terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

[RE]- Refutação de um artigo do jornal l'Univers

Por Allan Kardec

Em sua edição de 13 de abril último, traz o jornal l’Univers um artigo de autoria do Abade Chesnel, no qual o problema do Espiritismo é longamente discutido. Nós o teríamos deixado sem resposta, como tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância, se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que revelam de parte dos seus autores a mais absoluta ignorância daquilo que atacam. Temos a satisfação de reconhecer que o artigo do Abade Chesnel é redigido com um espírito completamente diferente. Pela moderação e conveniência da linguagem, ele merece uma resposta, tanto mais necessária quanto o artigo contém um erro grave e pode dar uma ideia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer em particular do caráter e do objetivo de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.

Eis o artigo, na íntegra.

“Todo o mundo conhece o espiritualismo do Sr. Cousin, essa filosofia destinada a substituir pouco a pouco a religião. Sob o mesmo título, hoje possuímos um corpo de doutrinas reveladas, que pouco a pouco se vai completando, e um culto realmente muito simples, mas de maravilhosa eficácia, pois que poria os devotos em comunicação real, sensível e quase que permanente com o mundo sobrenatural.

“Esse culto tem reuniões periódicas, iniciadas pela invocação de um santo canonizado. Depois de constatada, entre os fiéis, a presença de São Luís, rei de França, pedem-lhe que proíba a entrada dos Espíritos malignos no templo e leem uma ata da sessão anterior. Depois, a convite do presidente, um médium sobe à tribuna, perto do secretário encarregado de anotar as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas ditadas ao médium pelo Espírito invocado. A assembleia assiste gravemente, piedosamente, a esta cena de necromancia, que por vezes é muito longa e, quando a ordem do dia se esgota, o povo se retira, mais convencido do que nunca da verdade do espiritualismo. No intervalo entre duas sessões, cada fiel não se esquece de manter contato assíduo, mas privado, com os Espíritos que lhe são mais acessíveis ou mais queridos. São muitos os médiuns, e quase que não existem segredos na outra vida que os médiuns não acabem por penetrar. Uma vez revelados aos fiéis, esses segredos não são subtraídos ao público. A Revue Spiritualiste, que se publica mensalmente, com regularidade, não recusa a assinatura aos profanos e quem quiser poderá comprar os livros que contêm o texto revelado, com seu comentário autêntico.

“Seríamos levados a crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos é muito hostil à Igreja Católica, que nunca deixou de proibir a prática da necromancia. Mas esses sentimentos mesquinhos, por mais naturais que pareçam, são estranhos, assegura-se, ao coração dos espiritualistas. Eles fazem justiça ao Evangelho e a seu Autor. Reconhecem que Jesus viveu, agiu, falou e sofreu, como contam os nossos quatro evangelistas. A doutrina evangélica é verdadeira, mas essa revelação, de que Jesus foi o instrumento, longe de excluir o progresso, deve ser completada. O espiritualismo é que vai dar ao Evangelho a sã interpretação que lhe falta e a complementação que ele espera há dezoito séculos.

 “Além disso, quem poderá estabelecer limites ao progresso do Cristianismo ensinado, interpretado e desenvolvido tal qual o é pelas almas desprendidas da matéria, estranhas às paixões terrestres, aos nossos preconceitos e aos interesses humanos? O próprio infinito se nos desvela. Ora, o infinito não têm limites e tudo nos leva a esperar que a revelação do infinito prosseguirá ininterruptamente. À medida que se escoarem os séculos, ver-se-ão revelações acrescidas a revelações, sem que jamais se esgotem esses mistérios, cuja extensão e profundidade parece que aumentam à medida que se libertam da obscuridade que até agora os envolvia.

“Daí resulta, como consequência, que o espiritualismo é uma religião, porque nos põe em íntima relação com o infinito e absorve, alargando-o, Cristianismo, que de todas as formas religiosas, presentes ou passadas é, como facilmente se reconhece, a mais elevada, a mais pura e a mais perfeita. Entretanto, engrandecer o Cristianismo é tarefa difícil, que não pode ser realizada sem derrubar as barreiras por detrás das quais ele se mantém entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira. Menos ardentes e melhor avisados, os espiritualistas só encontram duas, cuja redução lhes parece indispensável, a saber: a autoridade da Igreja Católica e o dogma das penas eternas.

“Constitui esta vida a única prova que ao homem é dado atravessar? A árvore ficará eternamente do lado em que caiu? O estado da alma, após a morte, é definitivo, irrevogável e eterno? Não, responde a necromancia espiritualista. Com a morte nada acaba. Tudo recomeça. A morte é para cada um de nós o ponto de partida de uma nova encarnação, de uma nova vida e de uma nova experiência.

“Segundo o panteísmo alemão, Deus não é o ser, mas o eterno vir a ser. Seja Deus como for, para os espiritualistas parisienses o homem não tem outro destino senão o devir progressivo ou regressivo, conforme seus méritos e obras. A lei moral ou religiosa tem uma verdadeira sanção nas outras vidas, onde os bons são recompensados e os maus punidos, mas durante um período mais ou menos longo, de anos ou de séculos, e não por toda a eternidade.

