sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dinâmica das mutações das estruturas mentais

20:04 Posted by Fabiano Vidal , , 3 comments
Por Jaci Régis (*)

PREÂMBULO

Em 1848, Karl Marx e Frederich Engel lançaram, em Paris, o Manifesto do Partido Comunista, com o propósito de inaugurar uma nova fase para a humanidade, redescobrindo o valor da pessoa comum e pretendendo destruir a sociedade burguesa, embora ambos fossem burgueses. Nesse Manifesto eles afirmaram, prenunciando as mudanças radicais que propunham "tudo o que é sólido se desmancha no ar , tudo o que é sarado é profanado e os homens finalmente são levados a enfrentar(...)as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos".

O tempo era de propostas radicais para revolucionar, combater a injustiças, lutar pelo estabelecimento da ditadura do proletariado e uma sociedade sem classes sociais.

Marx criticou os filósofos que interpretavam mas não transformavam a sociedade. Era a filosofia da praxis, da atuação social.

Não importa se o sonho da sociedade comunista tenha aparentemente naufragado, mostrando que não basta uma excelente idéia, mas é preciso que existam pessoas capazes de, ética e eficientemente, colocá-la em prática. O que importa assinalar é que o mundo nunca mais foi igual, depois de Marx.

Em maio de 1855, o prof. Rivail começou uma nova e fascinante virada de sua vida. Diante dos fenômenos mediúnicos afirmou "vislumbrei naqueles fenômenos a chave do problema do passado e do futuro da Humanidade, tão confuso e tão controvertido, a solução daquilo que eu havia buscado toda a minha vida. Era, em suma, uma revolução total nas idéias e nas crenças existente."

Allan Kardec, certamente, não pode ser classificado entre os filósofos mais prestigiados da era moderna, como Kant, Hegel e outros, que desenvolveram o pensamento filosófico com enunciados sobre o idealismo, a crítica da razão, o comportamento, na tentativa de descrever o ser e a razão das coisas.

Entretanto, a partir de princípios muito antigos e mais ou menos difundidos, e sob o amplo relacionamento com os Espíritos, ele elaborou uma doutrina filosófica de praxis. Uma doutrina de transformação moral objetiva, na prática da caridade benevolente e benemerente e no resgate dos princípios de comportamento, da ética, da moral de Jesus de Nazaré, num momento em que as igrejas cristãs davam mostras de exaustão do seu domínio na cultura ocidental.

Sem o viez partidário e ativista do marxismo, Kardec baseou o sucesso de sua doutrina no impacto revolucionário que a comprovação científica da imortalidade produziria sobre a sociedade, com profundas modificações estruturais no pensamento individual e coletivo.

De raciocínio positivista e cartesiano, temperado pelo humanismo pestalozziano, o professor Rivail sonhou e anteviu a vitória do Espiritismo, enquanto produtor de novas estruturas mentais das pessoas, a partir das bases da cultura ocidental.

Passados 143 anos do lançamento da doutrina, certamente a revolução kardecista não aconteceu, mas a semente lançada pelo Espiritismo germinou e germina continuadamente. Foi graças ao seu trabalho que criaram-se condições para o desenvolvimento das pesquisas psíquicas que envolveram sábios e investigadores de renome cultural e científico.

Embora não esteja consolidado na cultura, podemos dizer que o mundo nunca mais foi igual depois de Allan Kardec.

Aliás, Kardec jamais teve a veleidade de produzir a transformação social. Analisando as reformas e revoluções que se sucederiam, dentro do aforismo "os tempos são chegados", ele afirmou que "O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto do que qualquer outra doutrina para secundar o movimento de regeneração, por isso é ele contemporâneo desse movimento"( A Gênese)

Na verdade, Allan Kardec abriu uma nova visão da realidade humana, revelando a existência funcional de uma humanidade espiritual, movendo-se ora no plano extra físico, ora no plano físico, dando novo significado para a vida , livre do misticismo e das fantasias sobre a natureza humana. 

Porque essa será a base da nova sociedade mundial dos próximos séculos. Esta resultará do dinamismo das mutações, num leque de contribuições dos vários setores da cultura, a se entrelaçarem complementarmente numa nova ética – provavelmente uma composição da doutrinas de Jesus de Nazaré, Buda, Confúcio, Maomé e outros tantos semeadores de luzes, de todos os quadrantes. 

Para ajudar na construção desse novo momento é que Kardec quis preparar o Espiritismo. 

2. TRABALHO DE KARDEC

"A princípio, eu só tinha em vista instruir-me. Mais tarde, quando vi que aquelas comunicações um conjunto e tomavam as proporções de uma doutrina, tive a idéia de publicá-las para que todos se instruíssem". Essas palavras de Kardec (Obras Póstumas - Minha Primeira Iniciação no Espiritismo) mostram como ele desenvolveu seu trabalho de elaboração da doutrina espírita.

É verdade que Kardec fez um trabalho solitário e pessoal.

Na biografia publicada na edição de maio de 1869, da Revista Espírita, a primeira não redigida por ele, o biógrafo afirma que "ele era só!....". No discurso à beira do túmulo, Camille Flammarion, disse que ele "despertou rivalidades; fez escola sob uma forma um tanto pessoal..." Na Revista de junho do mesmo ano, está a informação de que "até hoje a Revisa Espírita foi essencialmente obra e criação do sr. Allan Kardec, como aliás todas as obras doutrinárias que ele publicou."

Ele começara a institucionalização do Espiritismo, em torno de sua pessoa, com a publicação da Revista Espírita, em janeiro de 1858 e com a fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em abril do mesmo ano.

Sobre a Sociedade ele escreveu em 1º de janeiro de 1867:"A sociedade de Paris foi um foco permanente de intrigas urdidas por aqueles que se diziam meus partidários e que, agradando-me na frente, me ultrajavam pelas costas".

Comentando sua decisão de editar a Revista Espírita e tendo de fazê-lo sozinho e por sua conta ele disse "Reconheci mais tarde que tinha sido uma felicidade eu não haver encontrado financiador, porque fiquei mais independente, ao passo que um estranho poderia ter querido impor-me suas idéias e sua vontade, entravando-me o andamento do trabalho. Sozinho não tinha que prestar contas a ninguém por mais pesada que fosse minha tarefa, com o trabalho".

Assinalo esses fatos para que entendamos como surgiu a doutrina e o projeto que seu fundador tinha para seu desenvolvimento e consolidação.

3. PARADOXOS E NUANCES

É também verdade que Kardec teve dificuldade para explicitar claramente seu pensamento, não por falta de talento, mas de linguagem adequada.

Embora objetivo, o pensamento espírita que Allan Kardec desenvolveu, de modo algum é simplista. Ao contrário. Exige reflexão e não adesão de crença.

Mas, ao se tornar uma doutrina de fé raciocinada, o Espiritismo lançou seu primeiro paradoxo, pois quando se racionaliza para ser verdadeira, a fé já extrapola o conceito intuitivo que a define, cuja sentença mais apropriada é sem dúvida a "crê ainda que absurdo", pois a fé, enquanto fé não procura razões.

Da mesma forma, a sutileza das interfaces de pensamento são constantes no Espiritismo de Allan Kardec, como na frase abaixo, tirada do discurso de 2 de novembro de 1868: 

"as reuniões espíritas devem ser feitas religiosamente, sem que se tome, por isso, 

como assembléias religiosas".

Eis aí uma questão da Lógica. Se as sessões devem ser feitas religiosamente, logo, diria a lógica, são reuniões religiosas. Mas Kardec diz que não e que a nuança é bem caracterizada.

Fazemos essas ponderações para mostrar que para entender e seguir o pensamento espírita é necessário tirocínio e estrutura mental capaz de perceber as nuances, viajar na busca de significados específicos, em meio a um mar de palavras e expressões consagradas com sentido muito definido.

4. DIRETRIZES PARA O FUTURO

Na Revista Espírita de dezembro de 1868 Kardec publicou a Constituição do Espiritismo, depois reproduzida em Obras Póstumas. Nela ele estabelece uma série de diretrizes para o futuro da Doutrina. 

O capítulo Dos Cismas, é uma firme diretriz para o futuro do Espiritismo. 

Comentando esse capítulo J. Herculano Pires escreveu o seguinte: "Kardec reafirma, nesse trabalho, todas as posições fundamentais da Doutrina Espírita que  a caracterizam desde o início: uma doutrina aberta , estruturada sobre a tríade científica da observação, da experimentação e da pesquisa, avessa ao dogmatismo e ao misticismo e, portanto, à estagnação, confiante na capacidade humana sempre crescente de conhecer e por isso mesmo infensa também ao dogmatismo materialista."

Eis aí a questão, Kardec confiava na capacidade humana sempre crescente de conhecer . Ou seja, ele previu ou queria um tipo de adepto com a necessidade e a disponibilidade de conhecer, mudar, crescer.

Ele mesmo defrontou-se, durante a elaboração do Espiritismo, com muitas vertentes e linhas de pensamento que seguiam paralelas ao seu trabalho. Por isso, considerando que ele era o fundador da teoria espírita, declarou que tinha o direito de estabelecer as premissas da unidade da Doutrina.  

Vejamos o que ele diz a respeito do caráter evolutivo do Espiritismo.

A AFIRMAÇÃO

"A Doutrina é imperecível, sem dúvida, porque se baseia nas leis  da Natureza  e  porque, melhor  que  qualquer outra corresponde às legítimas aspirações dos homens. "

FICAR DENTRO DE IDÉIAS PRÁTICAS

"Não sair do círculo das idéias  práticas. Se  é exato que a utopia de ontem muitas vezes é a verdade de amanhã, deixemos que o  amanhã  realize  a utopia de ontem, mas não dificultemos  a  Doutrina  com princípios  que  seriam  considerados quimeras e  rejeitados  pelos  homens positivos."

O PROGRAMA

"O  programa da Doutrina só será invariável quanto  aos  princípios que  passaram  a  verdades  comprovadas;  quanto  aos  outros,  ela  só  os admitirá, como  sempre  tem  feito,  a título de  hipóteses  até  que  sejam confirmados.  Se  lhe demonstrarem que está errada em algum ponto,  ela  se modificará nesse ponto."

