quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Mestres antecessores de Kardec

Por Dora Incontri

O espiritismo não surgiu do nada. Todas as idéias se filiam a uma história. Fazem parte da construção lenta do processo evolutivo do homem. Uma tarefa urgente aos estudiosos da doutrina é contextualizá-la, apreendê-la no devir da História, para melhor compreender suas raízes, seu desenvolvimento e sua importância no tempo e no espaço.

Não se trata de situar o espiritismo como um reflexo das estruturas econômicas vigentes na época do seu nascimento ou como mera expressão de uma dada cultura. Esse o erro brutal das concepções antropológicas, exibidas nas universidades atuais. Nessa linha de interpretação, não existiria conteúdo de verdade – ou pelo menos, não há a preocupação por uma possível verdade proclamada por esta ou aquela manifestação cultural ou religiosa. O que há são idéias que refletem o contexto sócio-político-econômico de uma época. Assim, teríamos um espiritismo explicado e acabado dentro da ótica do século XIX, da herança racionalista francesa, fruto de um momento histórico. Essa visão relativista das idéias é conseqüência de toda a corrente inaugurada, de um lado pelo marxismo e do outro pelo positivismo – ambos aliás, primos-irmãos em ideologia e cujos descendentes são a sociologia e a antropologia atuais. Todas essas matizes de interpretação têm em comum a redução da realidade ao seu aspecto social. E sob essa ótica, não são mais as idéias, nem os indivíduos que movem o mundo, mas a sociedade, com sua divisão em classes, com seus conflitos de interesses e sua ânsia de progresso (predominantemente material) que gera idéias, e essas não têm qualquer sentido intrínseco de verdade atemporal.

Ora, justamente num ramo dessa corrente – o positivismo – que tanta influência teve na história do Brasil, querem alguns incluir Kardec. O positivismo, além de realizar esse corte materialista no real, o oposto do que faz o espiritismo, que aumenta a nossa percepção ao infinito, realizou, no plano histórico, a fragmentação das ciências, originando a especialização excessiva do conhecimento, também em oposição à proposta de síntese e de entrelaçamento das áreas, feita por Kardec.

É polêmico se Kardec teria ou não uma afinidade com o positivismo. Os espíritas se dividem. Os não-espíritas são quase unânimes em dizer que sim, mas há aí uma evidente má fé, porque a afirmação não vem acompanhada de estudos sérios e profundos (este é o caso de François Laplantine em seu livro, bastante superficial: LAPLANTINE, François e AUBRÉE, Marion. La Table, le Livre et les Esprits. Paris: JC Lattes, 1990) e fica patente a intenção de colocar o espiritismo no rol das doutrinas positivistas fracassadas e obscurantistas do século XIX. Pessoalmente, partilho a idéia de que há um abismo entre ambas as doutrinas, embora esta ou aquela idéia isolada possam ser aproximadas. O assunto requer um estudo mais aprofundado, mas apenas de passagem cito as seguintes discrepâncias: 1) o positivismo é coletivista, endeusa a humanidade, fazendo dela a sua religião; o espiritismo faz apelo ao indivíduo e não se perde em teorias totalitárias, em que o o ser individual se sacrifique em prol de um todo abstrato. 2) Isso se baseia nas opostas concepções de homem esposadas por ambas as doutrinas: para o positivismo, o homem não passa de fruto da espécie animal. O seu materialismo grosseiro está mesmo ultrapassado pelos atuais avanços da física. Para o espiritismo, o homem é antes de tudo espírito e aí reside o seu valor e a sua dignidade de ser, candidato à angelitude, herdeiro de potencialidades divinas. 3) O positivismo quer reduzir toda a apreensão do mundo à ciência materialista. Desprezou a filosofia e fez da religião algo meramente social; ao passo que o espiritismo quer promover o diálogo e a concordância entre as diversas formas de captação do real. 4) O positivismo tem uma estrutura doutrinária sistemática, fechada e foi contaminado por um personalismo patológico, que se manifestou no culto hierárquico ao seu fundador, Auguste Comte. O espiritismo pretende ser uma doutrina assistemática, como várias vezes advertiu Kardec, aberta e sem nenhuma forma de idolatria hierárquica.

Associar, pois, o espiritismo ao positivismo revela falta de compreensão do verdadeiro sentido da doutrina codificada por Kardec, ou então pode se tratar de uma intenção não confessada de denegri-la. Não estou só nessa minha interpretação: Léon Denis criticou diversas vezes o materialismo positivista e, aqui no Brasil, Bezerra de Menezes se ergueu em polêmica com seus representantes.

Assim, fazer a história do espiritismo não é enquadrá-lo em alguma dessas teorias reducionistas da realidade, com as quais se trabalha atualmente nos redutos do academicismo mais radical. Trata-se, isso sim, de conceber a evolução das idéias filosóficas, religiosas e científicas e observar como essa evolução desemboca no espiritismo. Trata-se de fazer história das idéias e, se há alguma filosofia permeando a apreensão histórica, é a própria filosofia espírita que pode nos dar os elementos para a compreensão mais acurada do processo evolutivo. Essa apreensão é feita de maneira abrangente nas obras de J. Herculano Pires — o único até hoje a quem poderíamos chamar de filósofo espírita da história das idéias. Em seus livros, ele caminha de Platão a Sartre com a desenvoltura de alguém que se coloca do alto de uma montanha e vê as contribuições particulares de cada pensador, como tijolos, levados à construção do edifício da verdade.

As raízes mais evidentes e ainda pouco relacionadas com Kardec saltam aos olhos em seu mestre, Pestalozzi e no mestre de Pestalozzi, Rousseau. Em ambos, vamos encontrar subsídios para esse estudo. Entretanto, não haverá aqui uma referência mais específica ao tema da imortalidade da alma, pois trata-se de um conceito por demais obviamente enraizado na linha de pensamento aqui investigada. Desde a antiga filosofia grega, até um racionalista como Descartes, passando por toda a tradição cristã, sem contar as diversas doutrinas orientais, a imortalidade sempre foi o ponto de apoio de inúmeras formas de estruturação doutrinária.

Passemos, portanto, aos dois autores, que evidentemente aceitavam a imortalidade, mas que nem só por isso se ligam à corrente histórica do espiritismo. Em torno de Rousseau e em torno de Pestalozzi até hoje se acendem polêmicas para discutir uma questão mais nominal, que essencial: teriam sido eles iluministas ou românticos, racionalistas ou sentimentalistas? Ambos estão enraizados no século XVIII, berço, ou pelo menos palco da consolidação, de um racionalismo feroz, que atingiu o apogeu na ironia de um Voltaire ou no materialismo de um Helvetius e acabou entronizando a deusa Razão, durante a Revolução Francesa. Mas ambos se projetam igualmente no século XIX, influenciando o romantismo alemão e francês, abrindo as comportas de uma torrente de paixão, sentimento e religiosidade, nos tons literários de Victor Hugo ou nos delírios grandiloqüentes dos filósofos alemães… (O próprio século XIX, aliás, é o palco tanto do romantismo mais exarcebado, quanto das correntes cientificistas materialistas. Esse século foi tão fértil em idéias, movimentos e talentos, que pelo menos alguns volumes seriam necessários para situar o espiritismo nesse cenário, abarcando os aspectos estéticos, políticos, filosóficos, científicos, etc.)

Embora haja divergências entre Rousseau e Pestalozzi, pois esse último, como discípulo, ultrapassou o mestre, sobretudo na aplicação prática das idéias educacionais, pode-se falar de muitas afinidades entre ambos. A primeira delas, que é justamente a causa dessas polêmicas, é a seguinte: tanto um como o outro não podiam se desfazer dessa herança racionalista, iniciada por Descartes já um século antes. Nem mesmo pretendiam a apreensão irracional da vida, banindo as conquistas da humanidade nesse sentido. Uma prova disso é a rejeição dos dogmas irracionais das igrejas vigentes, a preocupação pedagógica do desenvolvimento racional do educando, para o que Pestalozzi, por exemplo, baseado em Rousseau, criou um método próprio, que sempre partia do mais simples ao mais complexo, da unidade ao composto, da observação à teoria, e assim por diante.

Entretanto, ambos são igualmente declarados como precursores ou mesmo fundadores do romantismo – o primeiro da estética e da filosofia românticas e o segundo, da pedagogia romântica. É que, tanto por temperamento, quanto provavelmente por suas respectivas missões, Rousseau e Pestalozzi se esforçaram por fugir de um racionalismo estéril, sufocante do espírito e apartado do sentimento moral. Tentam restabelecer os direitos do coração – nem de longe entendido aqui num sentido piegas ou mesmo romantiqueiro. Para eles, a moral – sua preocupação básica – não é mera questão racional, não pode ser apenas encarada do ponto de vista pragmático ou do puro dever social, ou ainda como dogma institucional. A moral é antes de tudo um despertar de sentimentos elevados. Para Rousseau, a própria consciência não se manifesta através de regras, mas pela voz do sentimento – a primeira reação a uma infração moral é o sentimento de remorso.