“O espiritualismo seria a forma mística do erro cujo teólogo é o Sr. Jean Reynaud? Talvez. Seria possível ir mais longe e dizer que entre o Sr. Reynaud e os novos sectários existe uma ligação mais estreita que a da identidade de doutrinas? Talvez, ainda. Mas esta questão, por falta de informações seguras, não será aqui resolvida de maneia definitiva.

“O que importa, muito mais que o parentesco ou as alianças heréticas do Sr. Jean Reynaud, é a confusão de ideias cuja manifestação é o progresso do espiritualismo; é a ignorância em matéria de religião que possibilita tanta extravagância; é a leviandade com que homens, aliás estimáveis, acolhem essas revelações do outro mundo, que não possuem nenhum mérito, nem mesmo o da novidade.

 “É desnecessário remontar a Pitágoras e aos sacerdotes do Egito para descobrir as origens do espiritualismo contemporâneo. Encontrá-la-emos ao manusear os anais do magnetismo animal.

“Desde o século XVIII a necromancia representava um papel importante nas práticas do magnetismo. Vários anos antes que se tratasse dos Espíritos batedores na América, certos magnetizadores franceses obtinham, conforme diziam, da boca dos mortos ou dos demônios, a confirmação das doutrinas condenadas pela Igreja, notadamente a dos erros de Orígenes, relativamente à conversão futura dos anjos maus e dos réprobos.

“É preciso dizer, também, que o médium espiritualista, no exercício de suas funções, pouco difere do sujeito nas mãos do magnetizador, e que o círculo abarcado pelas revelações do primeiro nem mesmo ultrapassa o que limita a visão do segundo.

“Os ensinamentos que a curiosidade pública obtém em assuntos privados, por meio da necromancia, em geral nada ensinam além daquilo que já é sabido. A resposta do médium espiritualista é obscura nos pontos em que as nossas pesquisas pessoais não puderam esclarecer; é clara e precisa naquilo que nos é bem conhecido; emudece em relação a tudo quanto escapa aos nossos estudos e esforços. Numa palavra, parece que o médium tem uma visão magnética de nossa alma, mas não descobre nada além do que nela encontra já escrito. Esta explicação, que parece muito simples, está entretanto sujeita a graves dificuldades. Com efeito, ela supõe que uma alma naturalmente possa ler no fundo de outra alma, sem o auxílio de sinais e independentemente da vontade daquele que se tornaria, para o primeiro que chegasse, um livro aberto e perfeitamente legível. Ora, os anjos bons ou maus não possuem naturalmente esse privilégio, nem quanto a nós, nem nas relações diretas que mantêm entre si. Só Deus penetra imediatamente os Espíritos e perscruta o íntimo dos corações mais obstinadamente fechados à sua luz.

 “Se os mais estranhos fatos espiritualistas que se contam são autênticos, é então necessário recorrer a outros princípios para explicá-los. Geralmente esquecemos que os fatos se referem a um assunto que preocupa fortemente o coração ou a inteligência; que provocou longas pesquisas, e sobre o qual frequentemente falamos fora do âmbito espiritualista. Nessas condições, que não devem ser postas de lado, um certo conhecimento das coisas que nos interessam não ultrapassa em nada os limites naturais do poder dos Espíritos.

“Seja como for, no espetáculo que hoje nos oferecem, não há mais que uma evolução do magnetismo, que se esforça por tornar-se uma religião.

“Sob a forma dogmática e polêmica que deve ao Sr. Jean Reynaud, a nova religião incorreu na condenação do Concílio de Périgueux, cuja autoridade, como todos se recordam, foi gravemente negada pelo culpado.

“Na forma mística que hoje toma em Paris, merece ela ser estudada, ao menos como um sinal dos tempos em que vivemos. O espiritualismo já aliciou um certo número de homens, entre os quais alguns são honrosamente conhecidos no mundo. Esse poder de sedução que ele exerce; o progresso lento, mas ininterrupto que lhe é atribuído por testemunhas fidedignas; as pretensões que alardeia; os problemas que apresenta; o mal que pode fazer às almas, eis, sem dúvida, muitos motivos reunidos para atrair a atenção dos católicos. Tomemos cuidado para não emprestarmos à nova seita mais importância do que ela merece. Mas, a fim de evitar os exageros que tudo ampliam, não caiamos na mania de tudo negar ou amesquinhar. Nolite omni spiritui credere, sed probate spiritus si ex Deo sint, quoniam multi pseudoprophetae prodierunt in mundum. I João, 4: 1).” [1]

[1] “Não creiais em todo Espírito, mas provai se os Espíritos são de Deus, porque são muitos os falsos profetas que já se levantaram no mundo.” (1ª Epístola de João, 4:1).    

L’ABBÉ FRANÇOIS CHESNEL 

Sr. Abade,

O artigo que publicastes no l’Unirers, relativamente ao Espiritismo, contém vários erros, que importa retificar e que, sem a menor dúvida, provêm de um incompleto estudo da matéria. Para refutá-los todos fora necessário retomar, desde os alicerces, todos os pontos da teoria, bem como os fatos que lhe servem de base, o que não tenho a intenção de fazer aqui. Limito-me aos pontos principais.

