sábado, 30 de julho de 2011

Kardec e os Exilados

Por Sérgio Aleixo

Em A Caminho da Luz, lê-se: “Há muitos milênios, um dos orbes da Capela, que guarda muitas afinidades com o globo terrestre, atingira a culminância de um dos seus extraordinários ciclos evolutivos. As lutas finais de um longo aperfeiçoamento estavam delineadas, como ora acontece convosco, relativamente às transições esperadas no século XX, neste crepúsculo de civilização”.[1]

Mas em termos kardecianos: “Toda teoria em contradição manifesta com o bom-senso, com uma lógica rigorosa, com os dados positivos que possuímos, por mais respeitável que seja o nome que a assine, deve ser rejeitada”.[2]

O bom-senso, a princípio, não afasta o que se lê em A Caminho da Luz. Entretanto, isto não ocorre quanto à “lógica rigorosa”, pois esta, no caso, exige “os dados positivos que possuímos”, isto é, o que diz a ciência sobre Capela, não importando se esse conhecimento é limitado, até porque qualquer conhecimento o é por natureza. A Doutrina Espírita, porém, estará sempre com a ciência naquilo que compete a esta, sob pena de obscurantismo.

Segundo especialistas, Capela não tem planetas, e mesmo que algum fosse encontrado, nenhuma estabilidade apresentaria que possibilite ­(ou mesmo que tenha possibilitado em bilhões de anos passados) o surgimento de vida. Eles têm ainda por certo que só estrelas simples ocasionam probabilidades para o desenvolvimento de formas orgânicas. Capela, porém, é um sistema de nove estrelas (duas principais e mais sete) com tremendas instabilidades de várias ordens.

Assim, em nome do Espiritismo, não se poderia sustentar que há ou que houve vida num planeta que não existe nem nunca existiu no sistema Capela, menos ainda se “guarda muitas afinidades com o globo terrestre”, na culminância de um ciclo evolutivo cujas lutas finais teriam ocorrido como as nossas, em relação às transições que eram “esperadas no século XX”. Eram... Pois o século 20 acabou sem que houvesse mudança alguma na ordem natural das coisas, como asseguraram, desde sempre, Kardec e os espíritos superiores da sua magna Codificação.

Num conto de ficção que nada tem a ver com este assunto do exílio, Flammarion chegou a supor os capelinos como seres dotados de faculdades de percepção elevadas, por não estarem encarnados em corpos grosseiros como os nossos. Mas ouviu do codificador que, embora houvesse concordância de muitos pontos com o Espiritismo, a obra representava apenas uma “hipótese” ilustrativa.[3] Vai longe o tempo em que a doutrina era tratada com tamanha prudência.

Diante do texto de A Caminho da Luz, entretanto, em seu antigo habitat, a vida dos capelinos só podia ser como a vida aqui na Terra: orgânica. De outra forma, o texto não faria o menor sentido; tanto assim, que fala de mundos capelinos que “já se purificaram física e moralmente”,[4] numa clara indicação de que aquele orbe de onde teriam vindo os exilados não se houvera depurado. O texto, aliás, apesar de se referir a uma ação ocorrida “há muitos milênios”, diz que esse mundo “guarda muitas afinidades com o globo terrestre”. Emmanuel, pois, asseverou que o planeta ainda estava lá, no tempo em que lá o quis sediar: 1938. Sem dúvidas, trata-se de ambiente físico, e não de um mundo indetectável.

De qualquer modo, a ideia que Kardec admitiu como Espiritismo — porque “aceita pela maioria dos espíritas como a mais racional e a mais de acordo com a soberana justiça de Deus” e, sobretudo, “confirmada pela generalidade das instruções dadas pelos espíritos sobre esse assunto” —[5] foi a de que houve um exílio, não “há muitos milênios”, e sim, como se aprende no n. 51 de O Livro dos Espíritos, há alguns milênios, “cerca de 4.000 anos antes do Cristo”. Espíritos foram mandados para a Terra a fim de que os habitantes desta, mais atrasados, progredissem com este contato, e para que os exilados expiassem suas faltas, porquanto se haviam rebelado contra a lei de Deus num mundo “feliz”, “mais adiantado e menos material do que o nosso”. É o que se lê, sem apelação, em A Gênese, XI, 36 (ou 38), e XII, 22 (ou 23).