A RAZÃO

"No  estado de imperfeição de nossos conhecimentos, o que  hoje  nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdade, devido à descoberta de novas leis. Isto acontece na ordem moral como na ordem física. E é  contra esta  eventualidade  que  a  Doutrina  nunca  pode  estar  desprevenida."

O PRINCÍPIO PROGRESSIVO

"O princípio progressivo que inscreveu em seu código será a salvaguarda de sua perpetuidade.  E  sua  unidade será mantida  precisamente  porque  ela  não repousa sobre o princípio da imobilidade. A imobilidade, em lugar de ser uma força, torna-se causa de fraqueza e ruína para os que não seguem o movimento geral. Rompe a unidade, porque os que  desejam ir para a frente separam-se dos que se obstinam em ficar  para trás."

MUDANÇA NO TEMPO CERTO

"Entretanto, embora seguindo o movimento progressista, é mister fazê-lo com prudência e evitar entregar-se às cegas aos devaneios, utopias e  novos sistemas.  Importa fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde e com conhecimento de causa."

AS DIRETRIZES

"Por ela não se deixar embalar por sonhos irrealizáveis no presente, não se segue que deva imobilizar-se. Apoiada exclusivamente em leis naturais, não pode variar mais do que essas leis, mas se uma nova lei for descoberta deve juntar-se aos demais." 

"Não deve fechar-se a  nenhum  progresso, sob pena de suicidar-se. Assimilando  todas  as  idéias reconhecidamente   justas,  de  qualquer  ordem  que  sejam, físicas ou metafísicas, nunca será ultrapassada, e esta é uma das principais garantias de sua perpetuidade." 

Vejamos, em resumo, o que Kardec exige do Espiritismo: 

NÃO IMOBILIZAR-SE  

NÃO SAIR DO CÍRCULO DAS IDÉIAS PRÁTICAS  

NÃO DESDENHAR NENHUM PROGRESSO  

ASSIMILAR TODAS AS IDÉIAS RECONHECIDAMENTE JUSTAS  

SEGUIR O MOVIMENTO PROGRESSISTA COM PRUDÊNCIA PARA EVITAR ENTREGAR-SE ÀS CEGAS AOS DEVANEIOS, UTOPIAS E NOVOS SISTEMAS. IMPORTA FAZE-LO A TEMPO, NEM MUITO CEDO, NEM MUITO TARDE E COM CONHECIMENTO DE CAUSA.  

APOIAR A DESCOBERTA DE NOVAS LEIS TANTO DE ORDEM MORAL QUANTO FÍSICA. 

5. CRÍTICA À PROPOSTA DE KARDEC

Não me deterei no exame dos processos indicados por Kardec para a manutenção da atualidade do Espiritismo. Outros o farão. Meu intuito é analisar a validade e a possibilidade da proposta em si mesma. Isto é, o que significa criar uma doutrina cujas idéias possam evoluir, progredir, negar-se e reafirmar-se?

A proposta de Kardec é um projeto possível ? Será que é possível manter uma disponibilidade mental e existencial capaz de suportar as mudanças?

As diretrizes acima expostas mostram várias facetas do pensamento do fundador da doutrina.

Em primeiro lugar, ao afirmar que a doutrina evoluiria com as idéias reconhecidamente válidas, no campo físico como no moral, ele, de certa forma, desvincula esse progresso da sua anterior afirmativa de que as mudanças dependeriam da confirmação universal dos Espíritos. 

Talvez o amadurecimento de seu convívio diário com os Espíritos e com os espíritas, o tenha convencido de que seria muito difícil universalizar o projeto mediúnico como base essencial do Espiritismo .

Por isso preferiu que a Doutrina se organizasse em núcleos, como espécie de "observatórios do mundo invisível", que produzissem idéias, pesquisas e propostas razoáveis e concretas. Daí olhar o desenvolvimento da ciência, quer dizer de todos os segmentos da cultura, como coadjuvantes ou mesmo produtores do progresso doutrinário. Isso porque percebeu que a velocidade das mudanças logo tornariam algumas proposições senão ultrapassadas, mas deficitárias.

Além disso, acreditou que a cada 25 anos, um quarto de século, haveria tanta mutação no conhecimento humano que a doutrina, em congressos orgânicos, analisaria o resultado das pesquisas e incorporaria as que fossem compatíveis e lastreadas. O espaço de 25 anos seria um período muito bom para que não se precipitassem mutações que não teriam a resistência do tempo ou que a pesquisa não validasse.

Pelos cálculos de Kardec, considerando que a elaboração do Espiritismo por ele proposta foi iniciada em 1857, já teríamos realizado 5 congressos constitutivos.

Essa possibilidade de reunir e debater os princípios doutrinários, humanizava a doutrina e a retirava da tutela total dos Espíritos , mas não desprezava ou descartava a participação deles. Ao contrário, pois os Espíritos são parte essencial da estrutura doutrinária. E isso porque, sendo os princípios do Espiritismo parte da natureza, evoluiriam com o conhecimento mesmo dos fundamentos da natureza, seja pelos desencarnados, seja pelos encarnados.

Daí ser válida a questão que levanto.

Kardec ao propor esse processo de atualização, teria em mente que as gerações de espíritas seriam formadas por pessoas capazes perceber, analisar e adquirir novos conhecimentos, adequá-los à doutrina, sem descaracterizá-la.

Em que tipo de adepto pensava ele?

Exigiu que este fosse suficientemente capaz de não se fossilizar e manter-se dinamicamente a par do progresso. Ou seja, não imaginava pessoas conservadoras, medrosas, sem ousadia.

E eu pergunto, Kardec não teria sido ingênuo? Não teria criado uma impossibilidade?

Vejamos as posições de J. Herculano Pires que, em sua obra Agonia das Religiões, diz, no Capítulo IX, intitulado "Dúvida e Certeza":

"No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade.
Kardec a aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários.
A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar." 

6. O ESPIRITISMO BRASILEIRO

Tudo o que acima foi dito representa o ideal, o Espiritismo projetado por Kardec, mas não é o Espiritismo real, o que existe e influencia as pessoas.

Com a falência do movimento espírita na Europa e com a sua pouca repercussão na América, o Brasil é o lugar onde nominalmente ele floresceu.

Entretanto, desde o início, o movimento que se organizou em torno da doutrina, não resistiu à pressão da cultura brasileira. A criação do jornal Echo D’Além Túmulo, em 1863, por Luiz Olympio Telles de Menezes, na Bahia, mostra claramente essa tendência e a mistura que desde então cercou a doutrina no país.

É difícil imaginar que, tornado uma doutrina popular, a massa que acorreu aos Centros tivesse condições para entender o projeto audacioso que acima mencionei. 

Movidos pelas suas convicções, os iniciadores do movimento espírita brasileiro, esquematizaram o pensamento espírita, simplificando-o para, de certa forma, adequa-lo ao modelo de culpa e castigo do cristianismo. Essa simplificação transformou o Espiritismo numa crença espiritualista baseada na lei de talião, mistificada como lei de causa e efeito, dentro de uma visão estrita e confessional. Todo o movimento se baseou nessa perspectiva de pagamento de dívidas do passado e a reencarnação passou a instrumento de punição divina.

Na verdade, podemos afirmar a existência de um "Espiritismo Brasileiro". Pois o Espiritismo real, que se instalou no Brasil, há de ser diferenciado como uma derivante do Espiritismo kardecista. 

A doutrina propriamente dita, as idéias, ficaram para trás e, no vácuo dessa desistência, infiltraram-se com facilidade os conceitos do catolicismo e modos do protestantismo. Tanto que o livro básico do Espiritismo brasileiro é o Evangelho segundo o Espiritismo, que embora não sendo, como não é, um livro tipicamente religioso, mas uma análise prática de textos esparsos do Novo Testamento, foi tomado como um livro sagrado ou uma substituição espírita dos evangelhos canônicos.

É notório que as diretrizes de Allan Kardec, tanto no projeto 1868 quanto na Constituição, foram desprezadas. O Espiritismo tomou feição de movimento religioso, consolador, provedor de benefícios.

Esse imobilismo impede de ver que não existe uma dicotomia, um confronto entre o ser a divindade, como tem sido apregoado e estabelecido, mas que a criatura humana é parte integrante e inteligente da obra divina.

O Espiritismo brasileiro, na prática, mantém intacta a falsa compreensão que divide a vida entre o profano e o divino, que as religiões de todos os tempos acentuaram como forma de domínio e poder, uma vez que se situaram como intermediárias e provedoras da salvação, e do perdão divino. Para elas tudo de bom provém ou está no Além, lugar de julgamento.

7. ESPIRITISMO BRASILEIRO NÃO É REVOLUCIONÁRIO

Nesse contexto, o Espiritismo deixou de ser uma proposta revolucionária, para conformar-se com o papel de reformador de estruturas arcaicas, trabalhando sobre elas mesmas. Pois a visão espírita ficou muito parecida com a visão cristã comum ao embalar-se com promessas do profetismo, pelas quais a intervenção divina é que muda as coisas, retirando do ser humano a iniciativa e o mérito das transformações sociais e do pensamento.

Por fim, condenará o Espiritismo ao papel de espectador e não de agente ou pelo menos de agente coadjuvante , nas mudanças que se processam diariamente no cenário mundial.

Ao lado de pessoas de excelente capacidade intelectual, principalmente entre a elite de iniciadores, perfilaram-se milhares de criaturas de pouca cultura, sem uma estrutura mental positivamente progressista. 

Mas tanto os intelectuais como os menos intelectuais, uniram-se no discursos evangélico e obscurantista que reduziu, afinal, o Espiritismo a uma religião ou quase religião porque, mesmo sem qualquer justificativa prática, continuaram afirmando-lhe os caracteres filosóficos e científicos.

Basta verificar a história do Espiritismo brasileiro para constatar que ele afastou-se do pensamento de Kardec, para criar um misto de kardecismo e evangelismo, engessando-se numa visão conservadora de homem e de mundo, sem desenvolver um processo dinâmico de entendimento progressivo..

