terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Passagem

Por Allan Kardec

A confiança na vida futura não exclui as apreensões da  passagem desta para a outra vida. Muitas pessoas não temem a morte por si mesma; o que temem é o momento da transição. Sofre-se ou não se sofre na travessia? Aí está o que as inquieta; e a coisa vale tanto mais apenas porque ninguém dela pode escapar. Pode-se dispensar de uma viagem terrestre; mas aqui, ricos como pobres devem transpor o limiar e, se for doloroso, nem a classe nem a fortuna podem abrandar-lhe a amargura.

Ao ver a calma de certos mortos, e as terríveis convulsões da  agonia de alguns outros, já se pode julgar que as sensações não são sempre as mesmas; mas quem pode nos informar a esse respeito? Quem nos descreverá o fenômeno fisiológico da separação da alma e do corpo? Quem nos dirá das impressões desse instante supremo? Sobre esse ponto a ciência e a religião são mudas.

E por que isso? Porque falta, a uma e a outra, o conhecimento das leis que regem as relações do Espírito e da matéria; uma se detém no limiar da vida espiritual, a outra no da vida material. O Espiritismo é o traço de união entre as duas; só ele pode dizer como se opera a transição, seja pelas noções mais positivas que dá quanto à natureza da alma, seja pelo relato daqueles que deixaram a vida. O conhecimento do laço fluídico que une a alma e o corpo é a chave desse fenômeno, como de muitos outros.

A matéria inerte é insensível: isso é um fato positivo; só a alma experimenta as sensações do prazer e da dor. Durante a vida, toda desagregação da matéria repercute na alma, que dela recebe uma impressão mais ou menos dolorosa. É a alma quem sofre e não o corpo; este não é senão o instrumento da dor: a alma é o paciente. Depois da morte, estando o corpo separado da alma, pode ser impunemente mutilado, porque não sente nada; a alma, estando dele isolada, não recebe nenhum dano da desorganização deste último; ela tem as suas sensações próprias cuja fonte não está na matéria tangível. O perispírito é o envoltório fluídico da alma, da qual não está separado nem antes, nem depois da morte, e com a qual não faz, por assim dizer, senão um, porque um não se pode conceber sem o outro.

Durante a vida, o fluido perispiritual penetra o corpo, em todas as suas  partes, e serve de veículo às sensações físicas da alma; é também por esse intermédio que a alma atua sobre o corpo e dirige-lhe os movimentos.  A extinção da vida orgânica provoca a separação da alma e do corpo, pela ruptura do laço fluídico que os une; mas essa separação jamais é brusca; o fluido perispiritual se separa pouco a pouco de todos os órgãos, de sorte que a separação não é completa e absoluta senão quando não reste mais um único átomo do perispírito unido a uma molécula do corpo. A sensação dolorosa, que a alma sente nesse momento, está em razão da soma dos pontos de contato que existem entre o corpo e o perispírito, e da maior ou menor dificuldade e lentidão que apresente a separação. Não é preciso, pois, dissimular-se que, segundo as circunstâncias, a morte pode ser mais ou menos penosa. São estas diferentes circunstâncias que iremos examinar.

Coloquemos primeiro, como princípio, os quatro casos seguintes, que podem ser consideradas as situações extremas, entre as quais há uma multidão de nuanças:

Se no momento da extinção da vida orgânica o desligamento do perispírito estivesse completamente operado, a alma não sentiria absolutamente nada;
se, nesse momento, a coesão dos dois elementos está com toda sua força, produz-se uma espécie de dilaceramento que reage dolorosamente sobre a alma;
se a coesão é fraca, a separação é fácil e se opera sem abalo;
se, depois da cessação completa da vida orgânica, existem ainda numerosos pontos de contato entre o corpo e o perispírito, a alma poderá sentir os efeitos da decomposição do corpo, até que o laço esteja inteiramente rompido.

Disso resulta que o sofrimento, que acompanha a morte, está subordinado à força de aderência que une o corpo e o perispírito; que tudo o que pode ajudar na diminuição dessa força e na rapidez do desligamento torna a passagem menos penosa; enfim, que se o desligamento se opera sem nenhuma dificuldade, a alma não sente nenhuma sensação desagradável.