Fizestes bem em reconhecer que as ideias espíritas aliciaram um certo número de homens, entre os quais alguns honrosamente conhecidos no mundo. Esse fato, cuja veracidade ultrapassa em muito aquilo que imaginais, incontestavelmente merece a atenção das pessoas sérias, porque tantas personalidades notáveis pela inteligência, pelo saber e pela posição social não se apaixonariam por uma ideia despida de qualquer fundamento. A conclusão natural é que no fundo de tudo isto deve haver alguma coisa.

Certamente objetareis que certas doutrinas, meio religiosas, meio sociais, nos últimos tempos encontraram sectários nas próprias fileiras da aristocracia intelectual, o que não as impediu de cair no ridículo. Assim, pois, os homens de inteligência podem ser arrastados por utopias.

A isto responderei que as utopias têm vida curta. Cedo ou tarde a razão lhes faz justiça. Será assim com o Espiritismo, se ele for uma utopia. Mas, se for uma verdade, triunfará de todas as oposições, de todos os sarcasmos, direi mesmo, de todas as perseguições, se as perseguições pertencerem ainda ao nosso século, e os detratores perderão seu tempo. Custe o que custar, seus opositores terão que aceitá-lo, como foram aceitas tantas coisas contra as quais se levantaram protestos em nome da razão. O Espiritismo é uma verdade? O futuro o dirá. Parece, entretanto, já haver um pronunciamento, tal a rapidez com que se propagam essas ideias. E notai bem que não é na classe ignorante e iletrada que se encontram aderentes. É, ao contrário, entre gente esclarecida.

Importa ainda considerar que todas as doutrinas filosóficas são obras de homens, cujos ideais são mais ou menos grandiosos, mais ou menos justos. Todas têm um chefe, em torno do qual se reuniram outros homens partidários do mesmo ponto de vista.

Quem é o autor do Espiritismo? Quem imaginou, certa ou errada, essa teoria? É verdade que se procurou coordená-la, formulá-la, explicá-la. Mas a ideia primeira, quem a concebeu? Ninguém. Ou melhor, todo mundo, porque todos puderam ver, e aqueles que não viram foi porque não quiseram ver ou porque quiseram ver a seu modo, sem romper o círculo de suas ideias preconcebidas, o que os fez ver e julgar mal. O Espiritismo decorre de observações que cada um pode fazer, que não constituem privilégio de ninguém, o que explica a sua irresistível propagação. Ele não é resultado de nenhum sistema individual, circunstância que o distingue de todas as outras doutrinas filosóficas.

Essas revelações do outro mundo, dizeis, não têm nem mesmo o mérito da novidade. Seria, pois, um mérito a novidade? Quem alguma vez afirmou que isto foi uma descoberta moderna? Essas comunicações, sendo uma consequência da Natureza e produzindo-se pela vontade de Deus, fazem parte das leis imutáveis com as quais ele rege o mundo. Consequentemente, elas devem ter existido desde que o homem existe na Terra. Eis por que as encontramos na mais remota Antiguidade, entre todos os povos, tanto em sua história profana quanto na sagrada. A ancianidade e a universalidade desta crença são argumentos em seu favor. Tirar daí conclusões que lhes fossem desfavoráveis seria, antes de tudo, uma falta de lógica.

Dizeis, a seguir, que a faculdade dos médiuns pouco difere da dos sujeitos em mãos dos magnetizadores ou, por outras palavras, do sonâmbulo. Admitamos, até, que haja perfeita identidade. Qual seria a causa dessa admirável clarividência sonambúlica que não encontra obstáculo nem na matéria nem na distância, e que se exerce sem o concurso dos órgãos da visão? Não seria a demonstração mais patente da existência e da individualidade da alma, eixo da religião?

Se eu fosse sacerdote e quisesse fazer um sermão, provando que há em nós algo mais que o corpo, demonstrá-lo-ia de maneira irrecusável pelos fenômenos do sonambulismo natural ou artificial. Se a mediunidade não passa de uma variedade do sonambulismo, nem por isso são os seus efeitos menos dignos de observação. Neles eu encontraria uma prova a mais em favor de minha tese e dela faria uma arma nova contra o ateísmo e o materialismo.

Todas as nossas faculdades são obra de Deus. Quanto maiores e mais maravilhosas, mais elas atestam o seu poder e a sua bondade.

Por mim, que durante trinta e cinco anos fiz estudos especiais sobre o sonambulismo; que o considerei como uma modalidade não menos profunda de quantas modalidades há de médiuns, afirmo, como todos aqueles que não julgam examinando apenas uma face do problema, que o médium é dotado de uma faculdade particular que não permite confundi-lo com o sonâmbulo e que a completa independência de seu pensamento é provada por fatos da maior evidência para quem quer que se coloque nas condições requeridas para observar imparcialmente. Abstração feita das comunicações escritas, qual foi o sonâmbulo que já fez brotar um pensamento de um corpo inerte? Qual o que produziu aparições visíveis e até tangíveis? Qual o que pôde manter um corpo pesado no espaço sem ponto de apoio? Será por um efeito sonambúlico que em minha casa, há quinze dias, em presença de vinte testemunhas, um médium desenhou o retrato de uma jovem falecida há dezoito meses, a qual ele não havia conhecido e cujo retrato foi reconhecido pelo pai, que se achava presente? Será por efeito do sonambulismo que uma mesa responde com precisão às perguntas que lhe são feitas, e até a perguntas mentais?