Para ambos, o próprio desenvolvimento da razão e sua capacidade de compreender e de pesquisar a verdade está relacionada com a elevação de sentimentos. Ou seja, a reta razão, de que fala Rousseau, só pode ser exercitada se aquecida pela luz do sentimento puro. Pestalozzi vai ainda mais longe. Em Rousseau, talvez possamos ainda falar de uma dicotomia, ou pelo menos de uma dualidade, de razão e sentimento, um influenciando o outro, mas ainda apreendidos em compartimentos estanques. Já em Pestalozzi, existe uma apreensão unitária do homem, onde razão, sentimento e ação, se integram e se entrelaçam. Pestalozzi propõe uma educação integral do homem, para desenvolver harmoniosamente todas as potências do espírito, simbolizadas na tríade: cabeça, mão, coração.

Erram, portanto, tanto os que reduzem Rousseau e Pestalozzi a meros iluministas, como aqueles que os incham como românticos acabados. Eles quiseram justamente promover o equilíbrio do homem, resgatando o sentimento, desprezado pelos iluministas mais radicais, mas sem abdicar da razão. Foram autores de transição entre duas épocas, e portanto, assimilaram o que havia de melhor no passado, mas semearam os germes do futuro. Estão, isso sim, acima da rotulagem das escolas de pensamento, porque os verdadeiros gênios transcendem sempre o mero paradigma vigente.

Isso tudo se torna ainda mais flagrante na religiosidade de Rousseau e de Pestalozzi. Antes de mais nada, não é demais lembrar que ambos nasceram no mesmo país protestante, a Suíça, e foram alimentados numa fé que, embora já cristalizada institucionalmente – ou seja, já cadaverizada em sua essência – pressupunha algum avanço em relação à Igreja de Roma. A Reforma de fato deu um grande impulso, dentro das limitações das circunstâncias históricas, ao processo de volta ao cristianismo primitivo e de dessacralização da Igreja Católica.

No caso de Pestalozzi, a influência foi ainda mais benéfica. Pois se Rousseau nasceu em Genebra, onde o temível e árido Calvino havia pontificado, Pestalozzi nasceu em Zurique, onde através da língua e, portanto, da cultura alemã e pelas mãos de seu avô pastor, lhe chegaram os ventos mais amenos do pietismo alemão. O pietismo foi um movimento dentro da Reforma, que pretendia justamente fugir da aridez teológica para reacender a prática e a devoção cristãs. Seu fundador, Philipp Jacob Spener (1635-1705), pretendia revitalizar a presença de Jesus no coração dos fiéis e pregava que o verdadeiro cristianismo se dá antes pela prática da caridade do que pelas especulações teológicas, e antes realizado por leigos, do que monopolizado pelo clero… É supérfluo dizer da afinidade de algumas idéias pietistas com a proposta espírita. Aliás, segundo os livros de história das religiões, num sentido mais vasto, são chamados de pietistas, quaisquer grupos cristãos – e não apenas o fundado por Spener – cujo núcleo doutrinário seja a prática individual da devoção e da moral de Cristo, em oposição às formas institucionais das igrejas.

Eis um ponto-chave, tanto em Rousseau como em Pestalozzi: ambos baseiam a religiosidade no indivíduo. E esse indivíduo é concebido de forma integral, guiado pela razão e iluminado pelo sentimento. A religião não emana de uma fonte artificial, implantada e mantida pelos homens, de alguma igreja, hierarquia ou instituição qualquer. A religião emana do homem, porque ele é animado pelo Espírito Divino e a natureza à sua volta também o é. A religião é essa forma de sintonia com a própria essência divina, com a essência divina da natureza, e com o Criador, que a tudo transcende; uma sintonia, sem a necessidade de intermediários, sem a obrigação de se obtê-la ou mesmo manifestá-la através de qualquer tipo de ritualística.

A única conseqüência óbvia e desejável dessa conexão consigo mesmo, com o cosmos e com o Ser Supremo é a prática da fraternidade, da justiça e do amor na sociedade. Portanto, a religião individual se traduz naturalmente em prática moral. Assim diz Pestalozzi:

E a fonte da justiça e de toda a felicidade no mundo, a fonte do amor e do sentido de fraternidade humana, repousa no grande pensamento da religião: de que somos filhos de Deus, e de que a fé nessa verdade é a base segura para toda a felicidade do mundo. (…) toda força interior da moralidade, do esclarecimento e da sabedoria repousa nessa base: na fé da humanidade em Deus. (PESTALOZZI, Johann Heinrich: Abendstunde eines Einsiedlers. in Kleine Schriften zur Volkserziehung und Menschenbildung. Bad Heilbrunn: Ed. Julius Klinkhardt, 1983, p. 17)

Digno de nota é que se Rousseau é muitas vezes erroneamente interpretado como mero deísta, com uma noção ainda bastante iluminista de Deus, em que a Divindade teria sido causa do mundo, mas não estaria mais presente no universo, ao contrário, Pestalozzi é, algumas vezes, interpretado erroneamente num sentido oposto, o de uma concepção totalmente panteísta de Deus. Nenhuma das duas posições é verdadeira. Rousseau evoluiu do iluminismo deísta para uma concepção mais abrangente de Deus, em que ele é causa primeira, mas também imanência na consciência humana e presença viva em todas as coisas. E Pestalozzi, apesar de se referir constantemente à imanência de Deus, ainda o considera como Ser transcendente e dirige-se a Ele em prece.

A idéia mais evidente, nesse devir evolutivo, que aqui se esboça e que vem desde o Renascimento, atingindo sua culminância nos séculos XVIII e XIX, é a restituição aos homens de sua autonomia individual, é a tentativa progressiva de romper as tutelas, para reconhecer a infinita capacidade humana de pensar, procurar a verdade e encontrar a si mesmo e a Deus. Nesse movimento de libertação, contudo, muitos se perderam na rebeldia completa, endureceram seus corações na luta e caíram no materialismo grosseiro ou em outras formas de tutela, que não as religiosas, como as tutelas de Estados totalitários. E no entanto, entre os que mais permaneceram em equilíbrio, procurando reconhecer a autonomia humana, mas promovendo ao mesmo tempo o homem em sua totalidade, e acenando-lhe sobretudo a tutela de Deus – de cujas leis não podemos escapar, pois estamos inseridos num universo, por Ele sustentado – estão justamente Rousseau e Pestalozzi.

O traço original e comum a ambos os autores, que apenas é encontrado tão fortemente num dos maiores filósofos de todos os tempos – Platão – e no antecessor de ambos – Comenius – é o desaguar de todas as idéias na idéia magna da educação. O maior e talvez único meio de reintegrar o homem em si mesmo, entregando-lhe a tutela de si próprio, cultivando-lhe a reta razão e o sentimento elevado, é dado pelo ato pedagógico.

A diferença entre os dois educadores, e que indica a superioridade de Pestalozzi, é que Rousseau, apesar de sua aguda consciência da moral e da religião em seu sentido mais elevado, não foi capaz de traduzi-la em atos e há sempre a contradição do pensador Rousseau, proclamando a beleza de uma educação revolucionária em Emílio, com o pai Rousseau, abandonando os próprios filhos. (É preciso que se diga do seu intenso arrependimento, ainda em vida, por tal feito, que também teve algumas atenuantes, dentro das circunstâncias de sua posição familiar.) Ao invés, Pestalozzi projetou suas idéias em ação de amor e socorreu crianças órfãs, educou pobres e ricos, ajudou a erguer um novo conceito de educação, teorizando e praticando uma pedagogia do amor. Ele precedeu o espiritismo não apenas em idéias, mas foi um fiel representante da máxima "Fora da Caridade não há Salvação".

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um drama íntimo - Apreciação Moral

Por Allan Kardec


O Monde Illustré de 7 de fevereiro de 1863 conta o drama de família seguinte, que comoveu, a justo título, a sociedade de Florença. O autor assim começa a sua narração:

“Eis a história. Ele era um velho de setenta e dois anos; ela, uma jovem de vinte. Ele a havia esposado há três anos... Não vos revolteis! O velho conde, originário de Viterbo, era absolutamente sem família, o que é muito estranho para um milionário! Amália não era sem família, mas era sem milhões! Para compensar as coisas, quase a tendo visto nascer, sabendo-a de bom coração e de um espírito encantador, ele tinha dito à mãe: ‘Deixa-me paternalmente casar com Amália. Durante alguns anos ela cuidará de mim e depois...’

“Fez-se o casamento. Amália compreende os seus deveres; cerca o velho dos mais assíduos cuidados e lhe sacrifica todos os prazeres de sua idade. Tendo o conde ficado cego e semipa­ralítico, ela passava as mais longas horas do dia a lhe fazer companhia, a fazer leitura, a lhe contar tudo o que podia distraí-lo e encantá-lo. ‘Como sois boa, minha cara filha!’ exclamava ele muitas vezes, tomando-lhe as mãos e atraindo-a para depor sobre sua fronte o casto e doce beijo do enternecimento e do reconhecimento.

