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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Considerações sobre a Reencarnação


Por Jaci Régis

A Lei divina não cogita de ética ou moral. Ou seja, Lei Natural não é uma lei moral.

A ética e a moral são estágios criados a partir da racionalidade.

Nos estágios pré-humanos da vida terrena, o princípio da sobrevivência determina o comportamento, sem considerações de reciprocidade. Apenas o treinamento dos fatores que, posteriormente, comporão o comportamento do ser racional.

Na visão evolucionista, o princípio inteligente conhece nos conflitos da experiência que define o seu processo de desenvolvimento, a reciprocidade natural entre ação e reação, nos campos das relações de sobrevivência. Depois, no desencadeamento das mutações, ele sofrerá as consequências do choque da convivência e inscreverá na sua mente perene os rigores das respostas. A decorrência será a estruturação dos valores que se chamarão depois de “ética”, ou seja, a definição básica do certo e errado, bem e mal.

Já a moral é estabelecida pela autoridade, dentro de padrões criados pela observância das necessidades de manter um relativo equilíbrio nas relações humanas no círculo em que se desenvolvem, e também para garantir o poder.

Aí nascem as noções sobre o poder sobrenatural, a delegação de poderes a missionários e profetas, com as noções da culpa e da punição.

Ainda que esses sejam elementos historicamente encontrados nas civilizações de todos os tempos, constituem uma moral relativamente mutável, adaptável. 

Não se pode confundir a reciprocidade da lei de causa e efeito com a polarização entre culpa e castigo, que numa serie infinita limitaria drasticamente o desenvolvimento do ser espiritual, perdido na circularidade permanente.

Somente essa perspectiva poderá dissolver a aparente contradição entre o livre-arbítrio como instrumento de expansão e evolução do ser espiritual e a Lei. Isto é, não existem limites morais na Lei. Os limites não estão fora, mas delineados e funcionam inevitavelmente dentro do universo pessoal, nos mecanismo do processo de causa e efeito. 

A lei de causa e efeito é o princípio fundamental de balanceamento e reajuste constante da rota desdobrada pelo ser, na trilha evolutiva. Esse jogo permite a construção e reconstrução do equilíbrio interno.

Não se confunde, todavia, a questão da culpa como conseqüência da infrigência dos valores elegidos pessoal ou coletivamente, com o instituto da culpa como ação divina, resultado de um julgamento exterior. A pena de Talião é expediente que o próprio ser promove nos trâmites da culpa e da reparação.

A própria Lei Natural ou divina estabelece os mecanismos de manutenção do equilíbrio, definido como fator de balanceamento dos fatores concorrentes, visando o objetivo de manutenção e expansão positiva do conjunto.

O processo evolutivo do ser é instável porquanto ele estagia no nível de imperfeição natural em constante mutação, gerando desequilíbrio que, na reciprocidade da lei de causa e efeito, promove o equilíbrio, seja internamente, seja na relação com o outro, com o ambiente.

O livre-arbítrio, essa liberdade essencial, poderia levar à anarquia incontrolável, não estivessem gravados na consciência os parâmetros da Lei, construídos no conflito existencial.

Na trajetória evolutiva do ser espiritual, os fatores externos provocam repercussões que mobilizam suas potencialidades, reestruturando níveis mentais e motivações. Esses confrontos causam dor e sofrimentos que produzem situações penosas e insatisfatórias. 

O equilíbrio é a felicidade ou a condição de satisfação e compensação do ser, ou se quisermos, podemos chamar de Eros. 

A infelicidade é a quebra do equilíbrio com a criação de estados de desconforto e desintegração mental, ou se quisermos, podemos chamar de Morte ou Tanatos.

O interesse de preservação, ou instinto de conservação, que se instala no ser desde o início, e a necessidade que lhe é inerente de participar de relações compensatórias com semelhantes, são as forças propulsoras que o movem para a procura da homeostase. 

A “inscrição na consciência” dos valores da Lei se dá, como se viu, na própria vivência dos conflitos e pelo desejo de preservação do ser e constitui, no tempo, os fundamentos da ética, considerada como o fator que estabelece o julgamento dos fatores para a persistência do ser. 

No período humano, a ética e a moral se expressam, inicialmente, com o nascimento dos tabus, dos medos diante dos fatores naturais, nos mistérios do nascimento e da morte, e apelação para as forças sobrenaturais, no interesse da preservação pessoal e grupal.

Assim, como as forças do universo energético seguem um curso aparentemente ao acaso, mas permanecem dentro do fluxo orientador da Lei, o ser espiritual também parece seguir uma forma anárquica, sem limitações. Todavia, através dos mecanismos da Lei instalados pela experiência na mente do Espírito, o equilíbrio se faz invariável, mas não imediato.

Na dinâmica do processo, o que, dentro da visão sensorial sugere o caos, o acaso, na verdade, caminha para a busca do equilíbrio. A questão, nessa visão sensorial, se complica pela variável do tempo, cronológico ou sensível. 

No modelo que estamos pensando, a evolução do ser inteligente só tem sentido se considerarmos a vida dele como uma estrutura imortal, dotado de um sentido natural de autopreservação, de imortalidade, realizada atemporalmente, da mesma forma que as mutações do mundo energético se impõem como condição de efetivação.

Nesse modelo não cabe o acaso, nem a vacuidade de intenções, pois há sempre a intenção de alcançar o patamar da satisfação, tanto na realização dos fenômenos biológicos e físicos, como nos fenômenos da consciência.

Não fora assim e o universo energético e a vida inteligente não teriam sido possíveis.

Não se trata de nenhuma imposição moral ou retaliação divina. O que se grava na consciência, quer dizer na memória profunda do Espírito, é os resultados das contradições vividas a partir do exercício vital, dentro do básico princípio de causa e efeito. Essa “consciência” retrata a realidade das reações aos atos e ações realizadas que, ao longo da experiência, estabelecem uma reação automática, condicionante, a motivando e ajuste imprescindível para o equilíbrio do ser, no conflito do conforto e desconforto existencial.

Não estamos esquecendo o valor das interações, dos conflitos entre as pessoas e a influência dos mortos na vida dos vivos. Nem a influência de entidades mais equilibradas na indução de encontros e respostas. Estamos enfatizando a auto-evolução, a escolha e principio do certo e do errado na decisão pessoal e coletiva.

Artigo recuperado e publicado no Jornal Abertura em agosto de 2012

Fonte: Instituto Cultural Kardecista de Santos - http://icksantos.blogspot.com.br/2012/11/consideracoes-sobre-reencarnacao-jaci.html?spref=fb

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Identidade do Espiritismo no Século 21


Por Jaci Régis

Allan Kardec elaborou o Espiritismo dentro da cultura cristã.

Formatou a doutrina dentro de três parâmetros, compatíveis com o modelo cristão: 

1. O mundo é de provas e expiações;

2. Os habitantes são espíritos imperfeitos que expiam suas faltas no processo de vidas sucessivas;

3. Deus se manifestou em três grandes momentos para a salvação moral humanidade: nos dez mandamentos de Moisés, nas palavras de Jesus Cristo e, finalmente, pela manifestação dos espíritos. 

São as três revelações da Lei de Deus.