Certamente, bem poderíamos admitir que o médium estivesse magnetizado. Difícil seria acreditar que a mesa fosse sonâmbula.

Dizeis que o médium não fala com clareza senão de coisas conhecidas. Como explicar o fato seguinte e centenas de outros do mesmo gênero, ocorridos inúmeras vezes e de meu conhecimento pessoal? Um dos meus amigos, excelente médium psicógrafo, pergunta a um Espírito se uma pessoa que ele havia perdido de vista há quinze anos ainda está viva. “Sim”, respondeu ele: “vive ainda. Mora em Paris, na rua tal, número tal”. Ele vai e encontra a pessoa no endereço indicado.

Trata-se de uma ilusão? Seu pensamento poderia sugerir-lhe tal resposta? Se em certos casos as respostas podem coincidir com o pensamento, seria racional concluir que se trata de uma lei geral?

Nisto, como em todas as coisas, os juízos precipitados são sempre perigosos, porque podem ser infirmados por fatos que não foram observados.

Aliás, senhor Abade, minha intenção não é dar aqui um curso de Espiritismo, nem discutir se ele é certo ou errado. Como já ficou dito, bastaria lembrar os numerosos fatos por mim citados na Revista Espírita, bem como as explicações dadas em meus diversos escritos.

Chego, então, à parte do artigo de Vossa Reverendíssima que me parece mais importante.

Destes ao vosso artigo o título: “Uma religião nova em Paris”. Supondo que este fosse, realmente, o caráter do Espiritismo, aí estaria um primeiro erro, pois ele está longe de circuns­crever-se a Paris. Conta milhões de aderentes espalhados nas cinco partes do mundo, e Paris não foi o foco primitivo.

Em segundo lugar, é ele uma religião? Fácil é demonstrar o contrário.

O Espiritismo está baseado na existência de um mundo invisível, formado de seres incorpóreos que povoam o espaço e que não são outra coisa senão as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram os seus envoltórios materiais. São esses seres aos quais demos, ou melhor, que se deram o nome de Espíritos. Esses seres, que nos rodeiam continuamente, exercem sobre os homens, malgrado seu, uma poderosa influência. Representam um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. Assim, pois, o Espiritismo pertence à Natureza e pode-se dizer que, numa certa ordem de ideias, é uma força, como a eletricidade é outra, sob diferente ponto de vista, e como a gravitação universal é uma terceira.

Ele nos desvenda mundos invisíveis, assim como o microscópio nos revelou o mundo dos infinitamente pequenos, de cuja existência não suspeitávamos. Assim, pois, os fenômenos cuja fonte é esse mundo invisível devem ter-se produzido e se produziram em todos os tempos, como bem o menciona a História de todos os povos. Apenas os homens, em sua ignorância, atribuíram tais fenômenos a causas mais ou menos hipotéticas e, a esse respeito, deram livre curso à imaginação, como o fizeram com todos os fenômenos cuja natureza conheciam imperfeitamente.

Melhor observado desde que se vulgarizou, o Espiritismo vem lançar luz sobre uma porção de problemas até aqui insolúveis ou mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião e a prova é que conta como adeptos homens de todas as crenças, os quais, nem por isso, renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto; protestantes de todas as seitas; israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, menos materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com os princípios espíritas.

Assim, pois, o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda questão dogmática. É verdade que ele tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas consequências são compatíveis com o Cristianismo, porque o Cristianismo é, de todas as doutrinas, a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreender o Espiritismo em sua verdadeira essência.

O Espiritismo não é, pois, uma religião. Do contrário, teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode transformar suas opiniões numa religião e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova igreja há uma grande distância e penso que seria imprudência seguir tal ideia. Em resumo, o Espiritismo ocupa-se da observação dos fatos e não das particularidades desta ou daquela crença; da pesquisa das causas; da explicação que os fatos podem dar dos fenômenos conhecidos, tanto na ordem moral quanto na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários, do mesmo modo que a Astronomia não impõe o culto aos astros, nem a Pirotecnia o culto ao fogo.

Ainda mais: assim como o sabeísmo nasceu da Astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais segurança. Ele nos põe em guarda contra os sistemas errados, frutos da ignorância. E a própria religião pode haurir nele a prova palpável de muitas verdades contestadas por certas opiniões. Eis porque, contrariando a maior parte das ciências filosóficas, um dos seus efeitos é reconduzir às ideias religiosas aqueles que se tresmalharam num cepticismo exagerado.

A Sociedade a que vos referis tem seu objetivo expresso no próprio título. A denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de nenhuma seita. Ela tem um caráter tão diverso que os seus estatutos proíbem tratar de questões religiosas. Está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, na verdade, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos resultantes das relações entre o mundo visível e o invisível. Tem seu presidente, seu secretário, seu tesoureiro, como todas as sociedades. Não convida o público às suas sessões, nas quais não há discursos nem qualquer coisa com o caráter de um culto qualquer. Processa seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiramente porque é uma condição necessária para as observações e em segundo lugar porque sabe que devem ser respeitados aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus, porque crê em Deus, em sua onipotência, e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão. Abre as sessões com um apelo geral aos bons Espíritos, porque, sabendo que existem bons e maus Espíritos, cuida para que estes últimos não se venham intrometer fraudulentamente nas comunicações que são recebidas e induzir em erro.