O perfil do movimento e dos adeptos é bem específico.

Diz-se que a maioria "veio pela dor", que é elevada a única forma de redenção dos pecados praticados no passado. Substituiu-se o "pecado orignal"da Igreja, pelo "pecado originário do passado", no mesmo entendimento da Justiça Divina e da vida terrena.

A adepto virou crente. Ao iniciar-se no Espiritismo mantém praticamente sua estrutura mental adquirida nas religiões, pois aqui encontrou modificações apenas pontuais, dada a forma como o ensino e doutrina foram transmitidas e a maneira como as instituições foram criadas.

Uma clara perspectiva desse perfil pode ser encontrada na frase "A vida é mais importante que a verdade" que me foi dita pelo médium Francisco Cândido Xavier, transmitindo, segundo disse, idéia do Espirito André Luiz.

Nesse entendimento, manter a vida, física e mental das pessoa, consola-las, dar-lhes esperanças é muito mais importante do que fazê-las pensar, discutir idéias, recriar imagens e seguir o próprio caminho.

Manteve-se o mesmo sentido da brevidade e do peso da vida terrena, encarada como uma forma de castigo e de exílio.

Todo o esquematismo do Espiritismo brasileiro gira em torno dessa perspectiva para a vida terrena, mantendo o pensamento mágico e a posição de medo e obscurantismo diante da vida e da atuação da Lei divina.

Daí,a exaltação da mediunidade e a elevação dos médiuns à posição de sacerdotes e porta-vozes do divino, numa espécie não consciente de santificação dos mortos e de desprezo pelo esforço humano, uma vez que toda a sabedoria emanaria do Além.

Como no cristianismo, a vida terrena é considerada um "vale de lágrimas" e o que cada um deve fazer é sofrer suas dores, como prêmio divino para a redenção futura. A existência ficou, praticamente, sem outro sentido senão o de ressarcir dívidas, dada a quase eterna indisposição das criaturas para o bem.

Então, quando estamos tratando de atualizar a doutrina, na verdade estamos tentando reencontrar sua estrutura criada e pensada por Allan Kardec. É a partir daí que devemos encetar nosso esforço, o que em relação à maioria esmagadora do espiritismo brasileiro, representa recriar a doutrina.

8. DINÂMICA DAS ESTRUTURAS MENTAIS

Allan Kardec elaborou a Doutrina para um tipo de adepto capaz de mudar, de transformar, de aceitar o novo, sem desestruturar-se.

Uma exigência bastante difícil de ser aceita por um grande número, talvez a maioria das pessoas.

Porque, psicologicamente, as pessoas tendem a se acomodar, a ser conservadoras.

Cada pessoa, direi Espírito, para situar a construção dos conceitos através do tempo e encarnações, vai sedimentando conhecimentos e experiências Essa estrutura mental define a individualidade permanente, cerne, base, fundamento das personalidades que cada um de nós assume nas várias encarnações. E determina o perfil psicológico do ser.

É um processo complexo e desenvolve uma visão particular, um código com o qual o conjunto da vida é decodificado. Cria a própria e específica interpretação dos fatos, das idéias, a partir dessa maneira pessoal de olhar, sentir e perceber fatos e idéias.

As estruturas mentais se tornam, pois, consistentes, como fatores constitucionais do ser e vão sendo consolidadas:

a) pela força dos modelos culturais, insistentemente repetidos e mantidos, seja pela instituição familiar, pela classe social, pelos clãs, sobretudo pela crença religiosa, através processo evolutivo atemporal;

b) por convicções específicas que atendem à visão de mundo que cada um desenvolve por afinidades de afetos (perspectivas, sonhos) ou compensação (medos, angustias, etc.);

c) como forma de manter-se relativamente estável (mesmo na loucura) diante das incertezas naturais ou alucinadas.

Tais estruturas constitucionais, pertencem ao acervo espiritual e podem persistir encarnação após encarnação, com modificações pontuais, até que sejam abaladas por fatores variados.

Então, o abalo é assimilado ou rejeitado produzindo reações contraditórias:

a) às vezes as reações são violentas, agressivas, como recursos de salvaguarda da própria estrutura mental existente, surgindo condutas de confronto como medida de força e inibição da diversidade conceitual. São os choques religiosos, por exemplo, entre facções adversárias.

b) outras vezes, o ser desenvolve desvios conceituais, argumentação falaciosa para sustentar antigas convicções ou, também, pode simplesmente tornar-se indiferente negando-se a perceber os abalos da convicção nela permanecendo acomodado

c) não poucos entregam-se ao desalento e à descrença. Quando esse estágio move-se para uma busca de outras alternativas ou respostas, inicia-se um período de grande conturbação interior.

Abre-se um vazio existencial.

Medos, ansiedades estão na base desse processo de definição existencial. Mesmo nas mentes que possamos considerar razoavelmente sadias, subsiste, também, o medo de mudar.

A angústia do novo provoca um longo período de incertezas. Nem sempre a clareza de raciocínio é fator positivo no processo de mudança. Muitos apenas alcançam novo nível de acomodação mental. Refugiam-se numa determinada crença, seja espiritualista ou materialista e não chegam a elaborar uma nova visão de homem e de mundo.

Porque há uma diferença sensível entre a acomodação e a mudança. A mudança representa a descoberta, um novo caminho, um novo entendimento. A acomodação é uma forma sutil de manter as mesmas posições, com formas e modos meramente exteriores.

Além disso, a incerteza generalizada sobre as razões mais profundas da vida e a inevitabilidade da morte, desenham o quadro final desse complexo.

Mudar é, pois, um processo traumático.

Podemos, figurativamente, ilustrar esse processo na visão de uma árvore frondosa, cheia de folhas verdes no verão, que se desnuda e fica com galhos secos e nus, no outono e inverno, e que novamente refloresce e se enche de folhas verdejantes.

O primeiro momento é o tempo em que a pessoa está confiante e confortável com suas crenças, idéias, seu modo de ser.

O segundo momento é o tempo de transição, da dúvida, do questionamento, do abandono de crenças, idéias, acalentadas e muitas vezes muito sedimentadas.

O terceiro momento representa a recuperação das idéias, das crenças, em novo sentido, prisma e conceito.

Muitos temem o segundo momento, os galhos secos, a nudez das folhas, a exposição da alma ao incerto, à insegurança da transição e permanecem com suas velhas folhas, sem coragem, disposição ou necessidade de atravessar esse outono-inverno , esse trânsito da certeza para a incerteza em busca de novas certezas.

Entretanto, sem essa mutação a árvore fenece e não pode produzir flores e frutos.

Duro é o discurso da mutação, da mobilidade conceitual. 

Transcrevo as linhas de carta que recebi, num momento de transição de nossa vida espírita, de um ex-companheiro de doutrina, dotado de inteligência e trabalhador assíduo do movimento, ao se despedir, ausentando-se da luta que travamos:

A revisão de valores que você tem comandado e que eu, em bem reduzida parte cooperei, ganhou um ritmo para mim acelerado, acima da minha capacidade de apreensão. Em alguns momentos, tudo isso tem me confundido a mente. O que era não é, o que valia não vale mais. Olhar para trás significa auto-acusação. Aí vem o desconforto duro, porque foram muitos anos de empenho, trabalho e crença, que chamamos ideal. E pôr outras coisas nesse espaço não tem sido fácil.

É preciso advertir que essa flexibilidade mental, que se permite examinar as contradições e ouvir as incertezas internas e não desestruturar-se com a queda de crenças, mitos e idéias a que se consagrou durante muito tempo, não tem uma relação objetiva com escolaridade.

Faço esse apontamento porque serão inevitáveis as críticas ao elitismo ou à ironia sobre os "doutores" e outros mecanismos de que se servem intelectuais que, não obstante, combatem a intelectualidade, supondo que os "simples" seriam excluídos, sendo que denominam "simples" os que não possuem condições mínimas de entendimento e, por isso, engrossam as fileiras dos freqüentadores e - pasmem! - de certos dirigentes dos centros espíritas. 

Um pormenor importante nessa elucubração é que não se trata de pessoas "letradas" no sentido eufemístico ou pretensioso. Mas de pessoas capazes de refletir, de pensar e crescer, independente de títulos. É claro que, quando o país luta para livrar-se totalmente do analfabetismo, não seria a doutrina que louvaria a não-cultura.

É uma questão de amadurecimento e de assumir uma nova rota, quando a que se trilha se esgotou. 

Friso isso porque muitos não evoluem, desiludem-se. 

Não crescem, abandonam o caminho. 

Não questionam profundamente; reclamam , mascarando o sofrimento e o medo de mudar.

O princípio do progresso das idéias inclui a negação simbólica para abrir espaço ao debate e à crítica, fertilizando as idéias.

Como afirmei, existe uma tendência à acomodação no processo de aprendizagem. E o progresso no que tange ao pensamento espírita é, sem dúvida, um processo de aprendizagem.

Como diria Mc Lhuan, referindo-se à escola dos tempos de mudança, que o aluno deveria saber aprender, desaprender e reaprender, dada a mutação constante dos fatores.

Na verdade, é preciso abrir um parêntese, para afirmar, segundo meu entendimento, que a mudança de paradigmas é um processo secular, enquanto a mudança dentro dos paradigmas é um processo de mutação constante. Ou seja, só se muda um paradigma quando este esgotou sua capacidade de aceitar a reciclagem das idéias, por estar saturado de obscurantismo ou cristalizado de tal maneira que não possibilita nenhuma forma de questionamento.

Nesse sentido, não creio que os paradigmas estabelecido por Kardec estejam superados, mas que permitem ainda uma reciclagem de linguagem e de sentido, sem perder as ligações originais.

Como, pois, definir o adepto do Espiritismo?

Kardec disse :"Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações" (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XVII, item 4). Embora essa afirmativa tenha sido, quase sempre, entendida sob o aspecto moralista, verificamos que ela caracteriza o espírita como alguém que quer evoluir constantemente, inclusive moralmente. 