Dentro desses parâmetros, aceitou que Jesus Cristo trouxe a verdade possível e que o Espiritismo completaria a verdade atual. 

A trajetória de Kardec é sinuosa.

Queria que o Espiritismo fosse uma ciência. Mas criou uma religião, sem querer que fosse religião.

Na verdade, agiu como equilibrista da razão e da fé.

Todavia, aceitou que o motivo central do Espiritismo era restaurar o cristianismo e implantar no mundo o Reino de Deus, utopia evangélica que está na base das aspirações místicas e irreais da humanidade ocidental, cristã.

Isso levou à afirmação do Espiritismo como o Consolador Prometido, representava também tacitamente a certeza de que Jesus Cristo era a verdade e toda a verdade teria vertido pela sua boca. Esse Consolador simbolizaria a vinda do Senhor ao mundo, completaria todas as verdades e ficaria conosco para sempre. Era a expressão da ilusão de que, brevemente, por obra divina, haveria modificações espetaculares na face da Terra.

Surgiria um reino de paz, de alegria e de fraternidade.

Era a implantação do Reino de Deus no mundo. Que mundo?

Sem qualquer demérito para as lições inigualáveis do Nazareno, estamos num tempo em que as exclusividades e as verdades absolutas não têm lugar.

N’O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec afirmou que o Espiritismo não vinha destruir a lei cristã, como o Cristo não teria destruído a lei mosaica. Essa sequência teológica provinha do sentimento de uma intervenção direta de Deus ou Jesus no encaminhamento das soluções e no desenvolvimento moral das civilizações.

O céu comandando a Terra.

Jesus Cristo, o rei, governando o mundo.

Mas o tempo da era cristã, no seu aspecto institucional, político e religioso estava no fim.

Desenvolver a ideia espírita dentro do caldo de cultura cristã foi um paradoxo. Pois o Espiritismo na sua estrutura básica é a negação do cristianismo. Consequentemente, tornou o Espiritismo prisioneiro da promessa da vinda do reino. Kardec, então, elaborou seu pensamento tentando encontrar justificativas e argumentos para as afirmações teológicas dos profetas e messias.

Seria diminuir seu gênio reduzir sua obra a essa análise simples.

Pois sua obra é capaz de superar os entraves contextuais e projetar-se para o futuro, porque teve a sabedoria de abrir o caminho para o progresso, para a renovação. De tal forma que o Espiritismo seria capaz de reciclar-se, aceitando as novas ideias, e de mudar o que fosse necessário para não imobilizar-se o que seria — disse — o suicídio da Doutrina.

É baseado nessa extraordinária abertura para a evolução e progresso das ideias que creio ser válido propor uma definição dinâmica para o Espiritismo nos dias atuais.

A DEFINIÇÃO DO ESPIRITISMO

O século 21 desponta como uma incógnita sob a liderança inconteste das ciências duras, coadjuvadas pelas ciências humanas.

Como definir, compreender e projetar o Espiritismo neste século 21?

Neste século, o Espiritismo terá, pelo menos, duas expressões:

1. O Espiritismo Cristão

Com duas versões:

a. Religião Espírita
Atualmente, de modo geral e majoritariamente, o Espiritismo é uma religião cristã, cujos programas e o entendimento remetem-se aos textos evangélicos e aos enunciados do século 19, repetindo as palavras de Allan Kardec, sem atentar para o contexto em que foram ditas.
Os espíritas cristãos são, basicamente, católicos mediúnicos. 

b. Espiritismo Laico-Cristão
Substituiu-se o tríplice aspecto de Ciência Filosofia e Religião, por Ciência, Filosofia e Moral, isto é, a moral cristã. Ambos os movimentos não fazem ciência e não filosofam.

2. Espiritismo Pós-Cristão
A única saída para que o Espiritismo alcance sua originalidade e ofereça uma contribuição genuína para a sociedade é escoimá-lo do enfoque teológico da Igreja. Isto é, ser um Espiritismo Pós-Cristão.
Esse Espiritismo Pós-Cristão não apenas abandonará a retórica e a teologia católica, como se organizará sugestivamente como uma ciência humana.

A CIÊNCIA DA ALMA

Como consequência, o Espiritismo Pós-Cristão se estruturará como a Ciência da Alma, à maneira de uma ciência humana, específica e “sui generis”.

Como Ciência da Alma, o Espiritismo abandona a ilusão de ser uma revelação divina, para ombrear-se, de forma muito especial, com o esforço das ciências humanas que surgiram para entender o ser humano, suas limitações, problemas e futuro, fora dos limites das ciências duras, físicas.

Isto é, uma ciência humana cujo objetivo é explicar o ser humano como uma alma, sua estrutura, sua atuação e sua evolução.

Com isso pode desenvolver um espírito crítico e explorar a realidade essencial do ser humano dentro da lei natural, da naturalidade dos processos evolutivos, através da reencarnação, como uma alma atemporal, imortal e em crescimento, seja no campo intimo seja no campo social.

Como Ciência da Alma, o Espiritismo abandona sua pretensão autárquica de abranger todos os problemas da humanidade, mas apoia-se nos esforços das demais ciências humanas que compõem o leque das realidades e comportamentos das pessoas.

O objetivo maior será introduzir na cultura o sentido sério, basicamente defensável aos postulados puros do Espiritismo. 

Terá que dispor de recursos e meios para provar, insofismavelmente, a imortalidade. O que implicará na renovação do exercício e objetivos da mediunidade, superando a fase meramente moralista e religiosa em que se situa atualmente.

Só a prova da imortalidade será a base de renovação social, humana e do pensamento humano e sustentará as teses da reencarnação e da evolução do Espírito. Numa estrutura compatível com a evolução do conhecimento humano. Como Ciência da Alma, introduzirá a noção de espiritualidade como uma busca natural, imprescindível para o equilíbrio pessoal e social, propondo positivamente o desenvolvimento ético na sociedade em mudança que vivemos.

Ou seja, a Ciência da Alma tentará, por todos os modos, oferecer um tipo de entendimento do ser humano que sempre foi o objeto do Espiritismo, de forma atualizada, dentro de um aspecto que integrará o rigor cientifico, expressão da sensibilidade e do sentimento na análise da realidade da alma humana.

Muitos podem questionar se um Espiritismo Pós-Cristão, a estruturação da Ciência da Alma, pode ser kardecista, dada a crítica e a reelaboração que se faz necessária do trabalho de Allan Kardec, conforme temos provado.

É kardecista na medida em que se apoiará nos alicerces básicos, puros, do pensamento doutrinário, desprezando os acessórios das interpretações e extensões contextualizadas no inicio e no tempo decorrente.

O caráter da Ciência da Alma, como qualquer ciência humana, será essencialmente progressivo, jamais se imobilizando no presente, apoiada somente no que for provado. Assimilará as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas. Pois não quer ser jamais ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de credibilidade.

Fonte: Discurso proferido no II Encontro da Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA-Brasil), realizado de 3 a 6 de setembro de 2010 em Bento Gonçalves-RS.

Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

Retirado do site PENSE - http://viasantos.com/pense/arquivo/1304.html

domingo, 30 de setembro de 2012

Reflexões Kardecistas Sobre o Pecado

Por Jaci Régis

Analisando o comportamento humano deste fim de século, uma onda de perplexidade e medo domina a sociedade. Comparações são inevitáveis. Seria verdadeiro dizer que antigamente era melhor? Que as pessoas eram mais fraternas, mais caridosas, mais cheias de fé, as virtudes capitais do cristianismo? Enfim, houve retrocesso? Parece válido fazer uma digressão histórico-filosófica para entender o processo de mudança que se acelerou tanto neste século 20. Afinal, não há efeito sem causa. 


No início da Idade Média, a Igreja, afirmando obedecer determinações divinas e apoiada no poder temporal, estabeleceu como paradigma para a felicidade pessoal e social, a figura do homem virtuoso e temente a Deus. Por mais de dez séculos sua força foi muito grande e estabeleceu uma consciência individual e coletiva acerca do que era certo e errado. Qualquer desvio, intenção ou impulso contrário ao que foi estabelecido como certo, era pecado. O pecado e o diabo foram armas poderosas, supersticiosas, que também se incorporaram à mente social.

Era preciso mostrar-se virtuoso, sob pena do expurgo social, condenação da Igreja, com punições que incluíam a morte física. Então, as pessoas se organizaram de modo a, pelo menos, aparentar essas virtudes ou recorrer às absolvições. A maioria se acomodava, reprimia impulsos e desejos, considerando, em si mesma, repulsiva a simples ideia de pensar ou ser levada a pensar neles.

A estrutura social foi montada em rígida hierarquização de castas, que foi dito ser natural, estabelecido pela divindade. Por isso, a maioria curvou-se a ela, aceitou seu destino. O convívio familiar refletia o estrato social, de maneira que o pai era o senhor e os filhos, sob certa forma, os servos.

A virtude foi imposta como um fardo pesado, porque se ignorou a realidade pessoal e como mero anteparo aos impulsos, ao desejo. Vencer os impulsos, reprimir o desejo era a meta. A recompensa viria no céu. Ceder aos impulsos e ao desejo era caminho para o inferno. Tudo isso criou um simulacro de virtude, adotado pela sociedade, enquanto no interior de cada pessoa persistia o nebuloso sentido de que a virtude era uma cruz pesada. Frequentemente, contrária à natureza. Isso esclarece porque, cessada a força coercitiva pela falência da autoridade externa, o impulso interior e o desejo do prazer ressurgem muito fortes 

A LIBERAÇÃO TOTAL

A sociedade medieval foi sendo substituída ao longo do tempo. Ventos de liberação, a princípio tímidos, derrubaram as máscaras, desvelando a face da real condição humana. Um após outro, os tabus foram sendo quebrados. As regras morais abandonadas ou questionadas, sem que se colocassem opções válidas.

Os últimos obstáculos foram finalmente derrubados neste século 20, onde duas grandes guerras mundiais mostraram a face do horror, enquanto as populações cresceram, povos se ergueram em busca de identidade, sociedades superaram o jugo colonialista.

A queda do poder regulador das religiões, que impuseram o formato da moral social, deixou milhões sem um guia respeitável e seguro. A segurança que, mal ou bem, agasalhava as almas mais frágeis — e quem não o é — foi-se.   E agora?  Some-se o avanço da ciência, materialista por definição, às ideologias políticas também sem qualquer ligação com a espiritualidade, com o fracasso da religião. O que sobra? Mesmo assim, seria verdadeiro afirmar que, com 6 bilhões de habitantes, nosso planeta azul tem uma população moralmente inferior à da Idade Média ou anteriormente à ela?

Por fim, o grito de liberdade das mulheres no Ocidente (no Oriente virá logo), com a comunicação eletrônica, pelo rádio, televisão, internet, cinema e meios gráficos cada vez mais atrativos tornaram nosso mundo muito diferente, ágil, dinâmico, caótico e problemático. Como se diz, houve a liberação total. Aleatória e emocional, a liberação parece desconhecer limites e joga os incautos num espaço indefinido. O egoísmo, o culto do “eu” surgem como caminho de realização, não sem causar confusões no ser.

Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou recuperar o ar de liberdade, a que, afinal, não estava propriamente acostumada. Como seria de esperar, os mais afoitos ou desequilibrados, vão aos extremos, na vã ansiedade de preencher o vazio com comportamentos exóticos, provocativos e niilistas. O corpo, antigamente desprezado, ocultado, agora é motivo de exploração inédita. Valorizado, adorado, desnudo, é sede de emoções sexuais que entram pelo visual e aquecem a mente, embrulhando mais do que se supõe o precário equilíbrio das almas humanas.

OS SETE PECADOS CAPITAIS

Tanto a Igreja Católica como a Reforma Protestante sempre se utilizaram do pecado e do diabo como formas de coerção e medo. Os sete pecados capitais, que teriam sido propostos por Santo Agostinho, eram apontados como caminhos sem volta para o abismo e a perdição.

A reação moderna foi, justamente, louvar o pecado. Como afirma Roberto Carlos na sua música, “tudo o que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda”. O pecado virou atrativo, gostoso, inevitável. O egoísmo perdeu o disfarce e o que importa é a satisfação do ego. Desvalorizada, pressionada, condenada, a criatura humana ansiou respirar o ar da liberdade.

O corpo, considerado caminho da perdição, lugar dos instintos, antes escondido, velado, foi desnudado, mostrado, endeusado. A sexualidade, ancestralmente reprimida, condenada, virou objeto de consumo. Viva o prazer!  O prazer é o natural. Mas, que prazer? Eis a questão a ser resolvida nos próximos anos...

Por ora, a filosofia mudou. Não se procura o ser, o ser do ser. Não se debruça sobre a natureza do homem, transcendendo o percurso berço-túmulo. A ciência e o materialismo redefiniram o ser humano: não mais o ser com corpo e alma, mas o ser de corpo sem alma. A educação, as diretrizes vivenciais passaram a se basear exclusivamente no aqui e agora, sem transcendência espiritual.

Diariamente, a mídia lança no ar, nos jornais, nas televisões, propagandas e afirmações mentirosas, com o intuito não disfarçado de obter vantagens e mostrar que os mentirosos são espertos, vencedores. Fragrantes diários de mentira estão nos artigos de consumo, com qualidade, peso e preço mentirosos, embalados em caixas e plásticos coloridos, para não citar a natural qualidade geralmente encontradas em políticos, mestres na utilização pessoal da mentira.

Todo o esquema econômico ataca as pessoas, explorando os sete pecados capitais, estabelecidos pela religião. A industrialização infernalizou a vida social. O ser humano foi reduzido à condição de consumidor. A propaganda estimula o consumo, através da exploração dos sete pecados capitais.

Nenhum apelo às virtudes, na forma como sempre as considerou. O Amor foi engolfado pelo sensual, o sexo pelo sexo, sancionando a luxúria. Beber e comer deixam de ser atitudes naturais para se transformarem em formas de realização pessoal, com destaque para as bebidas que mudariam segundo a propaganda, até os pensamentos, exaltando a gula.

A cobiça é colocada como forma de energia pessoal, seja de objetos, de pessoas e situações, na busca de status. Invejar já não é pecado, mas uma forma ativa de gerar promoções pessoais, vencer competições e deixar o outro para trás. A avareza é sustentada como um ato lícito, sendo incensados e admirados os que acumulam milhões, sem considerar a licitude de suas riquezas, apresentados como vitoriosos, mesmo que paguem salários baixos ou desprezando a miséria em torno.