“Um dia, entretanto, ele percebe que Amália se afasta de sua pessoa; que, posto sempre assídua e cheia de solicitude, ela parece temer sentar-se a seus pés. Uma suspeita atravessa seu espírito. Uma noite, quando ela fazia leitura, ele lhe toma o braço, a atrai, enlaça-lhe a cintura e então, soltando um grito terrível, cai esgotado de emoção e de cólera aos pés da jovem! Amália perde a cabeça; lança-se para a escada, atinge o andar superior, precipita-se pela janela e cai estatelada. O velho sobreviveu apenas seis horas a essa catástrofe!” 

Perguntarão que relação pode ter esta história com o Espiritismo? Vê-se aí a intervenção de alguns espíritos brincalhões? - Essas relações estão nas deduções que o Espiritismo ensina a tirar das coisas aparentemente mais vulgares da vida. Quando o céptico ou o indiferente não vê num fato senão um motivo para a ironia, ou passa ao lado sem notar, o espírita o observa e dele tira uma instrução, remontando às causas providenciais, sondando-lhes as consequências para a vida porvindoura, conforme os exemplos que as relações de além-túmulo lhe oferecem, da justiça de Deus.

No fato acima relatado, em vez de simples e agradável anedota entre ele, o velho, e ela, a jovem, o Espiritismo vê duas vítimas. Ora, como o interesse pelos infelizes não termina no sólio da vida presente, mas os segue na vida futura, na qual acredita, ele pergunta se aí não há um duplo castigo para uma dupla falta, e se ambos não foram punidos por onde pecaram. Ele vê um suicídio, e como sabe que esse crime é sempre punido, ele se pergunta qual o grau de responsabilidade em que incorre o que o cometeu.

Vós que pensais que o Espiritismo só se ocupa de duendes, de aparições fantásticas, de mesas girantes e de Espíritos batedores, se vos désseis ao trabalho de estudá-lo, saberíeis que ele toca em todas as questões morais. Esses Espíritos que vos parecem tão risíveis, e que, entretanto, não passam de almas dos homens, dão a quem observa as suas manifestações a prova de que ele próprio é Espírito, momentaneamente ligado a um corpo. Ele vê na morte não o fim da vida, mas a porta da prisão que se abre ao prisioneiro para restituí-lo à liberdade. Aprende que as vicissitudes da vida corpórea são as consequências de suas próprias imperfeições, isto é, das expiações pelo passado e pelo presente, e provações para o futuro. Daí ele é naturalmente conduzido a não ver o cego acaso nos acontecimentos, mas a mão da Providência. Para ele a justa sentença: A cada um segundo as suas obras não só acha a sua aplicação apenas no além-túmulo, mas também na Terra. Eis por que tudo o que se passa em redor de si tem seu valor, sua razão de ser. Ele tudo estuda para disso tirar proveito e regular sua conduta com vistas ao futuro, que para ele é uma realidade demonstrada. Remontando às causas das desgraças que o afligem, aprende a não mais acusar a sorte ou a fatalidade, mas a si mesmo.

Não tendo esta digressão outro objetivo senão mostrar que o Espiritismo se ocupa de algo mais que de Espíritos batedores, voltemos ao nosso assunto. Considerando-se que o fato foi tornado público, é permitido apreciá-lo, tanto mais quanto não designamos ninguém nominalmente.

Se se examinar a coisa do ponto de vista puramente mundano, a maior parte das pessoas não verá nele senão a consequência muito natural de uma união desproporcional, e atirarão no velho a pedra do ridículo como oração fúnebre. Outros acusarão de ingratidão a jovem senhora que traiu a confiança do homem generoso que queria enriquecê-la. No entanto, ela tem para o espírita um lado mais sério, porque o espírita aí busca um ensinamento.

Perguntar-nos-emos, então, se na ação do velho não havia mais egoísmo que generosidade ao vincular uma moça quase criança à sua caducidade, pelos laços indissolúveis que podiam conduzi-la à idade em que se deve antes pensar no descanso do que em gozar do mundo; se impondo-lhe esse duro sacrifício, não era fazê-la pagar bem caro a fortuna que lhe prometera. Não há verdadeira generosidade sem desinteresse. Quanto à jovem, ela não podia aceitar esses laços senão com a perspectiva de vê-los quebrados em breve, pois nenhum motivo de afeição a ligava ao velho. Havia, pois, cálculo de ambos os lados, e esse cálculo foi frustrado. Deus não permitiu que nem um nem o outro o aproveitassem. A um infringiu a desilusão, ao outro a vergonha, que os mataram a ambos.

Resta a responsabilidade do suicídio, que jamais fica impune, mas que muitas vezes encontra circunstâncias atenuantes. A mãe da jovem, para encorajá-la a aceitá-lo, havia dito: “Com esta grande fortuna farás a felicidade do homem pobre que amares. Enquanto esperas, honra e respeita, durante o que lhe resta de vida, esse grande coração que quis fazer-te sua herdeira.” Era tomá-la pelo lado sensível, mas, para gozar dos benefícios desse grande coração, que teria sido muito maior se a tivesse dotado sem interesse, seria preciso especular sobre a duração de sua vida. A moça errou ao ceder, mas a mãe errou mais em excitá-la, e é ela que incorrerá na maior parte da responsabilidade do suicídio da filha.

É assim que aquele que se mata para escapar à miséria é culpado pela falta de coragem e de resignação, mas muito mais culpado ainda é aquele que é a causa primeira desse ato de desespero. Eis o que o Espiritismo ensina, pelos exemplos que põe sob os olhos daqueles que estudam o mundo invisível.

Quanto à mãe, sua punição começa nesta vida, a princípio pela morte horrível da filha, cuja imagem talvez venha persegui-la e enchê-la de remorsos, depois pela inutilidade, para ela, do sacrifício que ela provocou, porque tendo falecido o marido seis horas depois de sua mulher, toda a sua fortuna vai para os colaterais afastados, e ela nenhum proveito terá.

Os jornais estão cheios de casos de todo gênero, louváveis ou censuráveis, que podem oferecer, como este que acabamos de relatar, assunto para estudos morais sérios. É para os espíritas uma mina inesgotável de observações e instruções. O Espiritismo lhes dá os meios de aí descobrirem o que se passa desapercebido para os indiferentes e ainda mais para o céptico, que geralmente aí não vê senão o fato mais ou menos picante, sem lhe procurar nem as causas nem as consequências. Para os grupos, é um elemento fecundo de trabalho, no qual os Espíritos protetores não deixarão de ajudar, dando a sua apreciação.

Fonte: Revista Espírita, fevereiro de 1864 - Um drama íntimo

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

[Download] - Fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) uma análise dos discursos dos terapeutas

Disponível para download a dissertação de Mestrado “Fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) uma análise dos discursos dos terapeutas” defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB pelo Psicólogo João Arnaldo Nunes.

Clique aqui para baixar.

RESUMO

Sendo  o  discurso  uma  prática  social,  seu  funcionamento  é  regulado  por  normas  que controlam todo acervo de saberes, o presente trabalho buscou seu suporte nos princípios teóricos  do  filósofo  Michel  Foucault  e  tem  como  objeto  o  estudo  dos  fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) -  TVP.  Os fenômenos mediúnicos surgiram nos  consultórios  de  terapeutas  de  linha  ortodoxa  forçando-os,  de  certa  forma,  a compreender  esse  novo  campo  de  estudos  que  se  desdobrava.  Os  resultados  deste processo  fizeram  surgir  uma  nova  abordagem  terapêutica  que  se  distanciava  das abordagens tradicionais. A partir disso, num primeiro momento, iremos apresentar um breve  contexto  histórico  a  respeito  do  percurso  de  como  esses  fenômenos  foram compreendidos e interpretados. Selecionamos três olhares que consideramos a base para uma compreensão dessa trajetória na qual os fenômenos foram ganhando interpretações: a  visão  da  Metapsiquica,  da  Parapsicologia  e  finalmente  do  Kardecismo.  Percebemos que  em  alguns  pontos  estes  se  complementam  e  em  outros  momentos  se  distanciam.

Com base no trabalho de campo realizado, buscamos compreender através dos discursos dos  terapeutas  que  trabalham  com  a  TVP,  como  estes  profissionais  lidam  com  o surgimento  dos  fenômenos  mediúnicos  no  setting  terapêutico.  Como  aporte teóricometodológico,  além  de  Foucault,  utilizamos  a  perspectiva  antropológica  nos valendo tanto  de  autores  que  trabalham  com  o  Kardecismo  quanto  daqueles  que estudam  o universo New Age, com foco nas práticas terapêuticas.

Palavras-Chaves: Terapia de vida passada; Mediunidade; Kardecismo; New Age.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

[Download] Em torno do Nosso Lar - Uma análise das controvérsias produzidas no movimento espírita

Disponível para download a dissertação de Mestrado “Em torno do Nosso Lar – Uma análise das controvérsias produzidas no Movimento Espírita” defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Clique aqui para baixar.

Mais informações sobre o trabalho aqui.