Que prova isto? Que não somos ateus. Mas de modo algum implica que sejamos adeptos de uma religião. Disto teria ficado convencida a pessoa que vos descreveu o que se passa entre nós, se tivesse acompanhado os nossos trabalhos, principalmente se os tivesse julgado com menos leviandade e talvez com espírito menos prevenido e menos apaixonado.

Os fatos protestam, portanto, por si próprios, contra a qualificação de nova seita que dais à Sociedade, certamente por não a conhecerdes melhor.

Terminais o artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo faz às almas. Se as consequências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma, de sua individualidade após a morte, do livre-arbítrio do homem, das penas e recompensas futuras, seria uma doutrina profundamente imoral. Longe disso, ele prova, não pelo raciocínio, mas pelos fatos, essas bases fundamentais da religião, cujo inimigo mais perigoso é o materialismo. Ainda mais: por suas consequências ensina a suportar com resignação as misérias desta vida; acalma o desespero e ensina os homens a se amarem como irmãos, conforme os divinos preceitos de Jesus. Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos endurecidos ele encaminhou; quantas vítimas arrancou ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada àqueles que abreviam a vida, contrariando a lei de Deus; quantos ódios acalmou, aproximando inimigos! É a isto que chamais fazer mal às almas? Não. Não podeis pensar assim e apraz-me supor que, se o conhecêsseis melhor, o julgaríeis de outra maneira.

Direis que a religião pode fazer tudo isto. Longe de mim contestá-lo, mas acreditais que para aqueles que ele encontrou rebeldes teria sido melhor que continuassem numa incredulidade absoluta? Se o Espiritismo triunfou sobre ela; se lhes apresentou claramente aquilo que se lhes afigurava obscuro; evidente aquilo que lhes parecia duvidoso, onde está o mal? Por mim direi que em vez de perder almas, ele as salvou.

Atenciosamente,

ALLAN KARDEC.

Fonte: Revista Espírita, maio de 1859

Ensaio teórico sobre a composição do perispírito

Por Maria Ribeiro

Este estudo tem o objetivo de reunir algumas informações dispersas ao longo da codificação sobre o que se designa por períspirito a fim de conceber-se ideia mais exata sobre ele.* 

Apesar do máximo esforço de Kardec e dos Espíritos na explicação acerca dos diversos conceitos e fenômenos espíritas, muitas vezes recorrendo a comparações por demais materiais para que se pudesse apreendê-los, não é raro que se deparem com dúvidas ou falsos entendimentos acerca de pontos capitais. Um deles diz respeito aos fluidos mais próximos da materialidade, ou seja, da categoria dos ponderáveis, o perispírito e, consequentemente, o fluido vital.

Em seu conceito vulgarizado, períspirito é o elo que une o Espírito à matéria.  Trata-se do envoltório pelo qual o Espírito propriamente dito se reveste e pode ser reconhecido e identificado numa aparição. O perispírito envolve o Espírito em qualquer grau que esteja, antes, durante e após a morte. E, durante a vida material, penetra o corpo físico.  É por seu intermédio que o Espírito realiza todas as ações da inteligência, seja no mundo físico ou moral. No mundo físico, entretanto, sua ação é percebida através das manifestações com o concurso dos médiuns. 

Ao perispírito designam-se concepções como revestimento de uma substância vaporosa  e invólucro semi-material.1,  Sendo que na Introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec se refere a ele como uma espécie de envoltório (d'enveloppe) semi-material.

O períspirito não pode ser entendido como corpo, que seja fluídico, (fluídico, sem dúvida, mas não corpo) etéreo, astral ou designação similar, conforme abordado por alguns escritos de nomes ilustres que adotaram as crenças esotéricas, pela razão que a partir de agora vamos abordar.

Na questão 257 de O Livro dos Espíritos, encontra-se esta definição para o períspirito:

“O períspirito é o laço que une o Espírito à matéria do corpo, sendo tirado do meio ambiente, do fluido universal; contém ao mesmo tempo, eletricidade, fluido magnético e, até certo ponto, a matéria inerte. Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria, o princípio da vida orgânica, mas não da vida intelectual, por que esta está no Espírito. É, além disso, o agente das sensações externas. No corpo, essas sensações estão localizadas pelos órgãos que lhes servem de canais. Destruído o corpo, as sensações ficam generalizadas.”

Quando se diz que o perispírito “contém ao mesmo tempo, eletricidade, fluido magnético e, até certo ponto, a matéria inerte”, diz-se que o períspirito é o resultado de variados estados de fluidos que se aglomeram, embora sem se confundirem, e, de certa forma, conservarem sua independência. A ideia de fluido perispirítico como sendo uma aglomeração molecular de fluidos iguais, semelhantes é abandonada para dar lugar a um composto de fluidos distintos: fluido magnético e fluido elétrico, que por conceito são o fluido vital , e ainda o fluido mais materializado – o que se chama matéria inerte, talvez um estado o mais próximo da ponderabilidade. Além destes fluidos conhecidos, provavelmente há os totalmente desconhecidos que ainda entram na composição perispiritual que estão mais em contato com o Ser inteligente. Mas é imprescindível lembrar que os fluidos não permanecem os mesmos, pois, de acordo com a evolução do Espírito, eles se purificam.