Encontramos no O Livro dos Espíritos, uma análise interessante sobre o progresso.

779. O homem tira de si mesmo a energia progressiva ou o progresso não é mais do que o resultado de um ensinamento?

O homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma maneira; é então que os mais adiantados ajudam os outros a progredir, pelo contato social. 

780. O progresso moral segue sempre o progresso intelectual?

É a sua conseqüência, mas não o segue sempre imediatamente.

780-a. Como o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral?

Dando compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher. O desenvolvimento do livre arbítrio segue ao desenvolvimento da inteligência e aumenta a responsabilidade do homem pelos seus atos.

Nesses ensinamentos verificamos como o Espírito, ao longo de sua vida, desenvolve qualidades diferenciadas, retratando as estruturas psicológicas que constrói.

Idéias e sentimentos formam estruturas mentais, que são flexíveis ou inflexíveis, criando bloqueios a serviço da defesa do ser, sempre ameaçado pela incerteza e pelos acontecimentos. 

Lembremo-nos que o ciclo nascimento, vida, morte, repetindo-se ciclicamente, é um processo de incerteza constante, até que o Espírito tenha plena e razoável compreensão de sua natureza e perceba a vida terrena como instrumento de sua ascensão, mas que não o reduz a um organismo.

Isso explica as dificuldades e as repetições dos mesmos sintomas, erros e idéias, vida terrena após vida terrena, porque nascer, viver, morrer, não representam, por si mesmos, rupturas estruturais. São condições necessárias para preparar o Espírito para essas rupturas, sob o impacto de descobertas, abalos de crenças e outros fatores externos que mobilizem motivações internas, único caminho para verdadeiras transformações das estruturas mentais.

Daí, a confirmação de que as mudanças são iniciadas na reelaboração de idéias, timidamente assumidas, para depois se tornarem reais, exigindo uma unidade de tempo. 

Por isso, a diversidade de prontidão para mudar. 

Alguns estão abertos a isso pela assimilação de experiências e porque encontraram um caminho de aplicação da liberdade de pensar e reelaborar. 

Outros, retraem-se. Chegam, mesmo, a considerar novas idéias como sadias, excelentes para seus problemas e incertezas, mas titubeiam, hesitam e, muitas vezes, permanecem acomodados.

Por fim, há os que refutam, no momento em que vivem, qualquer possibilidade de mudar, mantendo inflexíveis suas estruturas e nem mesmo considerando a possibilidade de transformação.

O espírita que Kardec aspirava, precisa ensaiar a liberdade de pensar, suportar o medo da travessia, sem precipitação, mas sem relutância, num ritmo certo, pois as mudanças reais são amadurecidas e consubstanciadas. 

Não é fácil, por vezes, fazê-lo.

Mas é inevitável fazê-lo.

9. CONTUDO, É PRECISO MANTER-SE ATUALIZADO

Quando Galileu Galilei foi obrigado a desmentir-se publicamente sobre o movimento da Terra. Teria dito, entre dentes "mas se move...". Também, diante da realidade do movimento espírita, muitos poderiam crer que o serviço ao próximo, a consolação que o Espiritismo dá, confere-lhe uma autoridade e uma aura de credibilidade que não pode ser mudada, sob pena de frustrar as milhares de pessoas que buscam nele a reposta para seus problemas e dores.

Esse raciocínio é um sofisma que, se aceito, reduziria o Espiritismo, num prazo relativamente curto, a uma seita marginal, alternativa, como muitas que surgem e desaparecem.

Embora a afirmação de que a "a vida é mais importante que a verdade" pareça justa, em termos do cotidiano, ela é inócua e injusta ao longo do tempo. Principalmente se pretender cercear a busca da verdade como não apenas desnecessária, mas como instrumento da vaidade.

O Livro dos Espíritos é claro.

O conhecimento da verdade fertiliza o sentimento. Senão, transformaremos o consolo da doutrina, em apelo à conformação, ao aceitar como determinação divina e, portanto, irrevogável, todos os acontecimentos da vida terrena.

Se não negarmos o sentido punitivo da lei de causa e efeito, acabaremos por nos tornarmos esquematicamente deterministas, sujeitos ao destino e às condições que nos cercam.

A conformação como sintoma de aceitação de que forças mais altas nos dominam, cercearia todo o esforço de progresso, que poderíamos definir como a descoberta de leis naturais desconhecidas e a construção de novas formas de convivência, conforto e bem-estar.

Isso também nos cega diante da realidade. A hanseníase, por exemplo, é doença que persiste nos países subdesenvolvidos e está erradicada dos países desenvolvidos. Para justificar esse atraso, poderíamos usar o velho estratagema de que os Espíritos que aqui reencarnam ainda "precisam" dessa prova, enquanto os que lá encarnam já não necessitam desse aguilhão. A assertiva é um sofisma porque os habitantes dos países desenvolvidos não apresentam um comportamento ético sublimado, nem suas sociedades estão longe do crime, dos erros e da violência.

Nesse, como em outros casos, não precisamos criar uma explicação engenhosa para "salvar" a Justiça Divina. Em primeiro lugar, as condições sanitárias são básicas para o desenvolvimento de certas moléstias. Além disso, não dispomos de todos os elementos para fazer um julgamento realista das modificações do comportamento humano.

Devemos lembrar que coexistem, no fim do século vinte, esplendores científicos, tecnologias de ponta, projetos quase fantásticos para a informática, viagens interplanetárias, estudos adiantados sobre a natureza do universo, com a crença nas grandes cidades e países do primeiro e de todos os mundos, no vudu, na cartomancia, nas adivinhações e exotismos de toda espécie.

Esses segmentos oferecem a fantasia e a magia que milhares de pessoas cultuam no frenesi de resolver seus problemas sérios ou fúteis, através de sortilégios, rituais e práticas primitivas.

O Espiritismo precisa também definir o papel dos Espíritos na Doutrina Espírita. Aliás, Allan Kardec deixou bem clara a variedade dos graus evolutivos dos desencarnados, eliminando o fascínio sobre um suposto domínio ou sabedoria dos "mortos". Como ele, não podemos, sem dúvida, desprezar a participação dos espíritos na atualização e no progresso do Espiritismo. 

Afinal, a doutrina nos abre os horizontes de uma compreensão sem fronteiras entre a vida física e a vida extra física, no meio da qual estão os fenômenos da morte e do nascimento, ciclicamente.

Entretanto, essa comunhão deve ser feita sem deslumbramento e com recíproco respeito e compreensão dos fatores determinantes das estruturas mentais e morais de cada um.

O Espiritismo só tem, pois, um caminho se quiser contribuir para a mudança do processo vivencial humano: dinamizar idéias, pesquisar novos caminhos, ousar na procura de entendimento mais coerente com as idéias da Justiça divina e da própria existência de Deus, atuando positivamente no plano, na vida cotidiana, não apenas das pessoas, mas das coletividades

Kardec estabeleceu a forma dessa atualização que deve ser contínua e constante, sem pressa e sem atraso, no seu tempo, maduramente.

Nem utopias, nem prepotência.

Coerência e integração com a cultura em andamento.

Firmeza de princípios e flexibilidade de entendimento.

Fora disso cairá na repetição. Fechado ao progresso, imobilizando-se, ficará para trás, retendo em seu seio e alimentando suas fantasias, multidões retrógradas, sempre à espera da intervenção do oculto para fazer, por elas, o percurso que inevitavelmente terão de fazer, ainda que perdendo o ritmo e a oportunidade de crescimento.

10. DELIMITAR O CAMPO 

Kardec pretendeu que o espírita tivesse a mente científica.

Explico-me. Não quer dizer que ele desejou que todos os espíritas fossem cientistas. Mas que tivessem a mente como se fosse um deles, ou seja, capaz de aceitar que sempre se pode encontrar novos caminhos, penetrar mais a fundo em todas as coisas.

Um dos males que obstam o desenvolvimento do Espiritismo, é a pressuposição de que ele tem respostas para todas as questões.

Dada a impossibilidade de analisar, com base, as variadas e surpreendentes ações humanas, restou a prepotência de que se tinha um esquema pronto, um manual de respostas acabadas para cada tipo de problema.

Esse estratagema só serve para tumultuar as idéias e dispersar o trabalho de expansão da idéia espírita.

Precisamos lembrar que Kardec enfatizou que era "preciso não sair do círculo das idéias práticas," ou seja, evitar utopias, sonhos e pretensões eufóricas. 

Creio que o primeiro passo para criar adeptos capazes de atender às exigências do fundador da doutrina será delimitar o campo de atuação doutrinária. Quer dizer, escolher os tópicos, conhecimentos, em que a doutrina pode contribuir de maneira ponderável. Os conhecimentos humanos evoluíram de tal forma que o generalista, o que conhece tudo não sobrevive. 

O perigo, quando se defende a abrangência ilimitada do interesse espírita, será o dispersar de energias e abrir campo para afirmações exóticas ou sem fundamentos lógicos e científicos.

Não será mais produtivo aprender, como espíritas, a reflexionar, a filosofar?

Deveríamos, talvez, definir o Espiritismo como uma forma de humanismo, uma filosofia humanista, que se debruça sobre as relações do ser humano consigo mesmo e com o outro. Nesse campo, teremos ampla possibilidade de aprofundar nossos conhecimentos e pesquisas, pois isso envolve a natureza do ser em si mesmo, a comunicação mediúnica e a inserção do Espírito no processo evolutivo, a partir, naturalmente, da imortalidade. 

Recordemos as palavras de Kardec:

O que hoje pode ser verdade amanhã pode ser mentira.
O imobilismo não faz parte do pensamento espírita.
Não rejeitar novas idéias e descobertas.

Para que incorporemos o progresso aos nossos princípios não precisamos e nem devemos rejeitá-los, nem enxertá-los com cientificismos ou misticismos, idéias espiritualistas ou esotéricas. 