A preguiça ganha notoriedade. Não trabalhar e viver sem esforço é visto como o paraíso. Milhões sonham com favores ou sorte ou aguardam ansiosos a aposentadoria precoce para nada fazer ou são estimulados ao lazer pelo lazer. Playboys e mulheres arrojadas vivendo à toa são mostrados como modelo a ser seguido.

A ira tem seu elogio nas reivindicações nos motins, nas formas agressivas adotadas por pessoas e grupos. Depois da ira de Deus, apregoada por messias e missionários, temos a ira popular, nacionalista ou coletiva, tolerada e estimulada por interesses vários. Falar em vaidade no momento atual é pleonasmo. Tudo gira em torno da beleza mesmo artificial, postiça ou eventual. A modéstia e a simplicidade foram arquivadas como objetos sem uso desejável.

Evidentemente que as modificações no cenário econômico e mesmo, limitadamente, o apelo ao consumo tem um lado positivo, pois o bem-estar é direito de todos. Mas também desafiando o equilíbrio dos mais centrados, estimulado o desequilíbrio latente dos dúbios e abrindo as portas aos descentrados.

A exaltação do ser consumidor confere-lhe o poder. O poder de compra ressalta o valor da pessoa, que dispondo de recursos monetários, usufrui das vantagens do mundo moderno, um inferno de prazeres, oportunidades de gozo e lazer. É como se a humanidade se livrasse de um manto pesado e escuro. Aparentemente tudo pode ser feito, alcançado e é lícito.

Mas, o outro lado da moeda continua existindo, chamando à reflexão e impondo caminhos não desejados. Os agentes desse processo de infernalização social não estão imunes aos ataques de suas próprias necessidades interiores. E, sobretudo, não poderão se esquivar da morte. Enquanto não vem a doença, os males e os problemas psicológicos, todos se julgam acima do bem e do mal.

A REAÇÃO

Enquanto os elementos mais desagregadores da sociedade, através da mídia, principalmente, usufruem, irresponsáveis, o sucesso de suas incursões, produzindo filmes, programas de televisão, editando revistas e jornais, motivando e estimulando comportamento insensatos, atos ilícitos e até criminosos. Enquanto isso a juventude parece muito desarvorada, aderindo a formas destrutivas de vivência, parte dela entregue às drogas, ao álcool e cigarro, sem bandeiras visíveis, uma parte mais responsável pergunta-se: como enfrentar e resolver ou, pelo menos, encaminhar uma maneira de conduzir a vida de maneira menos perigosa e mais produtiva. Alguns chegam a temer o futuro. Mas a história mostra que haverá sempre uma saída, nem sempre a mais satisfatória, mas que, por um determinado tempo, apazigua o ambiente litigioso. Qual será, porém, a solução?

Não podemos profetizar como as soluções se encaminharão. Indicamos “soluções” porque serão plurais. Resultarão da convergência de fatores que se erguerão diante dos conflitos, das descobertas da ciência e das necessidades insuperáveis das pessoas.

■ A Volta da Religião

Uma das formas para enfrentar o desequilíbrio seria a volta do apelo religioso. Além das igrejas tradicionais, outras mais agressivas entram em cena, prometendo o paraíso aos seus adeptos. Entretanto, não oferecem um rumo de libertação. Ao contrário, tentam, de alguma forma, mais sofisticadas e modernas, reviver a repressão, o pecado e o diabo, retendo as mentes no patamar da negação e do medo. Os que se sentem perdidos ou cronicamente inseguros, voltam-se para elas, querendo o apoio dos poderes divinos que as igrejas afirmam representar. A evangelização, afirma-se, é a salvação.
  • Os católicos evangelizam.
  • Os protestantes evangelizam.
  • Os espíritas cristãos evangelizam.

Todos explicam e indicam os evangelhos e vêm em Jesus Cristo, a fonte de toda a verdade, o doador da vida. Evangelizar seria, enfim, o remédio para todos os males. Entretanto, essa evangelização incorre nos mesmos erros antigos. Via de regra, cria crentes, dá uma crença. O crente ouve as preleções e alguns se movem no sentido da caridade, mas a maioria parece acreditar que sua adesão à evangelização representa uma espécie de seguro de vida contra os problemas.

Os protestantes pentecostais são estimulados a acreditar que a crença em Jesus Cristo lhes dará saúde, prosperidade e segurança. Os espíritas cristãos, por sua vez, podem crer que sua adesão à evangelização garantirá a proteção dos bons Espíritos. Os católicos se agasalham sob o manto dos santos, esperando milagres, graças e segurança.

O grande movimento de evangelização parece desenvolver-se dentro de uma visão circular e egoística, criando uma legião de adeptos determinados a se salvar ou obter algum resultado palpável. Pelo menos, não produz imediata influência sobre a população.

■ Apelo à Ética

Também os ateus e materialistas tentam reagir ao estado das coisas, apelando para os valores éticos. Fale-se em ética, mas num sentido estritamente legalista, jurídico, constitucional. O compromisso ético pode ser formal, embora útil, aprisionado aos fatores eventuais da vida terrena, segundo a visão materialista.

■ Solução Política

No quadro caótico — falamos especificamente da realidade brasileira — muitos acreditam que a solução será, antes de tudo, política, isto é, pela melhoria da distribuição da renda, ao acesso amplo e ilimitado à educação, com a criação de empregos, dando condições dignas de habitação, saúde e saneamento à população carente ou marginalizada. 

Na verdade, numa sociedade que exalta o consumo, quem não tem o poder de consumir se sente e é, por isso, excluído. E ninguém aceita ser excluído definitivamente, gerando as tensões e explosões sociais, necessárias para mover a inércia das elites.

Todavia, já tivemos experiências em que se supunha que uma igualdade de classes, uma economia planejada, centralizada e estatal, com eliminação do lucro, seria a solução. E não foi, ainda que tenha obtido algum resultado, à custa do cerceamento da liberdade, perseguição, mutilações e chacinas. Um preço muito alto, para muito pouco. Parece que só na democracia é possível alcançar os resultados desejados, mesmo que, aparentemente, demore mais. Progresso sem liberdade é quimera, é falso.

A ESPIRITUALIZAÇÃO

Entretanto, a solução real só virá com a espiritualização das relações humanas. Parece, à primeira vista, que é uma solução ingênua. Como espiritualizar se as religiões, que se encarregaram da parte espiritual da humanidade, são impotentes ou mantém-se em patamares superados? Apesar disso, somente a visão da natureza espiritual do ser humano dará uma luz no escuro caminho da sociedade contemporânea.

Sem que a visão espiritual da natureza humana prevaleça, as soluções serão precárias e incompletas. Essa visão espiritual, correspondendo à espiritualização da vida, não será produto de religião alguma, mas do amadurecimento e das pesquisas. Na verdade, será o ponto decisivo e moldará o pensamento humano de maneira a transformar a relação entre as pessoa.

A espiritualização é mais do que crer; é dar um sentido humanista, livre e aberto à vida, em que a natureza espiritual da pessoa se sobressairá como agente de mutações profundas. Será baseada na imortalidade e na reencarnação, como elementos decisivos no processo de renovação da sociedade, sempre que representarem uma visão ampla, liberta do processo vivencial e não apenas instrumentos limitados de punição ou expiação moral.

