sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Os Quatro Evangelhos ", de J. B. Roustaing

Por Gélio Lacerda da Silva

Propusemo-nos analisar partes dos livros de Jean Baptiste Roustaing intitulados "Os Quatro Evangelhos", denominados também "Revelação da Revelação" e "Espiritismo Cristão", editados pela Federação Espírita Brasileira e por ela adotados para estudo, ininterrupto, desde a sua fundação.

Apontar todos os conceitos antidoutrinários dos quatro grossos volumes seria necessário escrever outros tantos livros.

Aos títulos acima se sucedem as palavras "Seguidos dos mandamentos explicados em espírito e verdade pelos Evangelistas assistidos pelos Apóstolos e Moisés". Tradução de Guillon Ribeiro (ex-presidente da FEB). Temos a 5ª edição, 1971.

De início, uma "Nota da Editora" enaltecendo as qualidades intelectuais do tradutor Guillon Ribeiro e informando que ele foi presidente da Federação Espírita Brasileira durante 26 anos consecutivos, desencarnado em 26 de Outubro de 1943.

Na folha seguinte há uma "RECOMENDAÇÃO":

"Para que o leitor melhor possa compreender e assimilarás ensinamentos contidos nesta obra, necessário se torna que primeiramente leia as seguintes obras de Allan Kardec:

"O Livro dos Espíritos"

"O Livros dos Médiuns"

A EDITORA."

Esclareça-se, desde já, que Roustaing transplantou para os seus livros a terminologia espírita dos livros de Kardec, motivo por que a FEB faz essa recomendação. Tão só, porque, com relação à essência da doutrina espírita, Roustaing modificou-a completamente, como adiante se verá, introduzindo assim o primeiro cisma no Espiritismo.

Nas páginas 9 à 12, sob o título "DUAS PALAVRAS", o tradutor se revela deslumbrado com a obra de Roustaing e se confessa "muito aquém do encargo recebido".

Eis pequena mostra das "DUAS PALAVRAS", que ocupam quatro páginas do livro:

"De nenhum modo pretendemos realçar aqui, em duas palavras, o valor e a importância verdadeiramente extraordinários desta obra incomparável, única até hoje no mundo, onde, dia a dia, à medida que for sendo calmamente estudada e meditada, avultarão a sua grandiosidade e a sua profundeza. Para o fazermos, talvez nada menos de um volume houvéramos de escrever, quando nos não faltasse capacidade".

Note-se o fascínio do tradutor, julgando necessário escrever pelo menos um volume, a título de prefácio da obra de Roustaing, se não Ihe faltasse capacidade. Se realizasse o seu intento, estaria apenas seguindo o estilo prolixo do seu mestre Roustaing, já mencionado por Kardec, quando este, na sua crítica a "Os Quatro Evangelhos" de Roustaing, afirmou que "a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade." ("Revista Espírita", Edicel, junho/1866).

E acrescenta o tradutor:

"Nela se encerra toda uma revelação de verdades divinas que ainda em nenhuma outra fora dado ao homem entrever. Ela nos põe sob as vistas, banhados numa claridade intensíssima, que por vezes ainda nos ofusca os olhos tão pouco acostumados à luminosidade das coisas espirituais, esse código de sabedoria infinita que se há de tornar o código único dos Homens - os Evangelhos de Jesus. Tanto basta para que a sua preciosidade assinalada fique."

O tradutor, por certo, conhecia os livros de Kardec, mas o seu fascínio pelos livros de Roustaing dá a medida exala do pouco ou nada que para ele representaram os ensinos da Codificação Kardequiana. Diante da "claridade intensíssima" da obra roustainguista, que Ihe ofuscou os olhos, vemos o tradutor imitando Paulo quando, na estrada de Damasco, ficou temporariamente cego pela luminosidade de Jesus.

Concluindo o resumo das "Duas Palavras":

"Se, apesar dessa assistência e dessa misericórdia, ficamos muito aquém do encargo recebido, como é nossa convicção, que nos perdoem os que lerem esta tradução da obra imorredoura dos "Quatro Evangelhos explicados em espírito e verdade"..."

Por questão de respeito, não diremos que a "verdade" roustainguista é uma grosseira mentira, mas afirmamos, convicto, e o leitor constatará, que a verdade de Roustaing não é a verdade espírita.

É curioso ressaltar que, nos livros de Roustaing, o tradutor enaltece apaixonadamente a obra. No "O Evangelho Segundo o Espiritismo", de Allan Kardec, edições FEB, também traduzido por Guillon Ribeiro, este não escreve sequer uma palavra sobre o livro. Em lugar disso, na 77ª edição, por exemplo, lêem-se elogios da Federação Espírita Brasileira à erudição do tradutor.

No seu "Prefácio", às páginas 57/67, Roustaing explica o porquê de "Os Quatro Evangelhos":

"Li o Livro dos Espíritos. Nas páginas desse volume encontrei: uma moral pura, uma doutrina racional, de harmonia com o espírito e progresso dos tempos modernos, consoladora para a razão humana; a explicação lógica e transcendente da lei divina ou natural, das leis de adoração, de trabalho, de reprodução, de destruição, de sociedade, de progresso, de igualdade, de liberdade, de justiça, de amor e caridade, de aperfeiçoamento moral, dos sofrimentos e gozos futuros.