(*) Psicólogo Clínico, Presidente do Instituto Cultural Kardecista, de Santos, fundador e diretor do Jornal Abertura, presidente do Conselho Administrativo do Lar Veneranda, escritor, autor dos livros "A Mulher na Dimensão Espírita" (co-autoria), "Amor, Casamento e Família", "Comportamento Espírita", "Uma Nova Visão do Homem e do Mundo", "Caminhos da Liberdade", "Muralhas do Passado", Introdução à Doutrina Kardecista" e "A Delicada Questão do Sexo e do Amor" 

Fonte: http://www.cepainfo.org/index.php?option=com_abook&view=book&catid=7:porto-alegre-2000&id=20:dinamica-das-mutacoes-das-estruturas-mentais&Itemid=3&lang=pt 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Doutrina Espírita e Religião Espírita

Por Maria Ribeiro

As discussões sobre o Espiritismo seguem em todas as páginas dedicadas para este fim, utilizando-se dos atuais recursos que a internet dispõe. Muito diferente dos tempos outros, nos quais as correspondências demoravam dias. As trocas de informações, por exemplo, entre Kardec e os diversos grupos que se formaram não eram tão rápidas . 

Há, entretanto, nesta rapidez uma séria desvantagem: ninguém tem tempo para refletir sobre o que acabou de ler, não há mais aquela degustação das palavras como nos tempos de outrora, em que, sem o compromisso de uma resposta tão imediata, os textos eram lidos e relidos, as ponderações feitas com calma e prudência. 

Acompanhando as páginas pode-se assistir a discussões que muitas vezes chegam ao extremo das indelicadezas, das ofensas pessoais. Opiniões diferentes, uma palavra mal compreendida tem dado ensejo a  discussões muito sérias.

Tudo porque entre os interlocutores não há somente a distância que os quilômetros contabilizam, irremissivelmente, mas também uma máquina fria, que substitui o hálito caloroso do outro, sua verdade do olhar, sua tonalidade de voz.

Aproveitando assim o momento caloroso das discussões, propomos mais uma reflexão sobre o Espiritismo, na certeza de que outras reflexões virão a cada novo avanço do pensamento. 

O Espiritismo (genericamente) é antes de mais nada uma ciência de observação, positiva. Como qualquer outra, embasado na Filosofia que é mãe de todas elas.

O seu objetivo busca priorizar, entretanto, a ética, a moral, valores intrínsecos do Homem, conduzindo-o a investigar sua intimidade e a descobrir-se como Ser perfectível.
Esta ciência dos Espíritos, elaborada que foi pela insígne figura do professor Rivail, vive e sobrevive devido a sua real natureza - Verdade. Não se pode afirmar que toda a Verdade está contida nas revelações feitas a Kardec, mas certamente deve-se afirmar que toda a Verdade que a Humanidade por ora consegue conhecer.

Seja analisada esta passagem Kardequiana:

"Seria fazer uma idéia bem falsa do Espiritismo acreditar que a sua força decorre da prática das manifestações materiais e que, portanto, entravando-se essas manifestações, pode-se minar-lhe as bases. Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso. Na Antiguidade, ele era objeto de estudos misteriosos, cuidadosamente ocultos ao vulgo. Hoje não tem segredos para ninguém; fala uma linguagem clara, sem ambigüidades; nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Ele quer ser compreendido por todos porque chegaram os tempos de se fazer que os homens conheçam a verdade...

O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém se pode dizer seu autor porque ele é tão antigo quanto a Criação; encontra-se por toda parte, em todas as Religiões e mais ainda na Religião Católica, com mais autoridade do que em todas as outras, porque nela se encontram os princípios de todas as manifestações: os Espíritos de todos os graus, suas relações ocultas ou patentes com os homens, os anjos guardiães, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, as visões, as manifestações de todo gênero, as aparições tangíveis. No tocante aos demônios, não são mais do que os Espíritos maus e, salvo a crença de que são eternamente destinados ao mal, enquanto a via do progresso não é interditada aos outros, entre eles não há qualquer outra diferença além do nome.

O que faz a moderna Ciência Espírita? Reúne em um todo o que estava disperso; explica em termos próprios o que só se conhecia em linguagem alegórica; poda tudo aquilo que a superstição e a ignorância haviam criado para deixar somente o que é real e positivo: eis o seu papel. Mas não lhe cabe o papel de fundadora. Ela revela o que existe, coordena mas não cria nada, porque as suas bases estão em todos os tempos e em todos os lugares. Quem, pois, ousaria considerar-se bastante forte para abafá-la sob os sarcasmos e mesmo sob a perseguição? Se a proscreverem num lugar, ela renascerá em outros, no mesmo terreno de que tenha sido banida, porque está na própria Natureza e não é dado ao homem aniquilar uma força da Natureza nem opor o seu veto aos decretos de Deus..." (Conclusão IV - OLE)

Kardec afirma que Espiritismo são os fenômenos mesmos, a realidade natural da vida, e Ciência Espírita, à qual ele se refere como 'moderna', como uma consequência, antes, como uma necessidade daquele, a fim de ser manifestado de maneira formal e oficial ao homem. O termo Doutrina Espírita parece referir-se aos postulados por ora tidos como suficientes para o esclarecimento e educação humanos, estando de acordo com as pesquisas e estudos realizados pela Ciência Espírita.

Do aval científico que o Espiritismo oferece surgiu a Religião Espírita, que se difere da Doutrina Espírita, precisamente por agregar em si crenças de outras correntes espiritualistas, às quais tenta-se adaptar ou revestir com ornamentos filosófico-científicos.

A Religião Espírita já nasceu divorciada do pensamento científico. Nela a lógica, bastas vezes, cede lugar às intermitências, como se fosse possível algo ser num instante e deixar de sê-lo noutro; de acordo com as conveniências do momento. São as incoerências suportadas pelos seus adeptos em favor da adoração de Espíritos e médiuns. Foi criada e é mantida pelos homens esquecidos de fazerem uso da sua grata faculdade de pensar.

Em Religião Espírita assistem-se a reproduções de eventos já vivenciados noutras paragens: Evangelização infantil segue as cartilhas do velho catecismo católico; o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita, a despeito da oportunidade de discussões e troca de ideias, as que prevalecem são as já sedimentadas no movimento espírita - falas de autores encarnados e desencarnados como máximas irremovíveis. As palestras seguem idêntica linha.

De um jeito ou outro, as pessoas que chegam numa Casa Espírita receberão dela a hóstia que as acalentará - uma mensagem "espírita" de auto-ajuda.

Para desmentir esta tese, seria necessário negar o conteúdo de obras que vieram a lume com o propósito obducto de fundar uma religião aproveitando-se do prestígio intelectual do Espiritismo.   

A figura central das religiões cristãs, Jesus, ele mesmo não fundou nenhuma religião. Nascido judeu, que no mundo moderno contam cerca de 14 milhões, o moço de Nazaré sequer mencionou que fossem criadas religiões em seu nome, do que infere-se que nenhuma tem o seu endosso. Ele apenas disse: 

"Onde estiverem reunidos dois ou três em meu nome, aí estarei."

Estabeleceram-se, principalmente com as viagens de Paulo de Tarso, inúmeras congregações pelo mundo oriental, que depois se espalharam ultrapassando-lhe as fronteiras. 

Há controvérsias com relação ao início do surgimento da Igreja Católica: uns apontam que foi fundada por Jesus, hipótese naturalmente refutada; outros dizem que surgiu no Pentecostes, também irrefletida, já que por muitos séculos Roma perseguiu os cristãos; outros ainda garantem que ocorreu por volta do século IV, mais precisamente no ano de 325, o que parece mais lógico. Somente após o Édito de Milão, acordo que garantia tolerância ao cristianismo, no pontificado do papa Melquíades e após o Primeiro Concílio de Nicéia, com Silvestre I, no qual  estava em pauta pela primeira vez a discussão sobre a natureza de Jesus, o que gerou inúmeras controvérsias, foi que a figura de Jesus ficou associada, oportunistamente, à Igreja Romana.

Confundir Jesus com a sua mensagem é atitude normal entre grande parte de adeptos, inclusive de adeptos espíritas. Fato compreensível para a Religião Espírita, mas não para os partidários do puro Espiritismo.

Para o Espiritismo não há nenhuma figura a quem se deva devotar toda a confiança. Todos merecem respeito, mas não há quem o mereça sem exames., compreendendo-se que infalíveis, só os Espíritos Superiores.

A religiosidade aparece como sentimento intrínseco e individual. Religiosidade tem a ver com crescimento espiritual, e não com religião.

Pois bem, a mensagem de Jesus é o parâmetro, sua simplicidade é que tem que ser admirada e se tornar meta para qualquer pessoa, suas orientações sobre amar o próximo, perdoar e orar pelos inimigos é que são o Mestre, e não ele mesmo; Jesus é o frasco de perfume, sua mensagem é a essência do perfume. E é a esta essência que deve ser o objetivo de todos. Esta essência (sua mensagem) exala por todo o mundo através de bocas não cristãs, desde que houve homens capazes de compreendê-la. O Cristo existiu para a Terra de dois mil anos para cá, antes dele a essência, a mensagem já convertia homens fracos e imperfeitos a se tornarem homens melhores.

Ele afirmou: "Chamaste-me mestre e senhor, e dizeis bem, pois eu o sou." Ora, naquele momento em que ele estava encarnado a sua figura física exercia forte impressão ou ainda, autoridade sobre os outros, autoridade, inclusive reconhecida pelos espíritos obsessores a quem ele 'expulsou'. Ele sabia que suas palavras permaneceriam, precisamente pelo apelo renovador que tinham.

Esta auto-intitulação só pode ser reprovada se forem constatados erros de tradução também nesta passagem. 

Associar a figura de Jesus a esta ou aquela religião é o mesmo que denegrir sua imagem, pois ele não veio ao mundo para isso. Ao contrário, ele veio dizer que títulos religiosos não compram o "reino dos céus", mas o coração puro conquista este reino. A imperfeição humana conduziu-O para os altares, mas ninguém O inquiriu se ele gostaria de ter os pés beijados, justo ele que lavou os pés dos seus discípulos.