Na passagem da vida corpórea para a vida espiritual, produz-se, ainda, um outro fenômeno de importância capital: o da perturbação. Nesse momento, a alma sente um entorpecimento que paralisa, momentaneamente, as suas faculdades e neutraliza, pelo menos em parte, as sensações; está, por assim dizer, cataleptizada, de sorte que quase nunca testemunha consciente o último suspiro. Dizemos quase nunca porque há um caso em que pode dele ter consciência, assim como o veremos daqui a pouco. A perturbação pode, pois, ser considerada como estado normal no instante da morte; a sua duração é indeterminada; varia de algumas horas a alguns anos. À medida que ela se dissipa, a alma está na situação do homem que sai de um sono profundo; as idéias estão confusas, vagas e incertas; vê-se como através de um nevoeiro; pouco a pouco a visão se ilumina, a memória retorna e ela se reconhece. Mas esse despertar é bem diferente, segundo os indivíduos; nuns é calmo e proporciona uma sensação deliciosa; noutros, é cheio de terror e ansiedade, e produz o efeito de um horrível pesadelo.

O momento do último suspiro não é, pois, o mais penoso, porque, o mais comumente, a alma não tem consciência de si mesma; mas antes, ela sofre pela desagregação da matéria durante as convulsões da agonia, e depois, pelas angústias da perturbação. Apressemo-nos em dizer que esse estado não é geral. A intensidade e a duração do sofrimento, como dissemos, estão em razão da afinidade que existe entre o corpo e o perispírito; quanto mais essa afinidade é grande, mais os esforços do Espírito, para se libertar de seus laços, são longos e penosos; mas há pessoas nas quais a coesão é tão fraca que o desligamento se opera por si mesmo e naturalmente. O Espírito se separa do corpo como um fruto maduro se destaca de seu caule; é o caso das mortes calmas e de sonhos pacíficos.

O estado moral da alma é a causa principal que influi sobre a maior ou menor facilidade do desligamento. A afinidade entre o corpo e o perispírito está em razão do apego do Espírito à matéria; está em seu máximo no homem cujas preocupações todas se concentram na vida e nos gozos materiais; ela é quase nula naquele cuja alma depurada está identificada por antecipação com a vida espiritual. Uma vez que a lentidão e a dificuldade da separação estão em razão do grau de depuração e de desmaterialização da alma, depende de cada um tornar essa passagem mais ou menos fácil ou penosa, agradável ou dolorosa. Isto posto, ao mesmo tempo como teoria e como resultado da observação, resta-nos examinar a influência do gênero de morte sobre as sensações da alma no último momento.

Na morte natural, a que resulta da extinção das forças vitais ou da doença, o desligamento se opera gradualmente; no homem cuja alma está desmaterializada, e cujos pensamentos se separaram das coisas terrestres, o desligamento é quase completo antes da morte real; o corpo vive ainda a vida orgânica, e a alma já entrou na vida espiritual, e não se prende mais ao corpo senão por um laço tão fraco que se rompe, sem dificuldade, ao último batimento do coração. Nessa situação, o Espírito já pode ter recobrado a sua lucidez, e ser testemunha consciente da extinção da vida de seu corpo, do qual está feliz por ter-se livrado; para ele, a perturbação é quase nula; não é senão um momento de sono pacífico, do qual sai com inefável impressão de felicidade e de esperança. No homem material e sensual, aquele que viveu mais para o corpo do que para o Espírito, para quem a vida espiritual nada é, nem mesmo uma realidade em seu pensamento, tudo contribuiu para apertar mais os laços que o ligam à matéria; nada veio relaxá-los durante a vida. À aproximação da morte, o desligamento se opera também, gradualmente, mas com esforços contínuos. As convulsões da agonia são o indício da luta que o Espírito sustenta, que por vezes quer romper os laços que o resistem, e de outras vezes se aferra ao seu corpo do qual uma força irresistível o arranca violentamente, parte por parte.

O Espírito se prende tanto mais à vida corporal quanto nada vê além dela; sente que lhe escapa e quer retê-la; em lugar de se abandonar ao movimento que o arrasta, resiste com todas as suas forças; pode assim prolongar a luta durante dias, semanas e meses inteiros. Sem dúvida, nesse momento, o Espírito não tem toda a sua lucidez; a perturbação começou muito tempo antes da morte, mas com isso não sofre menos, e o vago em que se encontra, a incerteza do que lhe advirá, se juntam às suas angústias. A morte chega e tudo não está acabado; a perturbação continua; sente que vive, mas não sabe se é vida material ou vida espiritual; ele luta ainda até que os últimos laços do perispírito estejam rompidos. A morte pôs um termo à doença efetiva, mas não lhe deteve as conseqüências; tanto que existam pontos de contato entre o corpo e o perispírito, deles o Espírito sente os golpes e sofre-os.

Bem diferente é a posição do Espírito desmaterializado, mesmo nas mais cruéis doenças. Os laços fluídicos que o unem ao corpo, sendo tão fracos, se rompem sem nenhum abalo; depois, a sua confiança no futuro, que já entrevê pelo pensamento, algumas vezes mesmo em realidade, fá-lo encarar a morte como uma libertação, e seus males como uma prova; daí, para ele, uma calma moral e uma resignação que abrandam o sofrimento. Depois da morte, estando esses laços agora mesmo rompidos, nenhuma reação dolorosa se opera nele; sente-se, em seu despertar, livre, disposto, aliviado de um grande peso, e todo alegre por não mais sofrer.