O Blog dos Espíritas

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Alguns pontos sobre a visão espírita do suicídio assistido

Por Ademir Xavier

"Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada no que se poderia chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrestres ainda são vivazes; ele não acredita que está morto." (A. Kardec, "O Céu e o Inferno", Segunda Parte, Exemplos, Capítulo 5, Suicidas: O suicida de Samaritaine)

O suicídio assistido (eutanásia ativa, 1) é a liberdade dada a pacientes considerados terminais, sem cura, de planejarem  e executarem a própria morte. Vimos um caso  recente, o da americana Brittany Maynard de 29 anos (2) que, diante de um tumor de cérebro incurável, decidiu se suicidar. Nesse caso, cremos não haver diferença com qualquer outro ato de suicídio conscientemente decidido, já que a impossibilidade de cura não é justificativa para o ato como discutimos abaixo.

A questão da decisão pelo suicídio assistido ou eutanásia é considerada um tabu na sociedade pelas incertezas sobre a vida futura ("medo da morte"). Com a onda de liberalismos crescentes, grupos se fortalecerão propondo sua aplicação de forma sistemática. Há uma clara fronteira entre a vida e a morte em uma sociedade que tem muita dificuldade em lidar com a morte.

Discutimos aqui alguns pontos que devem ser considerados no esboço da visão espírita do suicídio assistido. Eles não pretendem ser definitivos, mas devem ser lembrados no contexto do avanço do conhecimento trazido pela Doutrina Espírita. Esses pontos também se aplicam ao suicídio de forma geral.

O "Livro dos Espíritos", questão 953.

Quando uma pessoa vê diante de si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns instantes os seus sofrimentos, por uma morte voluntária?

“É sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado as aparências, esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no último momento?” 

a) – Concebe-se que, nas circunstâncias ordinárias, o suicídio seja repreensível; mas estamos figurando o caso em que a morte é inevitável, e em que a vida só é encurtada de alguns instantes. 

“É sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade do Criador.”

Antes que o leitor cético conclua que a proibição do suicídio para o Espiritismo - mesmo no caso assistido - se baseia em um critério de autoridade, é preciso lembrar o suporte empírico que a Doutrina Espírita apresenta ao problema. De fato, seria um critério exclusivamente de autoridade, não dispusesse o Espiritismo de métodos e processos de demonstração com os quais ele ilustra seus princípios. Isso diferencia bastante o conhecimento espírita de outras tradições religiosas ou culturais. Basta ver o Capítulo 5 de "O Céu e o Inferno" de A. Kardec para colher informes sobre o estado futuro daqueles que cometem suicídio. Além do sofrimento, suas maior consequência, para quem o pratica, é uma profunda desilusão por se perceber vivo, por reconhecer a inutilidade do ato. 

Não há dúvidas de que o suicídio é uma opção. É a aplicação da "lei de liberdade" (Questão 843 em "O Livro dos Espíritos), não há razão para se duvidar desse direito. Mas, a decisão sobre a conveniência ou não de um ato obviamente não pode se basear exclusivamente na existência do direito de praticá-lo. Proponentes do suicídio assistido, eutanásia ou do aborto justamente reduzem a questão à discussão de direitos porque confundem progresso com liberdade irrestrita.

É fora de dúvida que temos o direito de praticar muitos atos dentro da liberdade que dispomos. Mas, nem todos esses atos são convenientes. Certamente, a liberdade de se atirar do vigésimo andar de um prédio deve ser ponderada pelos sofrimentos que colheremos como consequência da queda. Inúmeros outros exemplos são frequentemente adiantados por médicos e especialistas em saúde quanto ao sofrimento material do uso de drogas, de práticas ilícitas etc.

Ainda assim, vemos céticos que acusam os espíritas de usar o medo como arma de convencimento. Ora, se evidências de sofrimento certo não servem para convencer alguém da inconveniência de um ato, nenhum outro argumento será suficiente.  É claramente irracional desprezar evidências, quaisquer que sejam elas, o que se aplica também às resultantes da mediunidade, que sinalizam que o suicídio leva ao sofrimento. Contra essas, o recurso final é "negar sistematicamente", por isso nos posicionamos tanto aqui contra o ceticismo.

16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos que os ouvem ou leem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de fato levando-os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão se matarem? Que lhes poderiam dizer para desviá-los dessa conseqüência? Que compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heroico, a única perspectiva, mais vale buscá-lo imediatamente e não mais tarde, para sofrer por menos tempo. 

A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula a ideia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no suicídio; donde, em suma, a coragem moral. ("O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo 5, O Suicídio e a Loucura).

Ao invés de se fixar no sofrimento, a crença na vida futura antevê o estado de felicidade em que se encontrará o ser depois de passar pelas dificuldades da existência Uma verdadeira revolução opera naquele que adquire a certeza da continuidade da vida. Ele sabe que o sofrimento é transitório e que, mesmo se sua vida material terminar, continuará a existir em outro estado, livre da matéria e das vicissitudes por ela impostas. Essa é a verdadeira visão espírita, aquela que deverá assinalar uma mudança completa na maneira como encaramos o sofrimento e a morte.

Conclusões

A dúvida sobre a vida futura é dissipada pelo conhecimento espírita, que traz informações, declaradas pelo próprio ser depois da morte, sobre seu estado. E as informações da via mediúnica mostram que a prática do suicídio leva ao sofrimento do Espírito no curto prazo, à ponderação quanto a sua inutilidade e à necessidade futura de reparação (3).   Se há sofrimento "do lado de cá", também há "do lado de lá", resultado do continuísmo da vida. Mas, os que confundem progresso com liberdade irrestrita, pensam o contrário e desprezam os relatórios mediúnicos como novas versões do inferno cristão. 

O suicídio é, acima de tudo, consequência do materialismo, da incredulidade, da ignorância total da vida futura e da transitoriedade dos sofrimentos, da falta de resignação do indivíduo cujo orgulho o faz crer ser indigno da situação a ser vencida. Somente uma crença forte, escorada em evidências e em um método, é capaz de vencer esse estado de coisas. As milhares de mensagens e comunicações daqueles que partiram pedem que tenhamos mais paciência com nossas provas. Elas são passageiras e um futuro grandioso aguarda os que souberem suportá-las com coragem e resignação.

Referências

(1) http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia

(2) http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/podemos-decretar-a-propria-morte

(3) O suicídio leva não só ao aumento do sofrimento, mas exige o retorno as mesmas conjunturas que  resultaram ao ato. O Espírito praticamente se força a nova existência quando terá que vencer a prova onde falhou. Isso acontecerá tantas vezes quanto ele capitular na prova. 

Publicado originalmente em http://eradoespirito.blogspot.com.br/2014/11/alguns-pontos-sobre-visao-espirita-do.html e reproduzido com a autorização do autor.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Da inveja nos médiuns

Por Allan Kardec

(Revista Espírita, abril de 1861 - Ensinos e dissertações espíritas.)

(Enviado pelo Sr. KY..., correspondente da Sociedade em Karlsruhe) 

Por si mesmo e por sua própria inteligência, o homem vão é tão desprezível quanto digno de pena. Ele enxota a verdade de sua frente, para substituí-la por seus argumentos e convicções pessoais, que julga infalíveis e inapeláveis, porque são seus. O homem vão é sempre egoísta, e o egoísmo é o flagelo da Humanidade. Mas, desprezando o resto do mundo, ele mostra bem a sua pequenez. Repelindo verdades que para ele são novas, também mostra a estreiteza de sua inteligência pervertida por sua obstinação, que aumenta ainda mais a sua vaidade e o seu egoísmo.

Infeliz do homem que se deixa dominar por estes seus dois inimigos. Quando ele despertar nesse estado em que a verdade e a luz derramar-se-ão de todos os lados sobre ele, então só verá em si um ser miserável que se exaltou loucamente acima da Humanidade, em sua vida terrena, e que estará muito abaixo de certos seres mais modestos e mais simples, aos quais ele pensava impor-se aqui na Terra.

Sede humildes de coração, vós a quem Deus aquinhoou com seus dons espirituais. Não atribuais nenhum mérito a vós próprios, assim como se atribui a obra não aos utensílios, mas ao operário. Lembrai-vos bem de que não passais de instrumentos de que Deus se serve para manifestar ao mundo o seu Espírito Onipotente, e que não tendes qualquer motivo para vos glorificardes de vós mesmos. Há tantos médiuns, ah! que se tornam vãos, em vez de humildes, à medida que seus dons se desenvolvem! Isto é um atraso no progresso, pois ao invés de ser humilde e passivo, muitas vezes o médium repele, por vaidade e orgulho, comunicações importantes, que vêm à luz através de outros mais merecedores. Deus não olha a posição material de uma pessoa para lhe conferir seu espírito de santidade; bem ao contrário, porque muitas vezes exalça os humildes dentre os humildes, para dotá-los das maiores faculdades, a fim de que o mundo veja que não é o homem, mas o espírito de Deus, por intermédio do homem, que faz milagres. Como eu já disse, o médium é o simples instrumento do grande Criador de todas as coisas, e a ele é que se deve render glória; a ele é que se deve agradecer por sua inesgotável bondade.