É bom que ele seja respeitado, que não seja confundido com os homens mercenários e fanáticos, pois como homem foi coerente, soube respeitar as tradições da sua época sem ser omisso. Como Espírito continua inspirando outros capazes de espalhar sua essência por esta humanidade ingrata e orgulhosa, se achando já dona do Saber, quando apenas dá os primeiros passos.

Assim, ao que parece, querem banir com o Cristo do Espiritismo, quando o próprio Codificador lhe dirigia o maior respeito, lhe mensionava com deferência, falando inclusive de um Espiritismo Cristão, ao passo que a Religião Espírita o quer tal qual pintado pelo catolocismo.

Doutrina Espírita e Religião Espírita, definitivamente, não se dialogam, mas nem por isso é necessário se tornarem adversárias, basta que cada uma ocupe seu lugar. O maior problema da nova religião é que suas opiniões, seus postulados e suas máximas são basicamente todos oriundos de Espíritos sem a chancela racionalizada do Codificador, ou seja, Espíritos pulverizaram revelações e noticiários do plano espiritual por toda a parte, sem que houvesse a preocupação de se utilizar os métodos kardequianos para lhes abonar ou descartar. Tudo foi aceito sem precaução, sem ajuizamento, fazendo que estes Espíritos tivessem mais autoridade do que Kardec. 
Ou seja, trata-se de uma pedra angular já torta e, por isso mesmo, frágil.

Surge, então, o pensamento de que Kardec está ultrapassado, também no seio dos ditos espíritas "científicos", portanto estes, apesar de tentar combater os "religiosos", compartilham com eles a mesma ideia, com certeza a mais perigosa. Porque será necessário compreender a fundo a Codificação e aguardar o tempo. Muitos estão convictos de que as complementações doutrinárias advirão ainda nesta geração; mas quem garantiu isso? Isto prova o quanto os vícios humanos tardam para se extinguirem: o imediatismo esteve presente em todos os tempos, vide as narrações bíblicas.

Fazendo um trocadilho, a verdade é que a Doutrina Espírita realiza um monólogo, em que os que a escutam são ainda muito poucos. Basta observar os pareceres dos que se intitulam defensores da verdade, da razão, da racionalidade: Kardec virou um pesquisador, um simples estudioso, que por acaso deu com as mesas girantes. Daí, por acaso ele conhecia o Magnetismo, por acaso ele resolveu perceber que os fenômenos não eram necessariamente magnéticos, por acaso ele publica O Livro dos Espíritos, tudo por acaso. Jesus: uma personagem obscura, do qual a história não se preocupou em registrar, e por isso mesmo não passa de uma ficção. As pessoas não sabem que a história registra o que convém, registra o que ela quer e da maneira que quer. É preciso que elas descubram que o mais verdadeiro da história é justamente o que incomoda e tem que ficar escondido.

Há impasses, inegavelmente, no seio dos adeptos, mas é preciso impedir dissenções que comprometam o trabalho de divulgação doutrinária.

O respeito não pode faltar às diversas religiões, inclusive à Espírita. É preciso que se pense que os erros tem que ser combatidos, os incautos alertados, todos os que agem de má fé tem que ser desmascarados. Mas não serão as ofensas pessoais que atingirão tal fim. Os argumentos frios, ponderados e respeitosos serão melhor tolerados e poderão, à elegância francesa do Codificador, rebater e levar as pessoas ao raciocínio lógico.

Kardec idealizou a unidade da Doutrina Espírita e, se ainda está-se a passos com as divergências, é por que naturalmente não chegou o tempo da maturidade. 

Fonte: Crítica Espírita - http://criticaespirita.blogspot.com/2013/10/doutrina-espirita-e-religiao-espirita.html

[Livro] - Biógrafo de Chico Xavier escreve sobre vida de Kardec

O jornalista Marcel Souto Maior, autor de "As Vidas de Chico Xavier", escreve agora sobre a vida de Allan Kardec, francês que codificou o espiritismo no século 19.

Em "Kardec", título com lançamento previsto para 21 de outubro, Souto Maior procura compreender como um cético notório se transformou em uma referência quando se trata de comunicação espiritual e vida após a morte.

Nascido em 1804, Hippolite-Leon Denizard Rivail, nome de batismo de Kardec, buscava uma explicação racional para uma série de fenômenos ocorridos em uma pequena propriedade no Estado de Nova York, nos EUA, em 1848.

As manifestações --sons cadenciados ouvidos pela família Fox, donos da propriedade-- foram testemunhados por outras pessoas. A investigação resultou na criação da doutrina espírita e rendeu os cinco livros fundamentais para o espiritismo.

Além de "As Vidas de Chico Xavier", livro adaptado para o cinema com o título "Chico Xavier", o autor também assina "Por Trás do Véu de Ísis" e "As Lições de Chico Xavier".

*
"Kardec"
Autor: Marcel Souto Maior
Editora: Record
Páginas: 322

Texto baseado em informações fornecidas pela editora/distribuidora da obra.

Fonte: Folha de São Paulo - http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/2013/09/1346232-biografo-de-chico-xavier-escreve-sobre-vida-de-kardec.shtml

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cristianismo x Espiritismo

Por Eugenio Lara

As relações entre Cristianismo e Espiritismo sempre despertaram controvérsias históricas, desde que este surgiu na França, em 1857. Até hoje, espíritas cristãos, religiosos não se entendem com espíritas laicos e livres-pensadores. Ora, será que o fundador do Espiritismo, Allan Kardec, imaginava os conflitos, cisões e o descompasso que haveria entre os espíritas devido a essas controvérsias? Quais motivos o levaram a interpretar o Cristianismo sob a ótica espírita?

Na “Revista Espírita”, amiúde, Kardec reafirma o caráter científico do Espiritismo, expresso no preâmbulo de “O Que é o Espiritismo” (1860). Até o lançamento de “O Livro dos Médiuns” (1861), é coerente com essa definição, de que o verdadeiro caráter do Espiritismo é o de uma ciência, jamais o de uma religião. 

No entanto, a partir do lançamento de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (1864), sem deixar de sustentar o Espiritismo como ciência de observação, ele dedica-se à leitura hermenêutica e exegética dos evangelhos canônicos e vincula historicamente o Espiritismo à teologia judaico-cristã, colocando-o como a Terceira Revelação, o Consolador Prometido, o Espírito de Verdade que Jesus Cristo prometera enviar após a “Ascensão aos céus”. Kardec chega a admitir, sutilmente, que O Espírito de Verdade seria o próprio Cristo, contrariando o que afirmara em “Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas” (1858), quando revelou que esse espírito teria sido um grande filósofo da Antiguidade.

Não há como negar, portanto, a vinculação do Espiritismo ao Cristianismo, a começar pela terminologia adotada. A tal “questão religiosa” nasce com a Igreja e Roustaing, mas é reafirmada pelo próprio Kardec por sua adesão ao Cristianismo, mesmo tendo negado que o Espiritismo fosse religião em várias oportunidades, principalmente no famoso Discurso de Abertura (1868).

Muitas são as interpretações da postura de Kardec. Há quem imagine que ele fundou uma espécie de Neocristianismo, um Cristianismo em novo formato. Outros entendem que ele fez concessão à Igreja ao escrever aquela série de obras após “O Livro dos Médiuns”. Para muitos, o Espiritismo é a revivescência do Cristianismo, o Cristianismo redivivo.

CONTEXTO HISTÓRICO

Ora, não houve concessão alguma ao Cristianismo, à Igreja, senão o comportamento de Kardec em relação à pressão dos cristãos teria sido outro. Ele não era um sujeito frouxo, inseguro. Basta ver a polêmica que trava com o Abade Chesnel. Por outro lado, é equivocada a tese de que Kardec queria fazer do Espiritismo uma forma arrojada e sofisticada de Cristianismo, de que ele, sem querer querendo, fundou uma nova religião cristã. Essa leitura seria correta, por exemplo, em relação ao Espiritismo Cristão, de Jean-Baptiste Roustaing e à Igreja Mórmon, de Joseph Smith, mas nunca em relação à Doutrina Kardecista. E além do mais, o Espiritismo não adota a Bíblia como a palavra de Deus, sustentáculo da doutrina cristã. Esse fato, por si só, exclui a Doutrina Kardecista do rol das religiões cristãs. O Espiritismo não é um Cristianismo.

Essa questão necessita ser analisada em seu contexto histórico. A atitude de Kardec representa uma resposta à demanda social e cultural de seu tempo. A partir de 1860, ele é estimulado a sair de seu gabinete, em Paris, e viajar por toda a França, Suíça, Bélgica a fim de atender aos apelos dos novos grupos espíritas que surgiam nesses países. Eram grupos formados, em boa parte, por pessoas humildes. Em sua cidade natal, Lyon, por exemplo, um polo industrial equivalente ao nosso atual ABC, Kardec deu de cara com muitos operários, gente simples, desdentada, de mãos calejadas, semianalfabeta. Isso deve ter sido algo inusitado, surpreendente para ele, acostumado a um público com outro perfil, mais elitista, bem mais sofisticado. 

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) era composta por integrantes da elite francesa, da nata da sociedade: intelectuais, magistrados, empresários, médicos, acadêmicos etc. Enquanto que muitos desses novos grupos periféricos possuíam um perfil mais modesto, com outras particularidades e uma influência muito tenaz do Cristianismo, porque formados por pessoas recém-saídas do catolicismo ou que ainda frequentavam a Igreja. A propósito, Kardec achava que o sujeito poderia ser espírita sem deixar de ser católico, sem deixar de ter alguma religião. Essa orientação não é gratuita.

Os livros que escreveu, a partir de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, visam atender à necessidade de se vislumbrar, no próprio Cristianismo, elementos interpretativos fornecidos pelo Espiritismo, a partir não somente da experimentação, do empirismo no campo mediúnico, mas também em sua filosofia, na sua teoria de valores. Ele entendia, inclusive, que o Espiritismo teria a missão de oferecer à Igreja a base empírica para seus dogmas e princípios, de que ele funcionaria como elo, de religação entre a ciência e a religião. 

RELIGIOSO OU RELIGIONÁRIO? 