"Em seguida, deparei com explicações judiciosas acerca da alma no estado de encarnação e no de liberdade; do fenômeno da morte, da individualidade e das condições de individualidade da alma após a morte; do que se chamou anjo e demônio; dos caminhos e meios, dos agentes secretos ou ostensivos de que se serve Deus para o funcionamento, o desenvolvimento, o progresso físico dos mundos; do progresso e desenvolvimento físico, moral e intelectual de todas as suas criaturas.

"Encontrei ainda a explicação racional da pluralidade dos mundos; da lei do renascimento presidindo, pelo progresso incessante não só da matéria como da inteligência, à vida e à harmonia universais, no infinito e na eternidade.

"Compreendi, mais do que nunca, diante da pluralidade dos mundos e das humanidades, assim como de suas hierarquias; da pluralidade das existências e da respectiva hierarquia, que os homens, no nosso planetas são de uma inferioridade moral notória; de uma inferioridade intelectual acentuada relativamente às leis a que estão sujeitos na Terra os diversos reinos da Natureza e às leis naturais a que obedecem os mundos e as humanidades superiores, por meio das quais aquelas leis se conjugam na unidade e na solidariedade.

(- - -)

"Li em seguida o Livro dos Médiuns..., consultei a História,... Per lustrei os livros das duas revelações, o Antigo e o Novo Testamento...

"Mas, se por um lado a moral sublime do Cristo resplandeceu a meus olhos em toda a sua pureza, em todo o seu fulgor, como brotando de uma fonte divina, por outro lado, tudo permaneceu obscuro, incompreensível e impenetrável à minha razão, no tocante à revelação sobre a origem e a natureza espirituais de Jesus, sobre a sua posição espírita em relação a Deus e ao nosso planeta, sobre os seus poderes e a sua autoridade.

"Quanto à revelação sobre uma origem, uma natureza ao mesmo tempo humanas e extra-humanas de Jesus, sobre o modo de sua aparição na Terra, tudo, como antes, se conservou igualmente obscuro, incompreensível e impenetrável à minha razão.

" .. senti a impotência da razão humana para penetrar as trevas da letra e, desde então, a necessidade de uma revelação nova, de uma revelação da Revelação "

( )

Como se vê, "Os Quatro Evangelhos" foram ditados a Roustaing para atendê-lo nas suas dúvidas quanto à origem e natureza de Jesus. Os espíritos mistificadores, contudo, foram além da expectativa de Roustaing: satisfizeram-no com a teoria de um Jesus de natureza extra-humana, não gerado por Maria, enfim, um agênere, ressuscitando a ideologia docetista do corpo aparente de Jesus, surgida logo após a sua morte, que o apóstolo João denunciou de "Anticristo" (João, lª Ep. Univ., 4: l a 3, e 2ª Ep., 1:7), e ainda, nesses livros de Roustaing, a falange de espíritos embusteiros contesta vários ensinos espíritas contidos nos livros de Allan Kardec.

Há, também, no 1° volume de "Os Quatro Evangelhos" de Roustaing, uma "Introdução" por ele escrita, da pág. 69 à 126: são 58 páginas com repetidas referências ao "corpo fluídico" de Jesus ou à sua "natureza extra-humana", e à "virgindade de Maria", expressões que se estendem, exaustivamente, ao longo dos quatro grossos volumes.

O deslumbramento de Roustaing pela tese docetista "de que Jesus não veio em carne", condenada pelo apóstolo João, é de tal monta que, enquanto o Espiritismo diz "Fora da Caridade não há Salvação", Roustaing coloca como pedra angular de sua doutrina "a natureza extra-humana de Jesus". Se o espiritismo se preocupa com a essência dos ensinos de Jesus, Roustaing se fascina com a teoria do Jesus de apenas "corpo fluídico".

*Retirado do livro "Conscientização Espírita"

2 comentários:

  1. Grato pelo trabalho de elucidar a questão expondo-se na internet. Notei que Roustaing tem admiradores-obreiros de peso na história do espiritismo dos quais li alguns livros defendendo-o,até atribuindo o fracasso do espiritismo na França a sua oposição e o sucesso da FEB nos anos 50 por adotá-lo. Não li ainda a obra mas noto que se fosse do Alto já teria se firmado no espiritismo evangélico dos humildes, - no bom senso comum no alívio das dores. Me parece que ficou restrito na esferas dos doutos. O tempo não fortaleceu a obra. Emile

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  2. Lamentavelmente, a FEB 'encampou' esse escritor e resenhista e seus conceitos sampleados e falíveis. Fica o exemplo de que sempre houve, na FEB, 'dissidentes' e contestadores lights à verdadeira Doutrina Espírita. Belo trabalho crítico de Gélio Lacerda, servindo como alerta para todos os Espíritas brasileiros.

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