O fluido vital, por sua vez, em seu estado mais simples, quer dizer, sem combinação, está na forma de fluido magnético animalizado , ou seja, o estado em que é absorvido e assimilado pela matéria quando lhe fornece a vida orgânica. Isto faz inferir que seja o mesmo estado no qual é absorvido pelas plantas e animais, incluindo o homem, variando sua composição de acordo com as exigências de cada reino. No caso dos reinos superiores, ele, ainda sem perder sua independência, obtém ou agrega novas formas moleculares, ou novas misturas fluídicas, em sua composição, dando origem ao envoltório, e, no homem, o envoltório se torna mais bem elaborado, o perispírito. 

Poder-se-ia inferir que o perispírito coadune os fluidos vitais mais materializados da sua composição no momento da encarnação, daí o dizer dos Espíritos que “se desenvolve com o corpo. Não dissemos que esse agente sem a matéria não é a vida? É necessária a união dessas duas coisas para produzir a vida.”  Assim, faz sentido que ao desencarnar estes fluidos retornem á massa. 

As questões 27 e 64 de O Livro dos Espíritos dão a conhecer que a matéria, o Espírito e o fluido cósmico universal são os elementos gerais do universo. Do fluido cósmico se origina tudo o que existe, e se distingue do elemento material, pois, possui propriedades especiais, embora guardem relativa afinidade entre si. Devido às suas infinitas modificações, se liga à matéria, conforme ver-se-á, e entre outras coisas, imprime-lhe forma.

A questão 427 de O Livro dos Espíritos ainda traz a definição de eletricidade animalizada, électricité animalisée, como sendo uma das modificações do fluido cósmico. Pode-se inferir que há nuances muito sutis nestes estados fluídicos, do contrário usaria-se o termo no singular, e não no plural: modifications du fluide universel, conforme se pode verificar. 

Em resumo: a composição do perispírito não pode ser uma única substância fluídica. Em outras palavras, chama-se perispírito ao conjunto de componentes fluídicos que formam o envoltório com o qual o Espírito se reveste. Quando se diz fluido perispirítico deve-se entender exatamente a combinação de mais de uma modificação do fluido universal, entre eles, aquele que dá a vida orgânica. Por isso que, em dadas vezes, o perispírito é designado como sendo este agente,  enquanto o fluido vital é designado por elo entre matéria e Espírito.  É como se o uso de um ou de outro se fizesse por extensão, já que o segundo está contido no primeiro. O outro fluido componente seria o fluido elétrico, cuja função seria a do condutor, ou seja, através dele que o Espírito recebe as sensações exteriores. Isto lhe confere todas as propriedades necessárias à vida física, bem como ao desenvolvimento dos mecanismos da mediunidade e também à vida espírita, além de todos os processos anímicos, como o do poder magnético.

Seria conveniente questionar se o próprio fluido vital seja o fruto de uma combinação fluídica, onde seu estado simples seria o fluido magnético animal, e, a partir de associações com outros fluidos, como o elétrico, o torne absorvível pelos seres mais bem elaborados da natureza. Na verdade, a designação do fluido magnético animal sugere que o termo animal seja para lhe imprimir a função que tem o fluido magnético: animar, dar vida.

Os Espíritos se reportam ao fluido cósmico universal como sendo a matéria primitiva, a substância através da qual tudo teve e tem origem e na qual tudo está mergulhado.  O conhecimento empírico desta verdade, ou seja, dos diversos estados fluídicos, pode ser a razão para a crença nos diversos corpos do Espírito. Razão que sucumbe diante a revelação espírita. A questão 94 de O Livro dos Espíritos, entretanto, afirma que o mencionado fluido universal está particularizado segundo a natureza de cada mundo, ou seja, seria impróprio dizer fluido universal quando ele se particulariza em cada mundo. Eis a questão:

De onde o Espírito toma o seu invólucro semi-material¿

- Do fluido universal de cada globo. Por isso ele não é o mesmo em todos os mundos. Passando de um mundo para outro o Espírito troca se envoltório como mudais de roupa.

O que haveria de comum entre os mundos¿ Ou melhor, o que seria realmente universal¿ Esta é a pergunta. E com esta pergunta é preciso admitir que, se cada globo tem seu próprio fluido ‘universal’, tudo o que é criado num pode não encontrar correspondência noutro, e, para que haja solidariedade entre eles tem que haver elos que façam com que tenham continuidade. É por isso que os Espíritos afirmam que seria impossível classificá-los em categorias , mesmo se referindo aos fluidos terrestres, pois que são infinitos. 

Também afirmam as Letras Espíritas que os fluidos não têm qualidades originais, mas as que lhe dão os pensamentos. Sendo estes bons ou maus, os fluidos serão salutares ou maléficos.  Ou seja, nada há no homem de imutável.