Espiritualizar é transcender o horizonte materialista, sem desprezar a existência ou maldizer a relação humana. Ao contrário, é, sob certa forma, aprimorar o humano, projetando-se para um compromisso dinâmico com a vida.

Nesse sentido, pode-se admitir até o que Allan Kardec preconizava no início da criação do Espiritismo. A espiritualização, dando um novo sentido à existência da pessoa e da vida terrena, não significará, por não ser uma crença, a unanimidade ou a homogeneização psicológica e formas de ver a partir desse núcleo central. Por isso, poderá admitir várias formas de crenças, como visões particulares, conforme as necessidades de pessoas e grupos, que se acomodam ao nível evolutivo de cada um.

Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, março de 2000. Licespe – Santos-SP.

In: Blog Um Olhar Espírita - http://umolharespirita1.blogspot.com.br/2012/09/reflexoes-kardecistas-sobre-o-pecado.html?spref=fb

Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Kardec Foi um Filósofo?

Allan Kardec
Por Jaci Regis
Três questões serão debatidas neste trabalho:

1.) Como conciliar o fato de o Espiritismo se declarar, simultaneamente, uma revelação e uma filosofia;
2.) É possível caracterizar a obra de Kardec como uma obra filosófica?
3.) Como resolver o paradoxo da fé raciocinada?

O objetivo final é provar que o Espiritismo é uma filosofia.

I

No livro “A Gênese”, Allan Kardec afirma que o Espiritismo é uma revelação e procura mostrar o seu caráter. Mas, também, ao longo de sua obra e de forma taxativa, caracteriza-o como uma filosofia.

Devemos, pois, em primeiro lugar, tentar compreender o que sejam filosofia e revelação. Comecemos por filosofia.

Não tem sido fácil definir o que seja filosofia. Entretanto, existe um conceito espontâneo de que a filosofia é uma parte essencial da atividade do homem. Ligada à sabedoria, ao exame e à discussão exaustiva, embora não conclusiva, das causas e dos seres, a filosofia tem sido caracterizada como uma atividade superior do homem, um exercício indispensável ao saber e à certeza.

Historicamente, distinguem-se duas formas de exercício da filosofia: de um lado a socrático-platônica, que exprime uma concepção do eu, isto é, uma autorreflexão do espírito sobre os seus supremos valores teóricos e práticos, sobre os valores do verdadeiro, o bom e o belo. De outro, a aristotélica, que apresenta, antes de tudo, uma concepção do universo. Embora tenha havido uma regularidade pendular entre essas duas concepções, tende-se a uma acumulação, a uma conjugação desses pontos, pois a filosofia é simultaneamente as duas coisas: uma concepção do eu e uma concepção do universo.

Em síntese, pode-se compreender que a filosofia é uma autorreflexão do espírito sobre seu comportamento e, ao mesmo tempo, uma aspiração ao conhecimento das últimas ligações entre as coisas.

Quanto à revelação, analisaremos, ainda que rapidamente, as colocações feitas por Allan Kardec no capítulo I de “A Gênese”, servindo-nos da tradução de Guillon Ribeiro (edição da FEB). Nele, o autor define revelação como “dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida”. Logo, “deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se que há para a Humanidade uma revelação incessante” (item 2). E adiante: “O que de novo ensinam aos homens (os grandes gênios, messias, missionários) quer na ordem física, quer na ordem filosófica, são revelações (grifo de Kardec). “Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão, suscitá-las para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessam os séculos” (item 6). No tocante à revelação religiosa, diz Kardec: “implica a passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame e discussão” (item 7).

Finalmente, quanto ao Espiritismo, afirma Kardec: “é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra”, isto é, dá “a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivemos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte” (item 12).

Kardec coloca o Espiritismo como uma “revelação científica” que é caracterizada por ser “divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”. É uma revelação científica, enfatiza: “por não ser ensino (dos Espíritos) privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida pelo trabalho do homem, da observação aos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações” (item 13 - grifos de Kardec).

Isso fica mais claro ainda quando ele analisa a questão: “qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis?” Nessa aparente fragilidade, o Codificador aponta sua característica básica, ao afirmar que o Espiritismo é fruto da elaboração entre pessoas de dois planos de vida. Os Espíritos propõem, mas os homens concorrem com o seu raciocínio e seu critério, tudo submetem ao cadinho da lógica e do bom senso. Isto é, o homem se beneficia dos conhecimentos especiais que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar do uso da própria razão (item 57).

Esse caráter específico da revelação espírita é, também, uma inovação no campo filosófico, antes dominado apenas pela cogitação a partir de um ponto de observação unilateral, isto é, da busca e da inquietação do homem perante o mistério e as contradições do ser, diante de si mesmo, da existência e do universo. Agora, esse mesmo cogitar é enriquecido pela contribuição de homens que passaram a existir numa dimensão diferente, — os Espíritos — mas dentro da humanidade.

Sendo, em lato senso, urna elaboração da razão humana — encarnada e desencarnada — o Espiritismo é uma reflexão sobre o ser e o universo, abrangendo a totalidade e não se detendo no particular. A palavra “revelação” é, num primeiro sentido, uma contradição nesse quadro e só é aceita por Kardec a partir de uma visão didática, para que a intervenção das inteligências desencarnadas seja compreendida no processo.

II

Poderá a obra de Allan Kardec ser categorizada como filosófica? Ou melhor seria considerá-la uma obra didática? Encontramos no seu transcorrer uma reflexão sobre o ser, o belo, o bom? Há, em seu bojo, cogitações sobre a natureza essencial das coisas, uma visão do universo e das relações últimas entre os objetos? Sim, a resposta é afirmativa.

Entretanto, o fato desses temas serem abordados não significa, necessariamente, que a obra seja filosófica. O que caracteriza esse aspecto é o fato de apresentar uma reflexão, propor soluções e inovar na abordagem de temas que, sendo universais e se constituírem razão da cogitação da inteligência, se enquadrem num quadro amplo da inquietação do homem.

Analisada sob esse ângulo, a obra de Kardec é, em seu conjunto, uma reflexão filosófica. O próprio “O Livro dos Espíritos” é um filosofar dialético entre duas inteligências humanas, reunidas no ato de refletir sobre os fundamentos do ser, do destino e de Deus. Semelhante ao diálogo do Banquete, de Platão, Kardec e o Espírito da Verdade, maieuticamente confabulam num mesmo nível de inquietude. Esse debate dialético não espelha um superior ministrando lições a um inferior. Mas, duas potências do saber dialogam, exprimindo visões específicas que resultam na síntese doutrinária do Espiritismo. A partir desse diálogo, Kardec, seja nos comentários que aduz às questões ou em capítulos inteiros de “O Livro dos Espíritos”, evidencia o tratamento filosófico das ideias.

