quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Mediunidade – relações horizontais e verticais

Por Dora Incontri

A mediunidade é uma abertura na percepção que temos de nós mesmos e do outro. Bem cultivada, assentada sobre o desenvolvimento de valores morais sólidos, ela nos põe em estado de lucidez permanente. É possível captar melhor quem somos, pelas intuições mais ou menos claras de nosso passado espiritual, pelos insights do nosso eu integral. Sabe-se que a consciência do Espírito fora do corpo é sempre maior que a consciência mergulhada na matéria. Além da possibilidade de comunicarmo-nos com outras mentes, a mediunidade é a abertura para si, o acesso ao próprio eu. Diz J. Herculano Pires: “A mediunidade não é apenas uma comunicação com os Espíritos. Ela é comunicação plena, aberta para as relações sociais e para as relações espirituais. No capítulo destas, figura em destaque, pela importância que assume em nosso comportamento individual e social, a atividade mediúnica interior, em que a essência divina do homem se comunica com sua essência humana. É esse o mais belo ato mediúnico, o fenômeno mais significativo da mediunidade, aquele que mais distintamente nos revela a nossa imortalidade pessoal.” (Pires, J. Herculano. Mediunidade, Vida e Comunicação, São Paulo: Paidéia, 2004, p 121.)

Esse tipo de percepção mais lúcida da existência e da possibilidade de acessarmos — mesmo que na forma de intuição — a bagagem do nosso eu integral, pode ser cultivada, pela elevação de pensamento, pela oração e por um estado mental de alerta e observação. Viver mediunicamente, assim, é estar mais acordado, menos condicionado pelas limitações da matéria.

E nesse sentido, a percepção não aumenta apenas em relação a nós mesmos, mas ao outro, às relações humanas, às circunstâncias da vida. A mediunidade é também a capacidade de captar com maior precisão o tônus vibratório dos que nos cercam (encarnados e desencarnados), conhecer suas intenções, com certo grau de certeza, e enxergar a face espiritual do ser, por trás das máscaras sociais.

O médium bem afinado pode perceber as forças positivas e negativas de um dado ambiente e identificá-las depois de certa análise. Desse modo, pode se situar melhor no labirinto das situações e das pessoas e dispor de mais elementos para atuar corretamente.

Até agora, estamos nos referindo ao plano da intuição e da percepção extra-sensorial, ou seja, à mediunidade usada pelo próprio dono, como instrumento de captação do real. Mas também devemos lembrar a mediunidade ativa, em que Espíritos desencarnados usam do médium, para comunicar-se com os vivos. Então, as relações humanas se estendem mais claramente além das barreiras da carne. O médium é veículo — nunca passivo — do diálogo entre dois mundos.

Nessa ocasião, apresenta-se-lhe uma oportunidade estimulante de entrar numa mente alheia. O ato mediúnico, principalmente o da psicografia ou da psicofonia, é sempre uma união telepática, uma sintonia momentânea de duas inteligências. Ao receber, portanto, um Espírito, obsessor ou iluminado, um sofredor ou um mestre da Espiritualidade, a mente do médium como que se vê apropriada pela mente do desencarnado. Ao final de anos de mediunidade ativa, o médium guardará um arquivo mental fascinante de personalidades — que conheceu mais intimamente. Cada ser é único no universo e a singularidade humana é uma das facetas mais ricas da Criação. E o médium tem o privilégio de vivenciar telepaticamente outras singularidades (que estão acima ou abaixo de seu grau evolutivo), mas todas elas portadoras de experiências e sentimentos únicos.

Se ele bem souber aproveitar esse manancial de estudos psicológicos, ele aumentará sua capacidade de compreender o ser humano e mesmo sua capacidade de amá-lo — pois sempre poderá constatar, mesmo nas consciências mais criminosas, a centelha divina, o germe do amor universal, a ânsia de perfeição, que estão latentes em todos os seres.

Condições éticas da mediunidade

Kardec dedicou um capítulo inteiro do Livro dos Médiuns à questão da “influência moral do médium”, (Cap. XX), estudando as condições éticas, necessárias para a prática mediúnica. É bem verdade que a capacidade mediúnica independe do grau de moralidade do médium. Mas não se dá o mesmo quanto aos resultados e quanto ao uso dessa capacidade.

Dividamos essa questão em três partes:

1) O compromisso sério de auto-aperfeiçoamento do médium e a posse de certos valores morais básicos facilitam a comunicação dos Espíritos superiores e garantem a sua proteção constante, não por uma questão de privilégio, mas por uma afinidade vibratória natural entre os que estão no Bem e o médium que está procurando o Bem. De fato, a própria lucidez para discernir os Espíritos e as situações depende de uma sintonia fina, que só se alcança mediante a elevação de sentimentos e a serenidade existencial. Quem se rende ao orgulho, é facilmente mistificado por Espíritos bajuladores e dominadores. Quem se rende à sensualidade desenfreada procura comparsas no plano espiritual, que lhe acompanhem as preferências. Estamos, por toda parte, buscando as companhias que desejamos, de acordo com nossas atitudes, palavras e pensamentos. Por isso, a moralização do médium é o melhor caminho para que seus acompanhantes espirituais — ou a nuvem de testemunhas, a que se referia Paulo — sejam também moralizados. É evidente que essa moralização está longe de significar a adoção de atitudes de fachada, de voz mansa, humildade pretensiosa e santidade forçada. O médium é um ser humano normal e deve agir com naturalidade e bom senso. Atitude ética é firmeza de princípios e aplicação na própria melhoria e não pretensão à santidade.