Eu gostaria de dizer uma palavra também sobre a inveja e o ciúme que muitas vezes reinam entre os médiuns e que, como erva daninha, é necessário arrancar, desde quando começa a aparecer, temendo que abafe os bons germes vizinhos.

No médium, a inveja é tão temível quanto o orgulho; prova a mesma necessidade de humildade. Direi mesmo que denota falta de senso comum. Não é mostrando-se invejosos dos dons do vosso vizinho que recebereis dons semelhantes, porque se Deus dá muito a uns e pouco a outros, tende certeza de que agindo assim, ele tem um motivo bem fundado. A inveja azeda o Coração; até abafa os melhores sentimentos; é portanto um inimigo que só é possível evitar com muito empenho, pois não dá tréguas uma vez que se apoderou de nós. Isto se aplica a todos os casos da vida terrena, mas eu quis referir-me sobretudo à inveja entre os médiuns, tão ridícula quanto desprezível e infundada, e que prova quanto o homem é fraco quando se torna escravo de suas paixões.

LUOS 

OBSERVAÇÃO: Quando da leitura dessa última comunicação na Sociedade, estabeleceu-se uma discussão sobre a inveja dos médiuns, comparada com a dos sonâmbulos. Um dos membros, o Sr. D..., disse que na sua opinião a inveja é a mesma em ambos os casos, e que se parece mais frequente nos sonâmbulos, é que neste estado eles não a sabem dissimular.

O Sr. Allan Kardec refuta essa opinião dizendo: “A inveja parece inerente ao estado sonambúlico, por uma causa difícil de compreendermos e que os próprios sonâmbulos não podem explicar. Tal sentimento existe entre sonâmbulos que em vigília não têm entre si senão benevolência. Nos médiuns está longe de ser habitual e depende, evidentemente, da natureza moral da criatura. Um médium só tem inveja de outro médium porque está em sua natureza ser invejoso. Esse defeito, filho do orgulho e do egoísmo, é essencialmente prejudicial à pureza das comunicações, ao passo que o sonâmbulo mais invejoso pode ser muito lúcido, o que se compreende muito facilmente. O sonâmbulo vê por si mesmo. É o seu próprio Espírito que se desprende e age. Ele não necessita de ninguém. Ao contrário, o médium não passa de intermediário: recebe tudo de Espíritos estranhos, e sua personalidade está muito menos em jogo que a do sonâmbulo. Os Espíritos simpatizam com ele em razão de suas qualidades ou de seus defeitos; ora, os defeitos mais antipáticos aos bons Espíritos são o orgulho, o egoísmo e o ciúme. A experiência nos ensina que a faculdade mediúnica, como faculdade, independe das qualidades morais; pode, assim como a faculdade sonambúlica, existir no mais alto grau no mais perverso indivíduo. Já é completamente diverso em relação às simpatias dos bons Espíritos, que se comunicam naturalmente, tanto mais à vontade quanto mais o intermediário encarregado de transmitir o seu pensamento for mais puro, mais sincero e mais se afaste da natureza dos maus Espíritos. A este respeito fazem o que nós mesmos fazemos quando tomamos alguém para confidente. Especialmente no que concerne à inveja, como esta falha existe em quase todos os sonâmbulos e é muito mais rara nos médiuns, parece que nos primeiros é uma regra e nos últimos uma exceção, de onde se seguiria que a causa não deve ser a mesma nos dois casos”. 

ALLAN KARDEC

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Kardec e Integridade

21:04 Posted by Fabiano Vidal , , , 1 comment
Nada é mais sagrado do que a integridade de nosso próprio espírito.

Ralph Waldo Emerson 

Integridade é qualidade do que é íntegro; de uma probidade absoluta; honesto, incorruptível, imparcial.

O homem íntegro não está dividido em si mesmo, e não há nele nenhuma distância entre o pensar, o sentir e o agir, porque ele é uno. O homem íntegro não disputa, pois a sua parte mais importante, que é o espírito, comanda as paixões e as submete à razão e ao bom senso; ele não se agasta com as provocações que lhe chegam do exterior, por que é guiado pela própria consciência, sempre reta.    

A mansuetude que caracteriza o viver de um homem íntegro, é poderosa força de atração, de convencimento. Foi a integridade de Allan Kardec que fez acreditadas as suas obras.

Para ressaltar o caráter daquele que legou ao mundo a Ciência Espírita, e para que aqueles que admiram suas obras possam também conhecer o caráter do homem, nós transcrevemos aqui uma nota de alguém que frequentou seu lar, esteve a observá-lo de muito perto, e que hoje nos possibilita conhecer um pouco mais o ser humano que foi Allan Kardec.

Eis o que diz o Dr. Grand, antigo vice-cônsul da França, em uma nota sobre o Livro dos Espíritos, em sua brochura intitulada: Carta de um Católico sobre o Espiritismo: [1]

“Lendo esta obra sente-se que o autor fala, não apenas como homem convicto, mas como homem de experiência que a tudo observou com uma perfeita independência de ideias. Tudo ali é discutido friamente, sem exageração. Todas as consequências ali são deduzidas de argumentos tão justos que se poderia dizer que a filosofia ali é tratada matematicamente. Quando mais tarde tive a ocasião de ver o Sr. Allan Kardec, e de ler seus outros escritos, reconheci que estava ali o fundo de seu caráter e o próprio de seu espírito. É um homem essencialmente positivo, que não se emociona com nada, e discute os fenômenos mais extraordinários com tanto sangue frio como se se tratasse de uma experiência comum. ‘Para se apreciar de maneira correta as coisas, disse ele, é preciso observar sem entusiasmo, pois o entusiasmo é fonte da ilusão e de muitos erros.’ Ele discorre sobre as coisas do outro mundo como se as tivesse sob os olhos, e no entanto ele não fala delas como inspirado, mas como daquilo que existe de mais natural no mundo. Ele no-las torna, por assim dizer, palpáveis, pois possui, sobretudo, a arte de fazer compreender as coisas mais abstratas; é, pelo menos, a impressão que senti ao ouvi-lo falar, e que muitas outras pessoas, como eu, também sentiram. O caráter dominante de seus escritos é a claridade e o método; se a isto ajuntarmos um estilo que permite lê-los sem fadiga, ao contrário da maioria das obras de filosofia, que exigem penosos esforços para serem compreendidas, não se ficaria admirado pela influência que seu estilo exerceu sobre a propagação da Doutrina Espírita.

A esta explicação, que em poucas palavras julguei importante dar, acrescentarei uma simples observação sobre uma das causas que, na minha opinião, contribuíram poderosamente para dar o crédito de que gozam as obras do Sr. Allan Kardec: é a ausência de todo sentimento de aspereza para com seus adversários. Um homem não se coloca em evidência, como ele o fez, sem suscitar muitos ciúmes, muita animosidade; entretanto, em nenhuma parte se encontra o mínimo traço de rancor ou de malevolência, a mínima recriminação endereçada àqueles dos quais ele poderia se queixar. Desde a minha iniciação no Espiritismo tenho frequentemente tido a ocasião de vê-lo na intimidade, e posso dizer que jamais o vi se preocupar com seus detratores; é como se eles não existissem. Ora, confesso que o caráter do homem não contribuiu pouco para corroborar a opinião que eu tinha concebido em favor da Doutrina, quando li seus escritos. É evidente que se eu tivesse reconhecido nele um homem ambicioso, intrigante, ciumento e vingativo, teria dito que ele mentia aos princípios que professa, e desde então minha confiança na verdade dessa Doutrina teria sido abalada.

Essas reflexões, em forma de parênteses, me pareceram úteis para motivar uma das causas que mais fortemente me levaram a prosseguir, com comprometimento, meus estudos espíritas.

Uma outra circunstância, não menos preponderante, vem se juntar às demais e me explicar, ao mesmo tempo, a profunda indiferença do autor para com as diatribes de seus  antagonistas. Eu estava um dia na casa dele no momento em que ele recebia sua correspondência, muito numerosa como de hábito. Encontrava-se ali um jornal em que notadamente o Espiritismo e ele próprio eram amplamente escarnecidos. Havia também muitas cartas que ele leu igualmente para mim, dizendo: ‘Ireis agora ver a contrapartida, e podereis julgar o que é o Espiritismo.’ Entre as cartas, algumas eram pedidos de conselhos sobre os atos mais íntimos e frequentemente os mais delicados da vida privada. A maioria continha a expressão de indizível felicidade, do reconhecimento mais tocante pelas consolações que se havia encontrado na Doutrina; pela calma que ela havia proporcionado; pela força que ela havia dado nas circunstâncias mais afligentes; pelas boas resoluções que havia feito tomar. ‘O que vedes aqui, me disse ele, se renova quase diariamente. Os autores dessas cartas me são, na sua maioria, desconhecidos, mas eis aqui um, e eu conheço muitos que estão na mesma situação, que sem o Espiritismo se teriam suicidado.