O que caracteriza, por outro lado, a filosofia kardecista, se assim podemos falar, é a sua praticidade. Marx afirmou que “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se é de transformá-lo”, exigindo a crítica radical, que vai às raízes e à práxis, isto é, à ação revolucionária. Essa tese foi lançada por Marx por volta de 1845, doze anos antes de “O Livro dos Espíritos”. Pode-se dizer que Kardec também realizou, a seu modo, uma filosofia de ação, de pratos, transformadora e revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da vida, do ser e do mundo, inaugurando a visão espírita. E, também, promoveu a elevação dos Espíritos à categoria de seres existentes e não potenciais, ao abrir, por assim dizer, a cortina que separava o homem vivente no plano corpóreo ao homem vivente no plano extrafísico.

A filosofia que Kardec desenvolveu foi discursiva-racional, não considerando a intuição como uma fonte autônoma de conhecimento. Embora reconhecendo a totalidade emocional, volitiva e cognitiva do Espírito, não poderia deixar de cingir-se à razão como juíza do saber. Não nega a intuição como uma das formas de apreensão da realidade. Todavia, “toda intuição tem que legitimar-se perante o tribunal da razão”.

Embora seguindo, sob certos aspectos, um esquema muito ligado às preocupações teológicas, Kardec manteve-se numa linha de equilíbrio racional, definindo, por fim, o Espiritismo como filosofia moral, com o que se libertou das amarras de uma teologia. A reflexão sobre a reencarnação, como instrumento de desenvolvimento das potências do Espírito, define a filosofia espírita, em oposição à teologia.

Na verdade, o esquema kardecista seguiu, em linhas gerais, a própria estrutura do pensamento filosófico da época. Foi a partir do século 19 que as ciências se libertaram definitivamente da filosofia, mudando esta seu campo de atividade e atuação formal.

O didatismo de Kardec não prejudica a sua obra, nem lhe descaracteriza a fundamentação filosófica. Exprime, apenas, uma face da capacidade de comunicação própria do autor, cujo estilo sem adjetivação excessiva, o torna objetivo, desprendido de palavras e formulações tortuosas. Deve-se ter em mente que o professor Rivail mostrou em sua obra — cerca de 21 volumes — um poder de objetividade, de concisão ainda não suficientemente estudado, antecipando-se aos progressos da linguagem atuais tanto da informática, quanto da linguística. O fato de escrever numa linguagem direta, limpa, inova mais uma vez, enriquecendo o conteúdo filosófico.

Se acompanharmos o pensamento kardecista, não apenas nos livros fundamentais, mas ao longo das edições da “Revista Espírita”, haveremos de reconhecer a posição de Kardec como homem prático, jornalista, administrador, pesquisador, orador, líder, polemista, escritor, o que naturalmente não lhe poupava tempo para elucubrações excessivamente teóricas. No espaço de apenas 14 anos escreveu mais de 20 livros, incluindo as edições da “Revista Espírita”, que redigiu sozinho e desenvolveu uma atividade realmente exaustiva. Realizou, todavia, uma teorização sobre os fatos, de modo que não se perdessem os resultados das pesquisas e das observações.

Flammarion chamou-lhe de “Bom Senso Encarnado”, mas negou-lhe o caráter de cientista. Todavia, com o desenvolvimento das ciências humanas, já não se pode negar a Kardec, também, esse título porque realizou, como Bozzano, embora em menor escala, é verdade, um árduo trabalho de pesquisa, observações pessoais e coleta de dados. Com todo esse material, deduziu um conjunto de ideias e fundamentos. Foi filósofo do real, da ação, da prática, apoiando-se em dados experimentais. Deduziu sobre os fundamentos morais do universo — refletindo sobre a natureza do homem, suas dimensões físico-espirituais, o processo evolutivo a que está submetido, sua imortalidade e seu destino. Especulou sobre o absoluto, Deus, como centro de interesse e equilíbrio do Universo.

Mesmo nos livros que numa falsa visão cultural são chamado de “religiosos”, manteve essa postura filosófica. Tanto no “Evangelho Segundo o Espiritismo”, como no “O Céu e o Inferno”, que abordam temas da teologia, comportou-se de maneira coerente com sua visão filosófica e é sob este ângulo que examina, tanto a contribuição de Jesus de Nazaré, que libera dos aspectos místicos, para concentrar-se no conteúdo moral de seu ensino, quanto os aspectos da Justiça Divina, em “O Céu e o Inferno”.

III

Se Allan Kardec estruturou a Doutrina Espírita como uma filosofia moral, porque, contraditoriamente, adotou o tema “Fé raciocinada”? Se, como ele repetidas vezes afirmou, o Espiritismo é uma doutrina positiva, repudiando todo o misticismo, qual o motivo que o teria levado a mencionar a fé como uma condição importante para o homem?

Mostramos que a estrutura filosófica do Espiritismo é discursiva-racional e que abrange tanto uma concepção do ser, como uma concepção do universo e, mais ainda, projeta-se como uma práxis, atuando no mundo para modificá-lo. Trata-se como se vê, de tentativa para sintetizar a angústia humana, convergindo, inevitavelmente, para o campo moral. Ora, as religiões sempre se colocaram como guardiãs da moralidade, embora, quase sempre, decaindo para um moralismo. Kardec não podia negligenciar o fato de que a moralidade é a meta principal do Espiritismo — embora enfocada sob uma visão libertadora. Daí o ter afirmado que o Espiritismo é forte por tocar os pontos principais das religiões: Deus, o espírito e as penas futuras. Chegou mesmo a tentar colocar o Espiritismo como o elo, a aliança entre a ciência e a religião.

E aí se situa a sabedoria da proposta espírita. Não é uma postura inflexível porque é progressiva e isso lhe garante a mobilidade, abrindo-se para compreender as múltiplas formas de expressão do Espírito em sua caminhada evolutiva. E, nessa caminhada, a religião tem sido um fator marcante, embora nem sempre positivo, ao contrário, o que levou Kardec a lamentar que “infelizmente as religiões hão sido sempre instrumentos de dominação” (“A Gênese”, cap. I, item 8).

No domínio da fé, temos uma atitude específica do Espírito. Ela é intuitiva, é a apreensão da totalidade, a germinação da certeza interna, surgida da vivência, dos valores. David Hume, filósofo inglês, definiu-a dessa forma: “a fé é muito mais um ato da parte afetiva de nossa natureza do que de sua parte pensante”.

Ao postular a “fé raciocinada”, Kardec inseria um paradoxo, considerando as bases da filosofia espírita, chamando-nos à reflexão. Definindo essa contradição, Kardec afirma: “fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da humanidade” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, tradução de Guillon Ribeiro - FEB). Quer dizer, ele afirma que a inabalavidade da fé depende da razão, ou seja, que a apreensão intuitiva da totalidade, como uma certeza interna, pode ser falsa, incorrer em erro de interpretação, se não passar pelo crivo da razão. Dessa atitude surge uma nova fé que seria motivadora, totalizadora, porque submetida ao juízo racional.

Dentro dessa perspectiva, o Espiritismo se propõe a aliar a ciência e a religião, mas, todavia, não se reduz nem a uma nem a outra, mas transcende-as. Dialeticamente, aceitando a ciência e a religião como posições reais no conhecimento e vivência humanas, o Espiritismo procura transformá-las. De um lado, sendo ciência do Espírito, completa a ciência convencional cujo objeto é o conhecimento do meio físico como o único concreto e possível. De outro, destruindo o sobrenatural em que a religião se assenta, liberta o homem de um conceito estreito e falacioso da vida, propondo-se como filosofia moral, onde os conceitos morais coexistem com a racionalidade e desataviados dos prejuízos do culto.