Nas manifestações mediúnicas, o perispírito do médium se expande, formando em torno como que um campo magnético, razão pela qual os Espíritos se sentirão, de certa forma, atraídos. Mas, quais seriam os componentes do perispírito que exercem este papel mais abundantemente¿ O fluido vital estaria presente em todos os seus estados¿ E isto seria o sinal determinante do grau e potência mediúnicos¿ De acordo com a pergunta 19 do capítulo IV da segunda parte de O Livro dos Médiuns:

Por que todo mundo não pode produzir o mesmo efeito, e por que os médiuns não têm a mesma força¿

- Isso depende do organismo e da maior ou menos facilidade com a qual a combinação dos fluidos pode se operar; depois o Espírito do médium simpatiza mais ou menos com os Espíritos estranhos que nele encontram a força fluídica necessária. Ocorre com esta força como com a dos magnetizadores, ser maior ou menor...  

O fluido vital em seu estado mais material (matéria inerte que se reportam os Espíritos como um componente do perispírito), ou seja, mais próximo da matéria, fluido que guarda mais íntima afinidade com o corpo físico, deixa de fazer parte da composição perispirítica na ocasião do desencarne.  Não possuíndo mais este estado fluídico, os Espíritos recorrem aos médiuns, que são encarnados com uma aptidão especial, da qual, com ou sem o seu conhecimento, agem de forma a não deixar dúvidas de que se trata de uma inteligência oculta.

Há médiuns cuja constituição permite uma grande emanação deste fluido, de tal forma generosa, o que torna o trabalho dos Espíritos mais fácil no que tange à possibilidade para realizarem manifestações físicas, como movimentação e formação de objetos, as aparições, até mesmo tangíveis; e inteligentes, como a psicografia. Muito embora, toda ação espírita que manifeste independência, é por isto mesmo, inteligente.

Esta emanação fluídica varia de indivíduo para indivíduo , e, com certeza, há variações em suas composições, ou seja, enquanto um médium possui mais fluido animalizado em seu perispírito, outro o  possui em menor quantidade, tendo outro em maior volume, e assim por diante.  Por isso a grande variedade de faculdades mediúnicas e em diversos graus, pois, ao que parece, cada fluido proporciona uma dada intensidade para a faculdade. Esta teoria explicaria como dois médiuns veem o mesmo Espírito de maneiras diferentes.

Outro ponto digno de nota é a respeito do destino destes fluidos após o desencarne. Na questão 70 de O Livro dos Espíritos a informação é que “a matéria inerte se decompõe e toma nova forma; o princípio vital retorna à massa”. Ou seja, o Ser permanece o mesmo, outros componentes do seu perispírito lhe resguardam a identidade, mais que isto, a individualidade.

Além disso, há de se questionar se não há os Espíritos que, a despeito do desencarne, carreguem consigo algo deste fluido animalizado, mais precisamente da matéria inerte, pois, conforme em O Livro dos Médiuns: 

Foi dito que a densidade do perispírito, se se pode exprimir assim, varia segundo o estado dos mundos; parece que varia também no mesmo mundo segundo os indivíduos. Nos Espíritos avançados moralmente, é mais sutil e se aproxima da dos Espíritos elevados; nos Espíritos inferiores, ao contrário, se aproxima da matéria, e é o que faz que esses Espíritos de baixo estágio conservem por tempo tão longo as ilusões da vida terrestre; eles pensam e agem como se estivessem ainda vivos; têm os mesmos desejos e, se poderá dizer, a mesma sensualidade. Essa grosseria do perispírito dando-lhe mais afinidade com a matéria, torna os Espíritos inferiores mais próprios para as manifestações físicas. 

Ora, se neste estágio de inferioridade o Espírito tem afinidade com a matéria mais grosseira e por isso está mais apto às manifestações físicas, deve guardar em sua composição perispirítica algo verdadeiro de matéria, uma vez que, se dependessem apenas da vontade, os Espíritos mais elevados também seriam igualmente capazes. Ou seja, a força moral apenas não basta para estes efeitos. 

Além disso, mesmo estando no mundo espírita, encontra em sua própria condição fluídica, meios de “pensar e agir como se ainda vivessem no mundo físico, conservando ilusões da vida terrestre.” Sendo assim, podem forjar determinadas situações e efeitos que não justificam sua atual situação. Em outras palavras, manterão seu estado fluídico “denso” enquanto suas mentes estiverem voltadas para as ocupações e interesses materiais. 

A questão 186 de O Livro dos Espíritos esclarece prontamente este ponto, afirmando que, ao atingir o estado de pureza, os Espíritos passam a revestir um perispírito tão etéreo que parecerá não existir para os que ainda permanecem em baixa elevação. Isto explica porque os Espíritos imperfeitos não veem sempre os mais evoluídos. Quando estes querem se fazer ver, ou quando isto for útil, absorvem fluidos mais grosseiros para adensar os seus próprios e assim se fazerem visíveis. Parece o que comumente se chama de “baixar a vibração”. 

Esta ideia se ampara pelas questões 87 e 1011 e a própria supra citada 186 de O Livro dos Espíritos onde as informações se cruzam e dão conta de que os Espíritos não estão separados por locais, lugares, ambientes espirituais senão no sentido metafísico. Os Espíritos falam de estados e não de mundos espirituais circunscritos propriamente ditos. Alguns se valem dos mundos transitórios citados nas questões 234 a 236 da mesma obra magna para amparar a ideia de uma morada dos Espíritos, mas se esquecem de que os mundos transitórios são mundos físicos em formação.