Na morte violenta, as condições não são exatamente as mesmas. Nenhuma desagregação parcial pôde trazer uma separação preliminar entre o corpo e o perispírito; a vida orgânica, em toda a sua força, é subitamente detida; o desligamento do perispírito não começa, pois, senão depois da morte, e, nesse caso como em outros, não pode se operar instantanemente. O Espírito, apanhado de improviso, está como atordoado; mas, sentindo que pensa, se crê ainda vivo, e essa ilusão dura até que tenha se conscientizado de sua posição. Esse estado intermediário entre a vida corporal e a vida espiritual é um dos mais interessantes a se estudar, porque apresenta o singular espetáculo de um Espírito que toma o seu corpo fluídico por seu corpo material, e que experimenta todas as sensações da vida orgânica. Oferece uma variedade infinita de nuanças segundo o caráter, os conhecimentos e o grau de adiantamento moral do Espírito. É de curta duração para aqueles cuja alma está depurada, porque neles havia um desligamento antecipado, do qual a morte, mesmo a mais súbita, não fez mais que apressar o cumprimento; em outros, pode se prolongar durante anos. Esse estado é muito freqüente, mesmo nos casos de morte comum, e não tem, para alguns, nada de penoso segundo as qualidades do Espírito; mas, para outros, é uma situação terrível. É no suicídio, sobretudo, que essa situação é mais penosa. O corpo preso ao perispírito por todas as suas fibras, todas as convulsões do corpo repercutem na alma, que delas experimenta atrozes sofrimentos.

O estado do Espírito no momento da morte pode se resumir assim: O Espírito sofre tanto mais quanto o desligamento do corpo seja mais lento; a prontidão do desligamento está em razão do grau de adiantamento do Espírito; para o Espírito desmaterializado, cuja consciência é pura, a morte é um sono de alguns instantes, isenta de todo sofrimento, e cujo despertar é cheio de suavidade.

Para trabalhar pela sua depuração, reprimir as más tendências, vencer as paixões, é preciso ver-lhes as vantagens no futuro; para se identificar com a vida futura, dirigir-lhe as suas aspirações e preferi-la à vida terrestre, é preciso não só nela crer, mas compreendê-la; é preciso se representá-la sob um aspecto satisfatório para a razão, em completo acordo com a lógica, o bom senso e a idéia que se faz da grandeza, da bondade e da justiça de Deus. De todas as doutrinas filosóficas, o Espiritismo é a que exerce, sob esse aspecto, a mais poderosa influência pela fé inabalável que ele dá.

O espírita sério não se limita a crer; ele crê porque compreende, e compreende porque se dirige ao seu julgamento; a vida futura é uma realidade que se desenrola sem cessar aos seus olhos; ele a vê e a toca, por assim dizer, em todos os instantes; a dúvida não pode entrar em sua alma. A vida corporal, tão limitada, se apaga para ele diante da vida espiritual, que é a verdadeira vida; daí o pouco caso que faz dos incidentes do caminho e sua resignação nas vicissitudes, das quais compreende a causa e a utilidade. Sua alma se eleva pelas relações diretas que mantém com o mundo invisível; os laços fluídicos que o ligam à matéria se enfraquecem e, assim, se opera um primeiro desligamento parcial que facilita a passagem desta vida para a outra. A perturbação, inseparável da transição, é de curta duração, porque logo o limiar transposto, ele se reconhece; nada lhe é estranho; tem consciência de sua situação.

O Espiritismo, seguramente, não é indispensável a esse resultado; também não tem a pretensão de só ele assegurar a salvação da alma, mas a facilita pelos conhecimentos que proporciona, os sentimentos que inspira e as disposições nas quais coloca o Espírito, a quem faz compreender a necessidade de se melhorar. Dá, além disso, a cada um, os meios de facilitar o desligamento de outros Espíritos no momento em que deixam o seu envoltório terrestre, e de abreviar a duração da perturbação pela prece e pela evocação. Pela prece sincera, que é uma magnetização espiritual, provoca-se uma desagregação mais pronta do fluido perispiritual; por uma evocação conduzida com sabedoria e prudência, e com palavras benevolentes e de encorajamento, tira-se o Espírito do entorpecimento em que se encontra, ajudando-o a reconhecer-se mais cedo; se é sofredor, excita-o ao arrependimento, que somente pode abreviar-lhe os sofrimentos.

Fonte: O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo - Capítulo I - Segunda Parte.

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