Oportuno lembrar que no século 19, devido ao avanço econômico, da ciência e dos costumes, as religiões perdem terreno, adeptos e o poder que sempre tiveram, porque são inimigas do progresso, da modernidade e não acompanham as mudanças de seu tempo.

O Espiritismo nasce justamente em pleno surgimento da modernidade, em meio à crise das religiões, particularmente a católica, e procura dar conta de questões onde a religião fracassou, especialmente a cristã, daí o esforço de Kardec em escrever obras que atendessem a essa demanda. Não foi nenhum tipo de concessão e nem houve intenção de se fundar uma nova religião cristã ou de instituir “A Religião”, em Espírito e Verdade. 

Outro aspecto é o fato de que o Espiritismo, apesar de definido por Kardec como filosofia espiritualista, não dialoga com boa parte da tradição filosófica ocidental. Ou seja, a conexão direta do Espiritismo não é com Espinosa, Kant, Hegel etc., mas sim com o humanismo iluminista, o espiritualismo em geral, com a tradição espiritualista francesa, com o “Spiritualism” norte-americano e inglês, com o espiritualismo filosófico (Pierre Leroux, Jean Reynaud, Ephraim Lessing etc.), com os utópicos (Fourier, Cabet, Saint-Simon). Deve-se acrescentar ainda a cultura gaulesa e bretã, céltica, pois estamos na pátria dos celtas gauleses. 

A busca do diálogo com o judaico-cristianismo surge da necessidade cultural, religiosa na França do século 19. O Cristianismo não tinha nesse país a mesma força que na Espanha (daí o Auto de Fé de Barcelona), mas era a religião hegemônica. Se Kardec não fosse homem de prestígio, se não privasse da amizade de Napoleão III e de muitos outros maçons e membros da elite francesa, se não tivesse amigos influentes, a Igreja esmagaria o Espiritismo, que teria abortado logo de início. Ela somente conseguiria seu antigo intento com o infame “Processo dos Espíritas” (1875).

Kardec sabia que haveria divergências, cisões, por isso redigiu o Projeto 1868 e delineou rumos seguros à organização do Espiritismo como movimento social. O Período Religioso, imaginado por ele na sua prospecção cartesiana da propagação espírita, não tem o sentido de laço, de elo, de comunhão entre os espíritas. O religioso aí é no sentido religioso mesmo, sem trocadilho. É religioso com significado de culto. Senão, segundo a acepção que aplicava ao termo religião, ele deveria denominar esse período de Religionário, usando o termo religião no sentido de laço (religion). Vislumbrou que após esse Período Religioso, impregnado pelo Cristianismo, haveria outro, de transição, até o Espiritismo assumir integralmente sua vocação natural de “influência sobre a ordem social”, no Período de Regeneração Social. O escritor espírita Jaci Regis (1932-2010), muito perspicaz, chamou nos anos 1980 esse período intermediário de Espiritização. Fosse hoje, ele o chamaria de Período Pós-Cristão.

A conexão entre Cristianismo e Espiritismo é um tema complexo, exige conhecimento histórico, de filosofia, teologia, antropologia e muitas áreas outras. Não basta somente conhecer a Kardequiana, é preciso situa-la em seu contexto histórico. Muitas polêmicas e divergências poderiam ser amainadas se os espíritas fizessem esse tipo de leitura, ao invés de ficarem garimpando na Kardequiana, aqui e ali, palavras de Allan Kardec sobre essa questão.

Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), é autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita e em edição digital: “Racismo e Espiritismo”; “Milenarismo e Espiritismo”; “Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico”; “Conceito Espírita de Evolução” e “Os Quatro Espíritos de Kardec”. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Fonte: PENSE - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1459.html

domingo, 13 de outubro de 2013

Espíritos em condições medianas - Joseph Brê

Por Allan Kardec

Falecido em 1840 e evocado em Bordeaux, por sua neta, em 1862

O homem honesto segundo Deus ou segundo os homens

1. Caro avô, podeis dizer-me como vos encontrais entre os Espíritos, e me dar alguns detalhes instrutivos para o nosso adiantamento?

- R. Tudo que quiseres, querida criança. Eu expio a minha falta de fé; mas a bondade de Deus é grande: ele leva em conta as circunstâncias. Sofro, não como poderias imaginar, mas pelo pesar de não ter empregado melhor meu tempo aí na Terra.

2. Como não o empregástes bem, uma vez que vivestes sempre honestamente?

- R. Sim, do ponto de vista dos homens; mas há um abismo entre o homem honesto segundo os homens, e o homem honesto segundo Deus. Tu queres instruir-te, querida criança; procurarei demonstrar-te a diferença. Entre vós, é tido por homem honesto aquele que respeita as leis de seu país, respeito flexível para muitos. Honesto é aquele que não prejudica o próximo, tomando-lhe o bem ostensivamente, embora as mais das vezes arranque sem ecrúpulos sua honra, sua felicidade, desde que o código penal, ou a opinião pública não possa atingir o culpado hipócrita. Quando se grava sobre sua pedra tumular as ladaínhas de virtude que se preconiza, julga-se ter pago sua dívida à Humanidade! Que erro! Para ser honesto perante Deus, não basta não ter infringido as leis dos homens, é preciso antes de tudo não ter transgredido as leis divinas. Homem honesto aos olhos de Deus é aquele que, pleno de devotamento e de amor, consagra sua vida ao bem, ao progresso dos seus semelhantes; aquele que, animado de um zelo sem limites, é ativo na vida: ativo para cumprir a tarefa material que lhe é imposta, pois ele deve ensinar a seus irmãos o amor ao trabalho; ativo nas boas obras, pois não deve esquecer que é apenas um servidor ao qual o senhor pedirá contas, um dia, do emprego de seu tempo; ativo em seu objetivo, pois deverá ensinar pelo exemplo o amor do Senhor e do próximo.

O homem honesto aos olhos de Deus deve evitar com cuidado essas palavras mordazes, veneno oculto sob flores, que destrói as reputações e quase sempre mata o homem moral, cobrindo-o de ridículo. O homem honesto segundo Deus, deve ter sempre cerrado o coração ao menor germem de orgulho, de inveja, de ambição. Ele deve ser paciente e brando com aquele que o agride; deve perdoar do fundo de seu coração, sem esforços e sobretudo sem ostentação, a quem quer que o ofenda; deve amar seu Criador em todas as suas criaturas; deve, enfim, colocar em prática esse resumo tão conciso e tão grande dos deveres do homem: amar Deus sobre todas as coisas e seu próximo como a si mesmo.

Eis aí, minha cara criança, mais ou menos o que deve ser o homem honesto perante Deus. Pois bem! Teria eu sido tudo isso? Não. Confesso, sem corar, que faltei a muitos desses deveres; não tive a atividade que o homem deve ter; o esquecimento do Senhor impeliu-me a outros esquecimentos que, por não serem passíveis à lei humana, nem por isso deixam de ser atentatórias à lei de Deus. Sofri muito quando percebi; eis porque espero hoje, mas com a consoladora esperança na bandade de Deus que vê meu arrependimento. Fala, querida criança, repete-o aos que têm a consciência sobrecarregada; que eles cubram suas faltas à força de boas obras, e a misericórdia divina se deterá à superfície; seus olhos paternais contarão as expiações, e sua mão potente apagará as faltas.

Fonte: KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno - Segunda Parte - Exemplos - Capítulo III.

Da equipe IPEAK

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Fenômeno de transfiguração

Por Allan Kardec

O fato que se segue foi extraído de uma carta que em setembro de 1857 recebemos de um dos nossos correspondentes em Saint-Etienne. Depois de falar de várias comunicações de que foi testemunha, ele acrescenta:

“Fato dos mais admiráveis se passa numa das famílias de nossas relações. Das mesas girantes passaram à poltrona que fala; depois um lápis foi fixado ao pé da poltrona e ela indicou a psicografia; praticaram-na durante muito tempo, mais como distração do que como coisa séria. Por fim a escrita designou uma das moças da casa e ordenou que lhe passassem as mãos sobre a cabeça, depois de fazê-la deitar-se. Ela adormeceu quase imediatamente e depois de um certo número de experiências, transfigurou-se. A moça tomava os traços, a voz e os gestos de parentes mortos; dos avós que jamais havia visto e de um irmão falecido há alguns meses. As transfigurações ocorriam sucessivamente na mesma sessão. Ela falava um dialeto que não é o de nossa época, segundo me disseram, pois não conheço o atual nem o outro. O que posso afirmar é que numa sessão onde havia tomado a aparência de seu irmão, vigoroso, folgazão, me deu essa jovem de treze anos um rude aperto de mão.

Há aproximadamente 18 meses a dois anos o fenômeno se repete constantemente e da mesma maneira, com a única diferença que agora se produz natural e espontaneamente, sem imposição de mãos”.

Embora bastante raro, este fenômeno não é excepcional. Já nos falaram de diversos casos semelhantes e nós mesmo testemunhamos algo parecido em sonâmbulos no estado de êxtase, bem como nalguns estáticos que não se encontravam em estado sonambúlico. Por outro lado, é certo que as emoções violentas operam uma mudança na fisionomia, dando-lhe uma expressão completamente diferente daquela do estado normal. Não vemos, também, criaturas cujos traços móveis se prestam, de acordo com a vontade, a modificações que lhes dão a aparência de outras pessoas? Vemos por aí que a rigidez da face não é tal que não possa prestar-se a modificações passageiras mais ou menos profundas. Nada há, pois, de admirar que um fato semelhante possa ocorrer neste caso, quiçá por uma causa independente da vontade.

Eis as respostas que a respeito disto obtivemos de São Luís na sessão da Sociedade no dia 25 de fevereiro último.

1. ─ O caso de transfiguração de que acabamos de falar é verdadeiro?

─ Sim.

2. ─ Nesse fenômeno existe um efeito material?

─ O fenômeno de transfiguração pode dar-se de modo material, a tal ponto que as suas diversas fases poderiam ser reproduzidas em daguerreotipia.

3. ─ Como se produz esse efeito?