Acreditais que a satisfação de ter arrancado homens ao desespero, ter trazido a paz a uma família, feito pessoas felizes, não me compensa largamente por algumas pequenas e tolas críticas da parte de pessoas que falam de uma coisa sem a conhecer? Acreditais que uma só dessas cartas não compensam, de sobra, algumas maldades das quais fui alvo? Aliás, teria eu tempo de me ocupar com aqueles que zombam? Eu prefiro, bem mais, dar meu tempo àqueles a quem eu posso ser util. Não tenho somente para mim a consciência de minhas boas intenções; Deus, em sua bondade, reservou-me um gozo bem maior, que é o de ser testemunha do bem que a Doutrina Espírita produz; e eu julgo, pelo que vejo, sobre a influência que ela exercerá quando estiver generalizada. Não se trata de uma utopia, pois ela é essencialmente moralizadora; vede por vós mesmo a reforma que ela opera sobre os indivíduos isolados; o que ela faz sobre alguns, o fará sobre cem, sobre mil, sobre um milhão, pouco a pouco, compreende-se.

Ora, supondes uma sociedade penetrada dos sentimentos do dever que vedes expressos nessas cartas; credes que ela não extraísse daí elementos de ordem e de segurança? As cartas que vindes de ouvir são todas de pessoas esclarecidas, mas vede esta: é de um simples operário, outrora imbuído das ideias sociais mais subversivas. Ele figurou, de maneira lamentável, em nossas lutas civis, e havia dedicado um ódio implacável aos que ele acreditava serem favorecidos às suas expensas, e sonhava coisas impossíveis. Agora, que diferença de linguagem! Hoje ele compreende que a passagem pela Terra é uma prova e, buscando um bem-estar muito natural, não pede nada às expensas da justiça. Ele não inveja a felicidade aparente do rico, porque sabe que há uma justiça divina, e que essa felicidade, se ele não a mereceu aqui na Terra, terá terríveis reveses numa outra vida. E por que pensa ele assim? Porque lhe dissemos? Não, mas porque ele adquiriu, pelo Espiritismo, a certeza dessa vida futura na qual não acreditava, e que pôde convencer-se por si mesmo, pela situação daqueles que nela se encontram, e porque seu pai, que o entretinha nessas ilusões veio, ele mesmo, lhe dar conselhos plenos de sabedoria. Ele blasfemava contra Deus, que achava injusto por haver favorecido algumas de suas criaturas; hoje ele compreende que esse mesmo favor é uma prova, e que sua justiça se estende sobre o rico como sobre o pobre. Eis o que o torna submisso à vontade de Deus, bom e indulgente para seus semelhantes, feliz em seu modesto trabalho. Credes que o Espiritismo não lhe prestou maiores serviços do que aqueles que se esforçam para lhe provar que não há nada após esta vida, princípio que tem por consequência que se deve buscar aqui sua felicidade a qualquer preço? Eis, Senhor, o que é o Espiritismo. Aqueles que o combatem é porque não o conhecem. Quando ele for compreendido, nele se verá uma das mais sólidas garantias de felicidade e de segurança para a sociedade, pois não serão os seus adeptos sinceros que a perturbarão.’

Eu confesso que jamais havia encarado o Espiritismo sob esse ponto de vista. Agora eu lhe compreendo o alcance, e lamento aqueles que ainda veem nele apenas um fenômeno curioso de mesas girantes. Eu me perguntava se a doutrina dos diabos e dos demônios, do Sr. de Mirville,[2] poderia dar semelhantes consolações; se ela seria de natureza a conduzir os homens ao bem e à fé religiosa, e se não teria contribuído, ao contrário, mais para os desviar, inspirando-lhes mais medo do que amor, mais curiosidade do que sentimentos bons e humanos.”
________

[1] O autor faz referência ao Livro dos Espíritos em uma nota, aqui traduzida pela equipe do IPEAK, inserida em sua Carta de um católico sobre o Espiritismo. Kardec recomenda essa brochura na Revista Espírita de novembro de 1860, em Bibliografia.

A brochura do Dr. Grand também consta na relação de obras queimadas no Auto de fé de Barcelona (ver Revista Espírita de novembro de 1861), e está disponível, em francês, no site: www.ipeak.com.br, no link:

http://www.ipeak.com.br/site/upload/midia/pdf/lettre_d_un_catholique_sur_le_spiritisme_pesqisavel-1860.pdf

[2] O Dr. Grand se refere ao livro do Sr. de Mirville, intitulado: Questões dos Espíritos, publicado em 1855, e que Kardec recomenda em seu Catálogo Racional, na seção: Obras diversas sobre o Espiritismo. (N.T)

Da newsletter do IPEAK.

sábado, 13 de setembro de 2014

O curador do campo Châlons

Por Allan Kardec

Lê-se no Écho de l'Aisne, de 1º de agosto de 1866:

"Não se fala em nosso interior senão das maravilhas realizadas no campo de Châlons, por um jovem zuavo espírita que diariamente faz novos milagres.

"Numerosos comboios de doentes se dirigem a Châlons e, coisa incrível, um bom número deles voltam curados.

"Nestes últimos dias um paralítico, vindo de carro, depois de ter sido visto pelo `jovem espírita' achou-se radicalmente curado e voltou para casa galhardamente a pé.

"Quem puder explique estes fatos, que tocam ao prodígio; sempre há os que são exatos e afirmados por grande número de pessoas inteligentes e dignos de fé."

Renaud

Este artigo é produzido textualmente pela Presse Illustrée de 6 de agosto. O Petit Jorunal, de 17 de agosto, conta o fato nestes termos:

"Depois de ter podido visitar o quartel imperial, que penso já tenhais descrito aos leitores, isto é, a morada mais inteligente e, ao mesmo tempo, a mais simples que possa ter um soberano, mesmo que apenas por alguns dias, passei a tarde a correr à procura do zuavo magnetizador.

"Esse zuavo, um simples músico, é, há três meses, o herói do campo e suas imediações. É um homenzinho magro, moreno, de olhos profundamente enterrados nas órbitas, uma verdadeira fisionomia de derviche torneiro. Dele contam coisas incríveis e sou forçado a não falar senão do que contam, porque, desde alguns dias, por ordem superior, teve ele que interromper as sessões públicas que fazia no ‘Hotel de la Meuse’. Vinham de dez léguas ao redor. E1e recebia vinte e cinco a trinta doentes por vez, e à sua voz, ao seu olhar, ao seu toque, pelo menos dizem, subitamente os surdos ouviam, os mudos falavam, os coxos se iam, sobraçando as muletas.

"Tudo isto é bem certo? Nada sei. Conversei uma hora com ele. Chama-se Jacob, é simplesmente burginhão, exprime-se com facilidade, deu-me a impressão dos mais convencidos e dos mais inteligentes. Sempre recusou qualquer espécie de remuneração e não gosta de agradecimentos. Além disso, prometeu-me um manuscrito que lhe foi ditado por um Espírito. Inútil vos dizer que vos falarei dele assim que o receber, contudo se o Espírito tiver espirito."

René de Pont-Jest

Enfim, o Écho de L 'Aisne, depois de haver citado o fato, em seu número de 1º de agosto, assim o comenta no número de 4:

"No número de quarta-feira última que não se fala em nosso interior senão das curas realizadas no campo de Châlons, por um jovem zuavo espírita.

"Creio fazer bem em vos pedir que o reprima, porque um verdadeiro exército de doentes se dirige diariamente para o campo. Os que voltam satisfeitos animam outros a os imitar. Ao contrário, os que nada ganharam, não calam as censuras e as zombarias.

"Entre essas duas opiniões extremas, há uma prudente reserva que `bom número de doentes' deve tornar como regra de conduta como guia do que podem fazer.

"Essas `curas maravilhosas', esses `milagres', corno os chamam, em geral, os mortais, nada têm de maravilhoso, nada de miraculoso.

"De saída, causam admiração porque não são comuns; mas como nada do que se realiza não deixa de ter uma causa, foi preciso procurar o que produz tais fatos, e a ciência explicou.

"As impressões morais fortes sempre tiveram a faculdade de agir sobre o `sistema nervoso'; - as curas obtidas pelo zuavo espírita não atingem senão as moléstias deste sistema. Em todas as épocas, na antigüidade como nos tempos modernos, tem sido assinaladas curas em grande número de casos. Nada há, pois, de extraordinário que hoje as mesmas causas produzam os mesmos resultados.

"É, pois, apenas aos doentes do `sistema nervoso' que é possível `ir ver e esperar'."

Antes de qualquer outro comentário, faremos uma ligeira observação sobre este último artigo. O autor constata os fatos e os explica a seu modo. Conforme ele, essas curas nada tem de maravilhoso ou de miraculoso. Sobre este ponto estamos de perfeito acordo: o Espiritismo diz claramente que não faz milagres; que todos os fatos, sem exceção, que se produzem por influência mediúnica, são devidos a uma força natural e se realizam em virtude de uma lei tão natural quanto a que faz transmitir um telegrama ao outro lado do Atlântico em alguns minutos.