2) Não basta a intenção séria, porém. É preciso certo equilíbrio emocional, para que a mediunidade flua como deve, no seu exercício existencial. O médium é invadido diariamente por avalanches de emoções desencontradas, vindas de todas as partes. Pode captar a depressão de alguém, a irritação de outros, a obsessão de terceiros… além do ataque de seus próprios inimigos espirituais, ligados ao seu passado ou adversários gratuitos de sua tarefa. Se ele mesmo não estiver centrado em si, se não possuir um reduto íntimo de serenidade e usar a cada instante as armas da oração e da vigilância, acabará sendo levado de roldão. Por isso, ao mesmo tempo em que a mediunidade propicia o autoconhecimento, é preciso que o médium esteja constantemente analisando a si próprio, para distingüir o que é seu do que vem de fora e saber edificar uma fortaleza interior.

3) O engajamento do médium num processo de auto-educação significa também que ele usará as suas potencialidades psíquicas de forma responsável e benéfica. O Livro dos Médiuns fala em “desejar o bem e repelir o egoísmo e o orgulho”. (Cap. XX, ítem 226, n. 11). Ora, o uso responsável da mediunidade pressupõe o abandono de todo interesse pessoal e isso engloba dinheiro, poder, fama ou mesmo retribuição psíquica e afetiva. É importante frisar esse aspecto, porque a tentação diária a que o médium se vê submetido é muito grande. Dado o atavismo milenar da humanidade de procurar gurus e agarrar-se a pajés, oráculos e ledores de sorte, existe a tendência de se projetar esses anseios de dependência para os médiuns contemporâneos — e alguns se comprazem nisso. Pelo fato de possuírem um conhecimento mais preciso de dadas situações ou pessoas ou mesmo do passado e do futuro, esse conhecimento muitas vezes é usado como meio de manter os outros em dependência psíquica ou em estado de idolatria. O médium e seu cliente entram num jogo de vampirismo mútuo, em que o primeiro se alimenta da adoração servil e o segundo se vicia nas orientações e conselhos para sua vida particular. Portanto, uma relação de poder, em que o orgulho e o egoísmo entram como atores principais. Para se evitar esse tipo de desvirtuamento das relações sociais mediúnicas, propomos alguns cuidados para reflexão dos médiuns e dos espíritas em geral:

  • Nem tudo que se percebe deve ser dito. É preciso considerar as circunstâncias, as pessoas e as situações. O médium pode ajudar com dicas, orações e ações concretas, mas não deve interferir na liberdade alheia.
  • É preciso evitar os laços de dependência. Se observado algum traço de fanatismo ou idolatria entre aqueles que convivem com o médium, alertá-los e chamar atenção para o fato de que ninguém é infalível. Se preciso for, usar de franqueza contundente para afastar a bajulação, ao invés de incentivá-la com acolhimento piegas. Melhor a humildade rude que a vaidade sorridente.
  • Usar a mediunidade sempre em sentido educacional. Através dela, podemos consolar, aliviar, curar, orientar moralmente, mas jamais devemos satisfazer curiosidades, interferir na vida alheia, traçar diretrizes impositivas ou deixar pessoas perplexas, assustadas ou confusas com informações que elas não podem ainda digerir.
  • O médium não deve fazer da mediunidade sua única atividade na vida (mesmo obedecendo à Ética espírita da gratuidade mediúnica), mas deve dedicar-se a várias atividades e desenvolver diversas potencialidades, para afastar-se do fanatismo e ser uma pessoa integral.
  • Se o médium vier a construir uma liderança pessoal num dado ambiente, que essa liderança não seja baseada na mediunidade. Diz O Livro dos Médiuns que “um médium é um instrumento que, como indivíduo, importa muito pouco” (Cap. XX, ítem 226, n. 5). Observe-se que Kardec, na maioria das vezes, nem revelava o nome dos médiuns que atuavam na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Ao contrário, no Brasil, lideranças são construídas com fundamento na mediunidade. O valor do líder deve estar no próprio líder e não no fato de ele servir de intermediário entre dois mundos. Um líder pode ser médium, mas não deveria ser líder por ser médium.
  • É preciso sempre e em tudo conservar a autonomia de julgamento. Os Espíritos podem nos trazer idéias, orientações; os médiuns podem vislumbrar algo por meio de uma percepção extrafísica, mas o julgamento e a ação cabem ao homem encarnado, que está na Terra justamente para desenvolver-se, usando sua liberdade de pensar e de agir e afinal de construir a si mesmo.

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