─ A transfiguração, como o entendeis, não passa de uma modificação da aparência, uma mudança ou uma alteração dos contornos, que pode ser produzida pela ação do próprio Espírito sobre o seu envoltório ou por uma influência exterior. O corpo nunca muda, mas, por força de uma contração nervosa, reveste aparências diversas.

4. ─ Podem os espectadores ser enganados por uma falsa aparência?

─ Pode também acontecer que o perispírito represente o papel que bem conheceis. No caso citado houve contração nervosa, muito ampliada pela imaginação. Aliás, esse fenômeno é muito raro.

5. ─ O papel do perispírito seria análogo ao que ocorre nos fenômenos de bicorporeidade?

─ Sim.

6. ─ Então nos casos de transfiguração é necessário que haja um desaparecimento do corpo real, de modo que os espectadores não vejam senão o perispírito sob forma diferente?

─ Não propriamente desaparecimento físico, mas oclusão. Entendei-vos sobre os vocábulos.

7. ─ Do que acabais de dizer parece podermos concluir que no fenômeno de transfiguração pode haver dois efeitos: I ─ alteração dos traços do corpo real, por força de uma contração nervosa; II ─ aparência variável do perispírito, tornado visível. É isso mesmo?

─ Certamente.

8. ─ Qual a causa primeira desse fenômeno?

─ A vontade do Espírito.

9. ─ Todos os Espíritos podem produzi-lo?

─ Não. Os Espíritos nem sempre podem fazer o que querem.

10. ─ Como explicar a força anormal dessa moça, transfigurada na pessoa de seu irmão?

─ Não possui o Espírito uma grande força? Aliás, é a do corpo em seu estado normal. 

OBSERVAÇÃO: Este fato nada tem de surpreendente. Muitas vezes vemos pessoas muito fracas, dotadas momentaneamente de uma força prodigiosa, devida a uma superexcitação. 

11. ─ Desde que, no fenômeno de transfiguração, o olho do observador pode ter uma imagem diferente da realidade, dar-se-á o mesmo em certas manifestações físicas? Por exemplo: quando uma mesa se ergue sem contato das mãos e a vemos acima do solo, é realmente a mesa que se desloca?

─ Ainda perguntais?

12. ─ O que a levanta?

─ A força do Espírito. 

OBSERVAÇÃO: Este fenômeno já foi explicado por São Luís e dele tratamos de modo completo nos números de maio e junho de 1858, a propósito da teoria das manifestações físicas. Disseram-nos que neste caso a mesa ou qualquer outro objeto que se move está animado de uma vida factícia momentânea que lhe permite obedecer à vontade do Espírito.

Algumas pessoas quiseram ver no fato uma simples ilusão de óptica que, por uma espécie de miragem, as faria ver uma mesa no espaço, quando realmente ela estava no solo. Se assim fosse, a coisa não seria menos digna de atenção. É curioso como aqueles que querem contestar ou criticar os fenômenos espíritas expliquem-nos por causas que também seriam verdadeiros prodígios e igualmente difíceis de compreender. Mas por que tratar o assunto com tanto desdém? Se a causa que apontam é real, por que não aprofundá-la? O físico procura conhecer a causa do menor movimento da agulha magnética; o químico, da mais ligeira mudança na atração molecular[1]. Por que, então, ver com indiferença fenômenos tão estranhos como esses de que falamos, quer sejam eles consequência de simples desvio do raio visual, quer uma nova aplicação das leis conhecidas? Isto não é lógico.

Certamente não seria impossível que por um efeito de óptica análogo ao que nos faz ver um objeto na água mais alto do que realmente está, por causa da refração dos raios luminosos, uma mesa nos parecesse no espaço quando estivesse no solo. Há, porém, um fato que resolve definitivamente o problema. É quando a mesa cai ruidosamente no chão e se quebra. Isto não parece uma ilusão de óptica.

Voltemos à transfiguração.

Se uma contração muscular pode modificar os traços fisionômicos, não o será senão dentro de certos limites; mas certamente se uma mocinha toma a aparência de um velho, nenhum efeito fisiológico lhe faria criar barba. Então devemos procurar uma causa alhures. Recordando quanto dissemos anteriormente a respeito do papel do perispírito em todos os fenômenos de aparição, mesmo de pessoas vivas, compreender-se-á que aí está a chave do fenômeno de transfiguração. Com efeito, desde que o perispírito pode isolar-se do corpo; que pode tornar-se visível; que, por sua extrema sutileza, pode tomar diversas aparências, conforme a vontade do Espírito, concebe-se sem dificuldade que assim se passe com uma pessoa transfigurada: o corpo continua o mesmo; só o perispírito mudou de aspecto. Mas então, perguntareis, em que se torna o corpo? Por que motivo o observador não vê uma imagem dupla, isto é, de um lado o corpo real e do outro o perispírito transfigurado? Fatos estranhos, dos quais falaremos dentro em pouco, provam que por força da fascinação que, em tais circunstâncias, se opera no observador, o corpo real pode, de alguma sorte, ser oculto pelo perispírito.

O fenômeno que é objeto deste artigo já nos foi comunicado há muito tempo. Se dele ainda não havíamos falado é que não nos propomos transformar a nossa Revista em simples catálogo de fatos destinados a alimentar a curiosidade; uma árida compilação sem apreciação e sem comentários. Nossa tarefa seria então muito fácil, mas nós a levamos mais a sério. Antes de mais nada, dirigimo-nos aos homens de raciocínio; àqueles que como nós querem compreender as coisas, tanto mais que isto é possível. Ora, ensinou-nos a experiência que os fatos, por mais estranhos e multiplicados que sejam, não são elementos de convicção. Quanto mais estranhos forem, menos convincentes serão. Quanto mais extraordinário é um fato, tanto mais anormal se nos afigura e menos dispostos estaremos a acreditar. Queremos ver, e tendo visto, ainda duvidamos; desconfiamos de ilusão e de conivência. Já isto não acontece quando para os fatos encontramos uma causa plausível. Vemos diariamente criaturas que atribuíam os fenômenos espíritas à imaginação e à credulidade cega e que hoje são adeptos fervorosos, precisamente porque agora tais fenômenos não lhes repugnam à razão: explicam-nos, compreendem a sua possibilidade e creem, mesmo sem ter visto.

Tendo que falar de certos fatos, deveríamos esperar que os princípios fundamentais estivessem suficientemente desenvolvidos, a fim de compreendermos as suas causas. Entre esses fatos está a transfiguração. Para nós, o Espiritismo é mais do que uma crença: é uma ciência, e nos sentimos felizes por ver que os nossos leitores nos compreenderam.
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[1] No original lemos attraction musculaire, manifesto erro tipográfico, explicável pela reiteração, no texto, do vocábulo muscular, em relação à alteração da fisionomia. Deveria ser a expressão original attraction moléculaire. Trata-se, por outro lado, de um fenômeno de química geral e não de química orgânica, por isso traduzimos atração molecular. (Nota do tradutor)

Revista Espírita - Março 1859 

Kardec ante a fecundidade mediúnica

Por Sergio Aleixo

Chico Xavier, o maior médium de todos os tempos? Divaldo Franco, seu sucessor? Exageros pueris. Desconhecimento das fontes histórico-doutrinárias do Espiritismo, ou franca discordância em relação às mesmas. Eis aqui uma prova, com a benção da lucidez kardeciana, ao traçar linha divisória entre a eventual excepcionalidade dos fenômenos (sim, providenciais) e a qualidade, porém, dos conteúdos por eles obtidos, coisa bem diversa. Matéria que deveria ser lida e relida pelo público espírita, em parte, assaz deslumbrado, místico e infantil. Nela, Kardec se refere a um jovem médium de que lhe falaram...

Esse jovem é, pois, um médium em toda a acepção da palavra, e dotado, além disso, de múltiplas faculdades, pois, ao mesmo tempo, é médium escrevente, falante, vidente, audiente, mecânico, intuitivo, inspirado, impressionável, sonâmbulo, médico, literato, filósofo, moralista, etc. [...] eis um médium completo, notável [...] Quanto ao valor desses documentos, a julgar pela amostra dos pensamentos ali contidos, certamente deve haver coisas excelentes. Serão todas boas? É uma outra questão. Sob esse aspecto, sua origem não é uma garantia de infalibilidade, considerando-se que os Espíritos, não sendo mais que as almas dos homens, não têm a soberana ciência. [...] Os espíritos fazem parte da humanidade e, até que tenham atingido o ponto culminante da perfeição, para o qual gravitam, estão sujeitos a enganar-se. É por isso que jamais se deve renunciar ao livre-arbítrio e ao raciocínio, mesmo em relação ao que vem do mundo dos espíritos; jamais se deve aceitar seja o que for de olhos fechados e sem o controle severo da lógica. Sem nada prejulgar sobre os documentos em questão, eles poderiam contar coisas boas ou más, verdadeiras ou falsas; por conseguinte, teríamos que fazer uma escolha judiciosa, para a qual os princípios da doutrina podem fornecer úteis indicações.[1]

Mas ai de quem, no movimento espírita brasileiro, fizer o que Kardec fez e aconselhou a fazerem os adeptos; ai de quem ousar aplicar os princípios da doutrina ao que dizem os gurus jesuíticos que assaltaram o kardecismo há décadas, farta munição para certas metralhadoras mediúnicas, máquinas reprográficas das maiores fascinações, que só ridicularizam o legado kardeciano por tabela, pois não o representam verdadeiramente, a despeito de se colocarem à sombra de seu prestígio e respeitabilidade.

Até quando permitiremos tudo isso, calados, em nome, aliás, de uma caridade que, em geral, desconhecemos nas mais comezinhas coisas? Doutrina de gigantes nas mãos de pigmeus, macacos em loja de louças, como disse o saudoso prof. J. Herculano Pires. Perdoem-me e ajam, insurjam-se, pelo amor de seus filhos ao menos.

[1] Revista Espírita. Nov/1867. Impressões de um Médium Inconsciente a Propósito do Romance do Futuro.

Fonte: Ensaios da Hora Extrema - http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013/10/kardec-ante-fecundidade-mediunica.html