Antes da descoberta da lei da eletricidade, semelhante fato teria passado pelo milagre dos milagres. Suponhamos por um instante que Franklin, ainda mais iniciado do que o era sobre as propriedades do fluido elétrico, tivesse lançado um fio metálico através do Atlântico e estabelecido uma correspondência instantânea entre a Europa e a América, sem lhe indicar o processo, que teriam pensado dele? Incontestavelmente teriam gritado milagre. Ter-lhe-iam atribuído um poder sobrenatural. Aos olhos de muita gente teria passado por feiticeiro e por ter o diabo às suas ordens. O conhecimento da lei da eletricidade reduziu esse pretenso prodígio às proporções dos efeitos naturais. Assim de uma porção de outros fenômenos.

Mas são conhecidas todas as leis da natureza? A propriedade de todos os fluidos? Não é possível que um fluido desconhecido, como por tanto tempo foi a eletricidade, seja a causa de efeitos inexplicados, produza sobre a economia resultados impossíveis para a Ciência, com a ajuda dos meios limitados de que dispõe? Então! Aí está todo o segredo, porque o Espiritismo só tem mistérios para os que não se dão no trabalho de o estudar. Essas curas tem muito simplesmente por princípio uma ação fluídica dirigida pelo pensamento e pela vontade, em vez de o ser por um fio metálico. Tudo está em conhecer as propriedades desse fluido, as condições em que pode agir e saber dirigi-lo. Além disso, é preciso um instrumento humano suficientemente provido desse fluido e apto a lhe dar a energia suficiente.

Esta faculdade não é privilégio de um indivíduo. Por isto mesmo que está na natureza, muitos a possuem, mas em graus muito diferentes, como todo o mundo há de ver, posto que mais ou menos longe. No número dos que dela são dotados, alguns agem com conhecimento de causa, como o zuavo Jacob. Outros malgrado seu, e sem se dar conta do que se passa neles; sabem que curam, e eis tudo. Perguntai-lhes como e nada sabem. Se forem supersticiosos, atribuirão seu poder a uma causa oculta, à virtude de algum talismã ou amuleto que, na realidade, não serve para nada. E assim com todos os médiuns inconscientes, cujo número é grande. Inúmeras pessoas são, elas próprias, a causa primeira dos efeitos que admiram, mas não explicam. Entre os negadores mais obstinados muitos são médiuns sem o saber.

O jornal em questão diz: "As curas obtidas pelo zuavo espírita não atingem senão as moléstias do sistema nervoso. São devidas à influência da imaginação, constatada por grande números de fatos. Houve dessas curas na antigüidade, como nos tempos modernos, assim, nada tem de extraordinário."

Dizendo que o Sr. Jacob só curou afecções nervosas o autor se adianta um tanto levianamente, porque os fatos contradizem essa afirmação. Mas admitamos que seja assim. Essas espécies de afecções são inumeráveis e precisamente destas em que a Ciência é, o mais das vezes, forçada a confessar a sua impotência. Se, por um meio qualquer dela se pode triunfar, não é um resultado importante? Se esse meio estiver na influência da imaginação, que importa? Por que o negligenciar? Não é melhor curar pela imaginação do que não curar absolutamente? Entretanto, parece-nos difícil que só a imaginação, ainda que excitada ao mais alto grau, possa fazer marchar um paralítico e restaurar um membro anquilosado. Em todo o caso, desde que, segundo o autor, curas de doenças nervosas em todos os tempos foram obtidas por influência da imaginação, os médicos não são desculpados por se obstinarem no emprego de meios impotentes, quando a experiência lhes mostra outros eficazes. Sem o querer o autor lhes faz o processo.

Mas, diz ele, o Sr. Jacob não cura a todos. É possível e, mesmo, certo. Mas que é o que isto prova? Que ele não tem um poder curador universal. O homem que tivesse tal poder seria igual a Deus, e o que tivesse a pretensão de o possuir não passaria de um tolo presunçoso. Se não se curasse senão quatro ou cinco doentes em dez, reconhecidos incuráveis pela Ciência isto bastaria para provar a existência da faculdade. Há muitos médicos que façam tanto?

Há muito tempo conhecemos pessoalmente o Sr. Jacob como médium escrevente e propagador zeloso do Espiritismo, sabíamos que havia feito alguns ensaios parciais de mediunidade curadora, mas parece que esta facilidade teve nele um desenvolvimento rápido e considerável durante sua estada no campo de Châlons. Um dos nossos colegas da Sociedade de Paris, o Sr. Boivinet, que mora no departamento do Aisne, teve a bondade de nos enviar um relatório muito circunstanciado dos fatos que são de seu conhecimento pessoal. Seus profundos conhecimentos do Espiritismo, juntos a um caráter isento de exaltação e de entusiasmo, lhe permitiram apreciar as coisas corretamente. Seu testemunho tem, pois, para nós, todo o valor do de um homem honrado imparcial e esclarecido, e o seu relatório tem toda a autenticidade desejável. Temos assim, os fatos, atestados por ele como constatados, como se nós mesmos os tivéssemos testemunhado. A extensão desses documentos não nos permite sua publicação por inteiro nesta revista, mas nós os coordenamos para os utilizar ulteriormente, limitando-nos por hoje a lhes citar as passagens essenciais:

"... Com o fito de bem justificar a confiança que tendes em mim, informei-me, já por mim mesmo, já por pessoas inteiramente honestas e dignas de fé, das curas bem constatadas, operadas pelo Sr. Jacob. Aliás, essas pessoas não são espíritas, o que tira às suas afirmações toda suspeita de parcialidade em favor do Espiritismo.

"Reduzo de um terço as apreciações do Sr. Jacob quanto ao número dos doentes por ele recebidos, mas parece que estou aquém, talvez muito aquém da verdade, estimando esta cifra em 4.000, sobre os quais um quarto foi curado e os três quartos aliviados. A afluência era tal que a autoridade militar emocionou-se e o consignou, interditando as visitas para o futuro. Sei pelo próprio chefe da estação que a estrada de ferro transportava diariamente massas de doentes ao campo.

"Quanto à natureza das doenças sobre as quais exerceu mais particularmente a sua influência, é-me impossível dize-lo. São sobretudo os enfermos que a eles se dirigiram, e são estes, por conseqüência, que figuram em maior número entre os seus clientes satisfeitos. Mas muitos outros aflitos poderiam apresentar-se a ele com sucesso.

"Foi assim que em Chatères, aldeia vizinha daquela em que resido, vi e revi um homem de cerca de cinqüenta anos que, desde 1856 vomitava tudo o que comia. No momento em que foi ver o zuavo, tinha partido muito doente e vomitava ao menos três vezes por dia. Vendo-o, o Sr. Jacob lhe disse: "Estais curado!" e, durante a sessão, convidou-o a comer e beber. O pobre camponês, vencendo a apreensão, comeu e bebeu e não se sentiu mal. Desde mais de três semanas não mais experimentou o menor mal-estar. A cura foi instantânea. Inútil acrescentar que o Sr. Jacob não o fez tomar qualquer medicamento e não lhe prescreveu nenhum tratamento. Somente a sua ação fluídica, como uma comoção elétrica, tinha bastado para restabelecer os órgãos em seu estado normal."

Observação: Esse homem é dessas naturezas frustas, que se exaltam muito pouco. Se, pois, uma só palavra houvesse bastado para superexcitar sua imaginação a ponto de curar instantaneamente uma gastrite crônica, seria preciso convir que o fenômeno seria ainda mais surpreendente que a cura, e mereceria bem alguma atenção.

"A filha do dono do `Hotel de la Meuse', em Mourmelon, doente do peito, estava tão fraca a ponto de não sair do leito. O zuavo a convidou a levantar-se, o que ela fez imediatamente. Com a estupefação de numerosos espectadores, desceu a escada sem auxílio e foi passear no jardim com o seu novo médico. Desde esse dia a moça passa bem. Não sou médico, mas não creio que esta seja uma doença nervosa.

"Sr. B..., gerente de pensão, que dá pulos à idéia da intervenção dos Espíritos nos nossos assuntos, contou-me que uma senhora, há muito doente do estômago, tinha sido curada pelo zuavo e que, desde então tinha engordado notavelmente cerca de vinte libras.

Observação: Esse senhor, que se exaspera à idéia da intervenção dos Espíritos, ficaria muito chocado se, quando morrer, seu Espírito pudesse vir assistir às pessoas que lhe são caras, curá-las e lhes provar que ele não está perdido para elas.

"Quanto aos enfermos, propriamente ditos, os resultados por eles obtidos são mais estupefacientes, porque o olho aprecia imediatamente os resultados.

"Em Treloup, aldeia a 7 ou 8 quilômetros daqui, um velho de setenta anos estava entrevado e nada podia fazer. Deixar a sua cadeira era quase impossível. A cura foi completa e instantânea. Ontem ainda me falaram do caso. Então! diziam-me, eu o vi, o Pai Petit; ele ceifava!

"Uma mulher de Mourmelon tinha a perna encolhida, imobilizada; o joelho estava à altura do estômago. Agora anda e passa bem.

