaram-se os trabalhos de curas fantásticas, a maioria pouco prováveis. Os Espíritos e seus médiuns são conselheiros, substituem os padres no confessionário ditando diretrizes para as vidas de pessoas.

Dentro desse esquema, abunda uma literatura mediúnica, em nome do Espiritismo, não apenas descartável pela sua natureza pueril, mas porque é desnecessária, pois muitos escritores encarnados são muito melhores, além de pecar, não raro, contra os princípios espíritas.

O médium, em muitos lugares, é o centro do poder. Não temos que atualizar, mudar, renovar esse entendimento da mediunidade?

A Reencarnação

A reencarnação é um estado inerente à evolução. O Espírito encarna porque precisa crescer e não porque pecou. Esse entendimento tão linear é descartado pela maioria que, sintomaticamente, analisa a vida dentro dos mesmos moldes das igrejas, isto é, como um fato puramente moral, ou penalizador.

Existe um falso sentido de que, no nosso nível evolutivo, estar no mundo extra-físico é o sonho dourado do ser. A experiência mostra que estar encarnado é uma condição natural e desejada pela maioria esmagadora, uma vez que a vida terrena, pelas suas peculiaridades, disciplina, canaliza e determina modos de ver, conflitar e construir relações afetivas e desenvolver processos intelectuais.

Muitos, todavia, vêem na reencarnação um instrumento punitivo, procurando até justificar certas deficiências pessoais e dificuldades de relacionamento, com pseudo-problemas do passado.

A Lei Natural estabelece claramente as formas como cada um define e sofre as conseqüências de seus atos, mas dentro de um aspecto extremamente sensível e provedor. Ou seja, a Lei cria condições na infraestrutura pessoal, pela vivência de fatos e atos, capazes de originar uma seqüência de buscas e encontros que resolvam pendências e conflitos.

O Espírito foi criado para o prazer e não para a dor.

A alegria é o estado natural. A dor, uma resposta retificadora.

A vida terrena é um processo revolucionário, no sentido de permitir renovação e evolução. Todavia, dissemina-se a idéia de um planejamento estrito, de modo que ela não passa de uma sucessão de fatos presumíveis e antecipadamente desejados ou impostos, com total desprezo pelo livre-arbítrio.

Na verdade, a encarnação não se reduz a um mero processo de expiação e provas, mas a uma intensa oportunidade de rever, reabilitar e projetar a vida espiritual, entendida como expressão da natureza do ser.

Esses aspectos da reencarnação, dando novo sentido positivo à vida terrena, esperam oportunidade para serem debatidos e incorporados a uma nova visão do Espiritismo.

Artigo de Janeiro/Fevereiro de 2000
Fonte: http://www.espiritnet.com.br/Abertura/Ano2000/novisao.htm

Um comentário:

  1. Os princípios básicos do Espiritismo são atemporais e universais.Sendo o Espiritismo uma filosofia e uma ciência com inevitáveis consequências religiosas,pode ser considerada uma religião diferente das outras:Sem hierarquia,sacerdotes,culto formalizado nem arrecadação de dízimos.Apesar da tentativa sutil de vaticanização dos "cardeais"da Feb.A não compreensão clara do que Kardec nos deixou codificado na doutrina,se deve á imperfeição humana,á atavismos católico-protestantes e a interesses subalternos que ainda governam a maioria dos Espíritas,além da falta de estudo sistematizado das obras básicas.Herculano Pires classificava o Espiritismo como o grande desconhecido,assim ele ainda permanece para grande parte dos espíritas.Mas tenhamos calma e serenidade;um dia todos compreenderão a Doutrina espírita como Kardec a codificou,e assim serão os verdadeiros espíritas de que as obras básicas nos falam.

    ResponderExcluir