36 (ou 38). Segundo o ensino dos espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se quiserem, uma dessas colônias de espíritos vinda de outra esfera, que deu origem à raça simbolizada na figura de Adão, e, por essa razão mesma, chamada de raça adâmica. Quando ela chegou aqui, a Terra já estava povoada desde tempos imemoriais, assim como a América, quando os europeus chegaram lá. A raça adâmica, mais adiantada do que aquelas que a haviam precedido na Terra, é, com efeito, a mais inteligente, é ela que impele todas as outras ao progresso.

22 (ou 23). Admitamos, ao demais, que [Adão e Eva] tenham vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho do espírito substituía o do corpo, e que, por sua rebelião contra a lei de Deus, simbolizada pela desobediência, tenham sido, por punição, afastados de lá e exilados para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a um trabalho corporal, e reconheceremos que Deus tinha razão em lhes dizer: ‘No mundo onde ireis viver daqui por diante, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento com o suor da vossa fronte’, e em dizer à mulher: ‘Parirás com dor’, porque esta é a situação desse mundo. O paraíso terrestre, cujos vestígios se têm procurado inutilmente na Terra, era portanto a representação do mundo feliz onde Adão havia vivido, ou melhor dizendo, a raça dos espíritos da qual ele é a personificação. [...]

Não foi, portanto, indicada a localização cósmica do planeta original dos exilados, nem se falou que tinha muitas afinidades com a Terra. Se o movimento espírita considerasse como palavra de ordem os conteúdos e, sobretudo, a criteriologia da obra de Kardec; se fosse capaz de obedecer às determinações do velho mestre pelos méritos que indiscutivelmente possuem, deveria rejeitar a ideia de que os exilados vieram de um orbe da Capela portador de “muitas afinidades” com o nosso mundo, num momento em que suas lutas eram como as nossas, no séc. 20 (bem materiais então!), porque a ciência, em assunto que é da sua estrita competência, nunca ofereceu subsídios para essa indicação. Só um eventual futuro respaldo da astrobiologia pode ocasionar mudança de postura espírita quanto a este assunto. Até lá, deve prevalecer para os adeptos sinceros e devotados a dita de Erasto:

Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom-senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa. Com efeito, sobre essa teoria poderíeis edificar todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento construído sobre a areia movediça.[6]

Edgar Armond e similares, imbuídos das melhores intenções, mas driblando Kardec para estabelecer seus sistemas pessoais, apenas fizeram exatamente isto: edificaram sobre a areia movediça de A Caminho da Luz, em cujo “Antelóquio” se lê, com surpresa, que “não deverá ser um trabalho histórico”, o que contraria seu subtítulo: “História da Civilização à Luz do Espiritismo”. E o que dizer daqueles prognósticos ao final do capítulo XXV? Caducaram por completo. O século 21 aí está, com “as forças do mal” em “posições de domínio” e as “ovelhas” ainda bem misturadas. Mas o suposto livro complementar de A Gênese assim profetizou:

São chegados os tempos em que as forças do mal serão compelidas a abandonar as suas derradeiras posições de domínio nos ambientes terrestres [...]. Vive-se agora [1938], na Terra, um crepúsculo, ao qual sucederá profunda noite; e ao século XX compete a missão do desfecho desses acontecimentos espantosos. [...] O século que passa efetuará a divisão das ovelhas do imenso rebanho.

Como A Caminho da Luz poderia ser um livro complementar à Gênese de Kardec se lhe descumpre esta orientação fundamental:

[...] os espíritos realmente sábios nunca predizem nada com épocas determinadas; eles se limitam a nos prevenir sobre a sequência dos fatos que nos seja útil conhecer. Insistir em obter detalhes precisos é expor-se às mistificações dos espíritos levianos, que predizem tudo o que se quer, sem se importarem com a verdade, e se divertem com os terrores e as decepções que causam. [...] Pode-se ter por certo que, quanto mais circunstanciadas [as predições], mais elas são suspeitas.[7]

Quanto àquela pretensa confirmação de vida em Capela desde a Revista Espírita, os textos devem ser lidos mais atentamente, sem precipitações apaixonadas. Como disse acima, logo no primeiro artigo, Kardec é bem claro: “O autor imagina um diálogo entre um indivíduo vivo chamado Sitiens”. E aduz então: “A teoria que ele dá da visão da alma é notável”. [8] Mais adiante, assevera o mestre: “[...] não podendo essa experiência ser feita diretamente pelos homens, o autor supõe um espírito que dá conta de suas sensações, e colocado em condições de poder estabelecer uma comparação entre a Terra e o mundo que habita [um dos planetas de Capela]”. Ainda que Kardec haja reconhecido ao texto de Flammarion “uma importância capital”, no segundo artigo, reafirmou:

[...] não se deve perder de vista que esta história não passa de uma hipótese, destinada a tornar mais acessíveis à inteligência e, de certo modo palpáveis pela entrada em ação, da demonstração de uma teoria científica, como fizemos observar em nosso artigo precedente.[9]

Em nenhum momento ficou estabelecido que o conto literário de Flammarion era portador de um princípio espírita no que respeita ao sistema Capela. Kardec apenas viu méritos na maneira pela qual a separação entre alma e corpo e as faculdades daquela foram tratadas no relato ficcional de seu famoso “amigo” astrônomo. Em mais dois anos, esse “amigo” acusaria o velho mestre, em pleno funeral deste, de haver suscitado rivalidades e de haver feito escola de forma um pouco pessoal, como se houvesse nisto alguma falha;[10] além de já ter presenteado Kardec com o “favor” de psicografar um “Galileu” que ignorava a existência dos satélites de Marte. É verdade que Fobos e Deimos foram descobertos apenas depois dessas psicografias, em 1877. Não surpreende que os espíritos deixem de revelar o que só aos homens compete descobrir, mas quando prestam informações falsas, o caso é outro.[11]

Na ficção do astrônomo, ao demais, o espírito Lumen diz que os capelinos não seriam encarnados num invólucro grosseiro, o que os dotaria de “faculdades de percepção elevadas num eminente grau de poder”.[12] Caso se tratasse de elevar à condição de princípio doutrinário do Espiritismo a localização desses seres em Capela (e Kardec não o fez!), ainda assim tal ideia estaria em conflito com a informação emmanuelina de que viviam num orbe que guarda muitas afinidades com o nosso globo, em meio às lutas finais de um longo aperfeiçoamento, como nos acontecia no séc. 20.

Por fim, diga-se em alto e bom som que, na negação de que os exilados teriam vindo de Capela, nenhum princípio sequer do Espiritismo está em litígio, e sim uma tradição espiritual improvável de que há ou de que houve vida orgânica num suposto mundo desse sistema estelar sem planetas. Emmanuel, aliás, já fizera declarações temerárias não só de caráter intergaláctico, mas acerca mesmo do nosso sistema planetário:

Assim como Marte ou Saturno já atingiram um estado mais avançado em conhecimentos, melhorando as condições de suas coletividades, o vosso orbe tem, igualmente, o dever de melhorar-se, avançando, pelo aperfeiçoamento das suas leis, para um estágio superior, no quadro universal.[13]

Coletividades em melhores condições? É... Evoluíram tanto que sumiram da face desses planetas, fisicamente estéreis e desabitados.[14] O movimento espírita precisa entender que a simples opinião, por si só, deste ou daquele espírito, seja qual for, por que médium o for, não constitui Espiritismo quando se desalinha em relação a Kardec. Este e outros assuntos precisam ser tratados em termos kardecianos. É a hora da codificação espírita! Ou nos tornaremos uma trupe de fascinados, presas dos mais lamentáveis obscurantismos.

[1] A Caminho da Luz. III. As raças adâmicas. Um mundo em transições. p. 34.
[2] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II.
[3] Revista Espírita. Mar/1867. Notícias Bibliográficas. Lumen. E mai/1867, Lumen.
[4] A Caminho da Luz. III. As raças adâmicas. O sistema de Capela, p. 34.
[5] A Gênese, XI, 42, nota 173.
[6] O Livro dos Médiuns, 230.
[7] A Gênese, XVI, 16.
[8] Revista Espírita. Março/1867. Notícias Bibliográficas. Lumen.
[9] Revista Espírita. Maio/1867. Lumen.
[10]Obras Póstumas. Discurso pronunciado sobre o túmulo de Kardec.
[11] Cf. A Gênese, VI, 26: “Alguns planetas como Mercúrio, Vênus e Marte não deram origem a nenhum astro secundário; enquanto que outros, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc., formaram um ou mais”.
[12] Revista Espírita. Março/1867. Notícias Bibliográficas. Lumen.
[13] Emmanuel. A Tarefa dos Guias Espirituais.
[14] Veja-se neste meu trabalho o texto Kardec Versus Emmanuel em 12 Passos. http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2011_06_12_archive.html.

Fonte: http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com/2010_03_29_archive.html

Um comentário:

  1. Excelente!

    Realmente, esse papo de Capela é furado e incoerente por mais que seja muito bem escrito e detalhado, não pode ter nexo com ciência se está afirmando o absurdo que ESTÁ!

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