"No dia em que o zuavo foi interdito, um pedreiro percorreu exasperado o Mourmelon e dizia que queria enfrentar os que impediam o médium de trabalhar. Esse pedreiro tinha os punhos voltados para os lados internos dos braços. Hoje os seus punhos se movem como os nossos e ganha mais dois francos por dia.

Quantas pessoas chegaram carregadas e voltaram sós, tendo recuperado o uso de seus membros durante a sessão!

"Uma menina de cinco anos, trazida de Reims, e que nunca tinha andado, andou imediatamente.

"O fato seguinte foi, por assim dizer, o ponto de partida da faculdade do médium ou, pelo menos, o exercício público dessa faculdade, tornada notória:

"Chegando a Ferté-sous-Jouarre, e dirigindo-se para o campo, o regimento de zuavos estava reunido na praça pública. Antes de debandar a banda executa uma marcha. No número dos espectadores achava-se uma menina num carrinho, empurrado por seus pais. A menina foi assinalada ao zuavo por um de seus camaradas. Terminada a música, ele se dirige para ela e dirigindo-se aos pais, lhe pergunta: "Então esta menina é doente? - Ela não pode andar, foi a resposta. Há dois anos tem na perna um aparelho ortopédico. - Tirais, então, o aparelho, do qual não mais precisa". Isto foi feito, não sem alguma hesitação e a menina andou. Então foram ao café e o pai, louco de alegria, queria que o homem dos refrescos abrisse o seu negócio, para que os zuavos bebessem.

"Agora vou contar como o médium procedia, isto é, vou descrever uma sessão, que não assisti, mas que me foi minuciosamente descrita por vários doentes.

"O zuavo faz entrarem os doentes. As dimensões do local limitam o seu número. É assim que, ao que afirmam, transportou-se do hotel da Europa, onde não podia admitir senão dezoito pessoas por vez, para o `Hotel de la Meuse', onde eram admitidos vinte e cinco ou trinta. Entram. Os que moram mais longe são geralmente convidados a vir primeiro. Certas pessoas querem falar. "Silencio!" diz ele "os que falarem serão postos na rua!" Ao cabo de dez ou quinze minutos de silêncio e imobilidade geral, ele se dirige a alguns doentes, raramente interroga, mas lhes diz o que sofrem. Depois, passeando ao longo da grande mesa, em redor da qual estão sentados os doentes, fala a todos, mas sem ordem; toca-os mas sem os gestos que lembram os magnetizadores; depois despede todos, dizendo a uns: `Estais curados; ide embora'; a outros: ‘Curareis sem nada fazer; apenas tendes fraquezas'; a outros, mais raramente: `Nada posso por vós.' Querem agradecer, e ele responde muito militarmente, que nada tem que agradecer e põe os clientes para fora. Às vezes lhes diz: `Vossos agradecimentos? Dirigi-os à Providência.'

"A 7 de agosto uma ordem do marechal veio interromper o curso das sessões. Logo após a interdição, e visto a enorme afluência dos doentes em Mourmelon, tiveram que empregar a respeito do médium um meio sem precedentes. Como não havia cometido nenhuma falta e observava a disciplina muito rigorosamente, não podiam prendê-lo. Ligaram um plantão à sua pessoa, com ordem de o seguir a toda parte e impedir que alguém dele se aproximasse.

"Disseram-se que foram toleradas todas essas curas, contanto que a palavra Espiritismo não fosse pronunciada e não creio que o Sr. Jacob o tenha feito. Foi a partir desse momento que agiram contra ele com rigor.

"De onde o pavor que causa o simples nome do Espiritismo, mesmo quando só faz o bem, consola os aflitos, alivia a humanidade sofredora? De minha parte creio que certas pessoas temem que ele faça muito bem.

"Nos primeiros dias de setembro o Sr. Jacob quis vir passar dois dias em minha casa, cumprindo urna promessa eventual que me tinha feito no campo de Châlons. O prazer que tive em recebê-lo foi decuplicado pelos serviços que pode prestar a bom número de infelizes. Depois de sua partida, quase que diariamente estava ao corrente do estado dos doentes tratados, e aqui dou o resultado de minhas observações. A fim de ser exato como um levantamento estatístico, e a título de informações posteriores, se for o caso, aqui os cito nominalmente. (Segue uma lista de trinta e tantos nomes, com indicação da idade, da doença e dos resultados obtidos).

"O Sr. Jacob é sinceramente religioso. Dizia-me ele: `O que eu faço não me admira. Eu faria coisas muito mais extraordinárias e não ficaria mais espantado, porque sei que Deus pode, se o quiser. Só uma coisa me admira: é ter tido o imenso favor de ter sido o instrumento que Ele escolheu. Hoje ficam admirados do que obtenho, mas quem sabe se num mês, num ano, não haverá dez, vinte, cinqüenta médiuns como eu e ainda mais fortes que eu? O Sr. Kardec, que procura e deve procurar estudar fatos como estes que se passam aqui, deveria ter vindo. Hoje, amanhã, posso perder a minha faculdade e para ele seria um estudo perdido. Ele deve fazer o histórico de semelhantes fatos.' "

Observação: Sem dúvida ter-nos-íamos sentido feliz em ser testemunha dos fatos relatados acima, e provavelmente teríamos ido ao campo de Châlons, se tivéssemos tido a possibilidade e se tivéssemos sido informado em tempo hábil Só o soubemos por via indireta dos jornais, quando estávamos em viagem e confessamos não ter uma confiança absoluta em seus relatos. Teríamos muito o que fazer se fosse preciso ir em pessoa controlar tudo o que relatam do Espiritismo, ou mesmo tudo quanto nos é assinalado em nossa correspondência. Não podíamos lá ir senão com a certeza de não ter uma decepção e quando o relatório do Sr. Boivinet nos chegou, o campo estava interdito. Atrás, a vista desses fatos nada nos teria ensinado de novo, pois cremos compreendê-los. Ter-se-ia apenas tratado de lhe constatar a realidade. Mas o testemunho de um homem como o Sr. Boivinet, ao qual tínhamos mandado uma carta para o Sr. Jacob, pedindo nos informasse do que teria visto, nos bastava completamente. Não houve, pois, perda para nós, além do prazer de ter visto pessoalmente o Sr. Jacob em trabalho, o que esperamos possa dar-se alhures, fora do campo de Châlons.

Não falamos das curas do Sr. Jacob senão porque autênticas. Se nos tivessem parecido suspeitas ou manchadas pelo charlatanismo e por uma bazófia ridícula, que as tivessem tornado mais prejudiciais do que úteis à causa do Espiritismo, ter-nos-íamos abstido, posto se tivesse podido dizer, como o fizemos em várias outras circunstâncias, não querendo fazer o editor responsável de nenhuma excentricidade, nem secundar as vistas ambiciosas e interesseiras, que por vezes se ocultam sob aparências de devotamento. Eis por que somos circunspectos em nossas apreciações dos homens e das coisas e também porque nossa Revista não se transforma em incensório em proveito de ninguém.

Mas aqui se trata de uma coisa séria, fecunda em resultados, e capital no duplo ponto de vista do fato em si e da realização de uma das previsões dos Espíritos. Com efeito, desde longe data, eles anunciaram que a mediunidade curadora desenvolver-se-ia em proporções excepcionais, de maneira a fixar a atenção geral, e nós felicitamos o Sr. Jacob por ser um dos primeiros a fornecer o exemplo Mas aqui, como em todos os gêneros de manifestações, para nós a pessoa, se apaga diante da questão principal.

Desde que o dom de curar não é resultado do trabalho, nem do estudo, nem de um talento adquirido, aquele que o possui não pode considerá-lo um mérito. Louva-se um grande artista, um sábio, porque devem o que são os próprios esforços. Mas o médium melhor dotado não passa de instrumento passivo, de que os Espíritos se servem hoje e podem deixar amanhã. Que seria o Sr. Jacob se perdesse a sua faculdade, que ele prudentemente prevê? O que era antes: o músico dos zuavos Ao passo que, embora isto aconteça, ao sábio sempre restará a Ciência e ao artista o talento. Somos feliz por ver o Sr. Jacob partilhar destas idéias, portanto , não é a ele que se dirigem estas reflexões. Ele será igualmente de nossa opinião, não temos dúvida, quando dissermos que o que constitui um mérito real no médium, o que se deve e pode louvar com razão, é o emprego que faz de sua faculdade; é o zelo, o devotamento, o desinteresse com os quais a põe ao serviço daqueles a quem ela pude ser útil; é ainda a modéstia, a simplicidade, a abnegação, a benevolência que respiram em suas palavras e que todas as suas ações justificam, porque essas qualidades lhe pertencem mesmo. Assim, não é o médium, que se deve pôr num pedestal, do qual poderá descer amanhã: é o homem de bem, que sabe tornar-se útil sem ostentação e sem proveito para a sua vaidade.

O desenvolvimento da mediunidade curadora forçosamente terá conseqüências de alta Importância, que serão objeto de um exame especial e aprofundado em próximo artigo.

Fonte: Revista Espírita, outubro de 1866