Kardec rejeitou o fato de que o homem crer em Deus e orar se caracterizasse como um ato místico. Ao contrário, afirmou ser uma atitude positiva, decorrente da abertura que o Espiritismo, filosoficamente, promove. Logo, a fé que Kardec aborda é, sobretudo, saber, crença baseada na razão. E se estrutura como uma nova postura do homem perante a vida, pois que não nega o impulso da experiência interna na apreensão da totalidade, mas indica o caminho da crítica e da atividade construtiva, para que a fé não continue sendo contemplação e alienação místicas.

IV
Sendo o Espiritismo uma nova visão do homem e do mundo, caracteriza-se como um pensar filosófico, como uma filosofia estruturada na pesquisa do conhecimento, do ser e do universo. Tendo base experimental, seu filosofar é existencial, atua no mundo para modificá-lo. O pensamento kardecista — isto é, espírita — apresenta-se como um sistema de ideias claramente definido e eficientemente deduzido. Essa afirmativa nos leva à conclusão de que o professor Hipollyte Léon Denizard Rivail — Allan Kardec — pode ser conceituado como um autêntico filósofo, na lídima acepção do termo.

Observação: No tocante às definições de filosofia, usamos expressões do livro “Teoria do Conhecimento”, do professor Johannes Hessen, 3a edição - Armênio Amado Editor, Coimbra - Portugal.

Fonte: revista “A Reencarnação”, n º 401 - Ano L - outubro de 1984, órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.
Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

Retirado do site PENSE - http://viasantos.com/pense/arquivo/1359.html

terça-feira, 8 de maio de 2012

Nova Visão dos Princípios Básicos


Por Jaci Régis

Em artigo publicado na edição de setembro de 1999, discutimos a necessidade de atualizar a abordagem dos temas doutrinários. Atualizar a abordagem não tem nada a ver com desmentir ou repelir qualquer dos fundamentos do Espiritismo. E, muito menos, alterar sob qualquer pretexto os textos originais de Kardec. Ao contrário.

Todavia, seja por ignorância ou má-fé, tenta-se constantemente confundir as coisas. Por exemplo, a reação epidérmica contra o artigo de Reinaldo Di Lucia, com o sugestivo título “Ultrapassar Kardec”. Algo semelhante às histéricas reações que nos acusam de quer “tirar Jesus”, simplesmente porque negamos valor ao evangelismo católico-protestante que avassala os centros espíritas em geral.

Vamos demonstrar como é mesmo urgente atualizar a abordagem dos cinco princípios básicos do Espiritismo, se quisermos que ele seja uma opção moderna e positiva no século 21.

A Questão da Nuança

No seu famoso discurso de 1º de novembro de 1868, intitulado “É o Espiritismo uma Religião?”, muito bem estudado por Krishnamurti Carvalho Dias, em O Laço e o Culto, Kardec expõe as dificuldades de definir o caráter do Espiritismo devido as nuanças de sua estrutura, paralelas, mas não confundidas com as religiões.

Kardec faz longa peroração sobre a comunhão do pensamento, que para ele é a base de qualquer assembléia religiosa. Ele fundamenta seu pensamento “religioso” no processo universal da comunhão de idéias. E diz que, afinal, a religião é um laço como prova Krishnamurti, não é um culto. Entretanto, ele não se peja de provocar com a pergunta: É o Espiritismo uma religião? E responde afirmativamente: Sim, em seu aspecto filosófico, ele é uma religião porque se funda sobre os elos da fraternidade e da comunhão do pensamento.. E abaixo rebate: O Espiritismo não é uma religião. E isso porque não há uma palavra que exprimir duas idéias deferentes.

Mais adiante diz em seu discurso: “as reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa. Pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que por isso as tomem por assembléias religiosas. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão é devida à falta de um vocábulo para cada idéia”

Essa nuança perfeitamente clara, para Allan Kardec, não pareceu muito clara, nem foi percebida, talvez porque tenha sido, em parte, muito difícil fazê-lo, diante das pressões culturais. Ou mesmo, talvez, conscientemente ignorada. Não houve um filosofar que fizesse perceber as dificuldades e evitar a aceitação tácita dos rituais e formas de entendimento consagradas no cristianismo. Houve  simplesmente a transposição para os centros de práticas religiosas de igrejas, das quais a maioria veio.

O esforço de atualização deve se concentrar no entendimento dessa nuança, na interface, nesse fio da navalha da verdade, de modo a criar a identidade do Espiritismo, como a pensou Kardec, embora ele mesmo tivesse dificuldades quase intransponíveis para torná-las acessíveis ao entendimento comum .

Deus

Todo o sistema religioso e filosófico da vida terrena está baseado na existência de Deus. Entretanto, não temos condições de compreender a natureza divina e decifrar a contento a forma como ela age.

Não obstante, não há quem, em termos de filosofia espiritualista e de crença religiosa, não pretenda, de alguma forma, tentar explicar Deus.

O Livro dos Espíritos, refletindo a dificuldade dos desencarnados, mesmo de categorias mais elevadas, em fornecer indicações razoáveis sobre a natureza divina, diz apenas que é “a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” e adverte que tentar desvendar seus segredos é penetrar num labirinto, sem saída. E afirma que o que se pode é aceitar que Deus existe.

Não obstante, o próprio Kardec não se furtou de listar uma série de perfeições que necessariamente Deus teria, pois, afirmou que, se não sabemos tudo o que Deus seja, sabemos o não pode deixar de ser.

Dentro daquele parâmetro de nuança, é fácil comprovar que se a teoria espírita nos liberta de idéias ancestrais sobre a divindade, na prática é muito difícil livrar-nos delas.

No filtrar desse suposto entendimento sobre Deus permanecem, explícita ou implicitamente, na consciência doutrinária, idéias semelhantes às das religiões. Kardec menciona que o Deus de Jesus é o Deus do amor e pai, uma reviravolta total sobre o possível entendimento da divindade, concretizada na crença judaica.

No fundo, todavia, permanece a figura do Deus Jeová dos judeus que, como é relatado no Velho Testamento, se imiscuía nos assuntos cotidianos, numa verdadeira promiscuidade com pessoas e profetas. Jeová era um Deus cruel.

Entre nós, diz-se, enfaticamente, que Deus não castiga, nem perdoa. Entretanto, todo o esquema explicativo sobre a vida terrena e mesmo na extra-física, se baseia no processo de culpa e castigo.

A afirmativa do presidente da FEB, que ocupa subjetivamente o papel de Sumo Sacerdote, na novel religião espírita, de que “este orbe de expiações e provas, áspero pela sua própria natureza e pela imperfeição de seus habitantes” mostra como precisamos mudar a forma de encarar a vida e superar a condenação ao planeta e sua população. Decorre disso a utilização da reencarnação como instrumento de punição. E evidencia que Deus pode não castigar, mas cobra e bem cobrado, impondo sofrimento e dor.

Para justificar o sofrimento humano, nas provas e expiações, chega-se a pensar que Deus deixa suas criaturas sofrerem, às vezes horrores, não porque não as ama, mas por amá-las assiste impassível suas dores, que afinal, diz-se, é para próprio bem delas.

Aqui, o pecado original do cristianismo foi substituído pelo pecado originário de outras vidas, de modo que a aparente não presença da divindade é justificada pela necessidade de pagar dívidas perante a contabilidade divina, que como se propala, é implacável, pois cobra ceitil por ceitil.

Quando se ora a Deus, pensa-se nele como um pessoa que está em algum lugar do universo e que dispõe de todos os poderes e que pode, se quiser, atender nossos rogos, salvar-nos do perigo, da doença e da miséria. Como geralmente isso não acontece, o silêncio é mais por temer sua ira do que aceitar a Lei Natural.

O Espiritismo diz que a divindade governa a vida universal, incluindo a das pessoas, pela Lei divina ou natural, que – eis aí uma nuança – não é fria nem apenas racional, mas afetiva e emocional.

Não temos, pois, que rever essas posições em relação a Deus, ainda que sem a veleidade de entendê-lo na sua essência e na operacionalidade?

O Espírito

O Espírito é o ser inteligente do Universo, diz O Livro dos Espíritos. Foi criado pela vontade divina, simples e ignorante e para coadjuvar a obra de Deus.

Os Espíritos, no nosso nível, pertencem à humanidade, estejam encarnados ou desencarnados. São unidades solitárias, que desenvolvem personalidades extremamente singulares. É difícil entender porque desenvolvem instintos e perversões morais, com maior facilidade do que virtudes e atitudes equilibradas.

Afirma-se que isso é decorrente de seu estado evolutivo, mas no julgamento geral, essa dissonância é tida como um defeito que poderia ser superado pela vontade.

Embora dizendo que estamos num plano inferior, não raro exige-se comportamentos superiores.

O Espírito é imortal, isto é, tem em si um mecanismo de permanência, devido à sua natureza específica – talvez energética- que lhe torna imune ao tempo, da forma como conhecemos o tempo e o desgaste do corpo físico.

Entretanto, existe uma certa diferença básica do comportamento e da vivência do Espírito conforme ele está encarnado ou desencarnado.

Quando encarnado, o Espírito ou alma, está constrangida pelo corpo físico. Este, a “matéria”, é um verdadeiro escafrandro para a alma. Estando ligado ao corpo físico, o Espírito se vê tolhido, sua visão é restrita, sua inteligência se abafa, seu passado some simplesmente.

Cada existência terrena é, para o Espírito, o mergulho na zona da neblina e ele deseja ardentemente voltar à sua pátria espiritual (numa espécie de princípio da morte de Freud), para livrar-se do corpo ignóbil e integrar toda a sua potencialidade intelectual e afetiva.

Nada sabemos sobre a natureza do Espírito. Mas existe todo um conjunto de afirmativas sobre sua natureza moral. Em torno de seu modo de estar e agir no mundo, se define o bem e o mal, a felicidade e a infelicidade. O futuro do ser humano se mostra não apenas possível, no aspecto de sua permanência enquanto ser em si mesmo, mas sobretudo como um ser moral, sujeito à Lei Natural.

O mundo extra-físico, habitat do Espírito, é descrito, sonhado, entendido e visto como um lugar de sol e luz, um inferno e um céu ou quase céu, pois para nós o céu está muito longe. Há descrições detalhadas de lugares, organizações, hierarquias e objetivos definidos, mas também uma certa liberalidade na organização de setores malignos. Que influenciam as pessoas que estejam ligadas a eles.

Não temos muito a aprender sobre esse lugar? E, mais ainda, sobre como cada Espírito desenvolve a si mesmo no abrangente e multifáacetário ambiente existencial, no corpo físico e fora dele?

A Mediunidade

A mediunidade é o instrumento de comunicação com os Espíritos. Serve sobretudo para provar a imortalidade.

Os Espíritos são seres humanos desencarnados e compõem uma escala praticamente infinita de valores intelectuais, visão filosófica, religiosa, humana e moral.

Não há médiuns infalíveis.

Todas as comunicações devem passar pelo crivo da razão.

Os Espíritos não têm a verdade. São opiniáticos, possuem visões e fazem análises pessoais.

Esses princípios, estatuídos por Kardec, estão longe de serem acatados e seguidos pelos espíritas. Bem ao contrário.

Certos Espíritos são considerados portadores da verdade. Estão acima de qualquer suspeita ou análise. Muitos médiuns se tornaram infalíveis, são declarados missionários, razão porque o que dizem é tomado como manifestação divina. Duvidar ou questioná-los é heresia. Multiplicaram-se os trabalhos de curas fantásticas, a maioria pouco prováveis. Os Espíritos e seus médiuns são conselheiros, substituem os padres no confessionário ditando diretrizes para as vidas de pessoas.

Dentro desse esquema, abunda uma literatura mediúnica, em nome do Espiritismo, não apenas descartável pela sua natureza pueril, mas porque é desnecessária, pois muitos escritores encarnados são muito melhores, além de pecar, não raro, contra os princípios espíritas.

O médium, em muitos lugares, é o centro do poder. Não temos que atualizar, mudar, renovar esse entendimento da mediunidade?

A Reencarnação

A reencarnação é um estado inerente à evolução. O Espírito encarna porque precisa crescer e não porque pecou. Esse entendimento tão linear é descartado pela maioria que, sintomaticamente, analisa a vida dentro dos mesmos moldes das igrejas, isto é, como um fato puramente moral, ou penalizador.

Existe um falso sentido de que, no nosso nível evolutivo, estar no mundo extra-físico é o sonho dourado do ser. A experiência mostra que estar encarnado é uma condição natural e desejada pela maioria esmagadora, uma vez que a vida terrena, pelas suas peculiaridades, disciplina, canaliza e determina modos de ver, conflitar e construir relações afetivas e desenvolver processos intelectuais.

Muitos, todavia, vêem na reencarnação um instrumento punitivo, procurando até justificar certas deficiências pessoais e dificuldades de relacionamento, com pseudo-problemas do passado.

A Lei Natural estabelece claramente as formas como cada um define e sofre as conseqüências de seus atos, mas dentro de um aspecto extremamente sensível e provedor. Ou seja, a Lei cria condições na infraestrutura pessoal, pela vivência de fatos e atos, capazes de originar uma seqüência de buscas e encontros que resolvam pendências e conflitos.

O Espírito foi criado para o prazer e não para a dor.

A alegria é o estado natural. A dor, uma resposta retificadora.

A vida terrena é um processo revolucionário, no sentido de permitir renovação e evolução. Todavia, dissemina-se a idéia de um planejamento estrito, de modo que ela não passa de uma sucessão de fatos presumíveis e antecipadamente desejados ou impostos, com total desprezo pelo livre-arbítrio.

Na verdade, a encarnação não se reduz a um mero processo de expiação e provas, mas a uma intensa oportunidade de rever, reabilitar e projetar a vida espiritual, entendida como expressão da natureza do ser.

Esses aspectos da reencarnação, dando novo sentido positivo à vida terrena, esperam oportunidade para serem debatidos e incorporados a uma nova visão do Espiritismo.

Artigo de Janeiro/Fevereiro de 2000
Fonte: http://www.espiritnet.com.br/Abertura/Ano2000/novisao.htm