Portanto, a ideia de organização do perispírito, tornando-o corpo perde totalmente o sentido quando refletidas e devidamente analisadas as ilações apontadas. Um exemplo que poderá ilustrar o que se quis dizer é a manga comprida de uma camisa, por exemplo: ela recobre o braço, toma inclusive a sua forma, mas ela não é o braço mesmo, é o seu revestimento.

Isto significa que o fluido perispirítico não forma um corpo, mas um revestimento, um envoltório adimensional, enquanto o entendimento de corpo requer uma visão tridimensional. Por mais materializados que sejam alguns dos fluidos que o compõem, sua natureza espiritual, ou seja, aqueles fluidos ainda em estados desconhecidos, se sobrepõe à concepção da matéria propriamente dita, ou melhor, a matéria que ainda carregam, de forma alguma tem as mesmas propriedades e exigências da matéria mais grosseira da vida terrestre.

***

*Trata-se, no entanto, de reflexões especulativas, segundo nossa compreensão atual.

Referências:

  KARDEC, Introdução de O Livro dos Espíritos.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 93.
  KARDEC, cap. I, item 55 de O Livro dos Médiuns.
  KARDEC, cap. XI,  item 17 de A Gênese.
  KARDEC, cap. I, seg. parte, item 4 de O Céu e o Inferno.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 93.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 94.
  KARDEC, Introdução item II de O Livro dos Espíritos.
  KARDEC, cap. IV, item 74 de O Livro dos Médiuns.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 67.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 70.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 257.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 65.
  KARDEC, cap. XIV, item 2, A Gênese.
   KARDEC, cap. XIV, item 17, A Gênese.
  KARDEC, cap. XIV, item 7, A Gênese.
  KARDEC, cap. III, item 65-8, O Livro dos Médiuns.
  KARDEC, O Livro dos Espíritos, 66.
  KARDEC, comentário q. 70.
  KARDEC, cap. IV, 74/12 (nota), O Livro dos Médiuns. 



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Mestres antecessores de Kardec

Por Dora Incontri

O espiritismo não surgiu do nada. Todas as idéias se filiam a uma história. Fazem parte da construção lenta do processo evolutivo do homem. Uma tarefa urgente aos estudiosos da doutrina é contextualizá-la, apreendê-la no devir da História, para melhor compreender suas raízes, seu desenvolvimento e sua importância no tempo e no espaço.

Não se trata de situar o espiritismo como um reflexo das estruturas econômicas vigentes na época do seu nascimento ou como mera expressão de uma dada cultura. Esse o erro brutal das concepções antropológicas, exibidas nas universidades atuais. Nessa linha de interpretação, não existiria conteúdo de verdade – ou pelo menos, não há a preocupação por uma possível verdade proclamada por esta ou aquela manifestação cultural ou religiosa. O que há são idéias que refletem o contexto sócio-político-econômico de uma época. Assim, teríamos um espiritismo explicado e acabado dentro da ótica do século XIX, da herança racionalista francesa, fruto de um momento histórico. Essa visão relativista das idéias é conseqüência de toda a corrente inaugurada, de um lado pelo marxismo e do outro pelo positivismo – ambos aliás, primos-irmãos em ideologia e cujos descendentes são a sociologia e a antropologia atuais. Todas essas matizes de interpretação têm em comum a redução da realidade ao seu aspecto social. E sob essa ótica, não são mais as idéias, nem os indivíduos que movem o mundo, mas a sociedade, com sua divisão em classes, com seus conflitos de interesses e sua ânsia de progresso (predominantemente material) que gera idéias, e essas não têm qualquer sentido intrínseco de verdade atemporal.

Ora, justamente num ramo dessa corrente – o positivismo – que tanta influência teve na história do Brasil, querem alguns incluir Kardec. O positivismo, além de realizar esse corte materialista no real, o oposto do que faz o espiritismo, que aumenta a nossa percepção ao infinito, realizou, no plano histórico, a fragmentação das ciências, originando a especialização excessiva do conhecimento, também em oposição à proposta de síntese e de entrelaçamento das áreas, feita por Kardec.

É polêmico se Kardec teria ou não uma afinidade com o positivismo. Os espíritas se dividem. Os não-espíritas são quase unânimes em dizer que sim, mas há aí uma evidente má fé, porque a afirmação não vem acompanhada de estudos sérios e profundos (este é o caso de François Laplantine em seu livro, bastante superficial: LAPLANTINE, François e AUBRÉE, Marion. La Table, le Livre et les Esprits. Paris: JC Lattes, 1990) e fica patente a intenção de colocar o espiritismo no rol das doutrinas positivistas fracassadas e obscurantistas do século XIX. Pessoalmente, partilho a idéia de que há um abismo entre ambas as doutrinas, embora esta ou aquela idéia isolada possam ser aproximadas. O assunto requer um estudo mais aprofundado, mas apenas de passagem cito as seguintes discrepâncias: 1) o positivismo é coletivista, endeusa a humanidade, fazendo dela a sua religião; o espiritismo faz apelo ao indivíduo e não se perde em teorias totalitárias, em que o o ser individual se sacrifique em prol de um todo abstrato. 2) Isso se baseia nas opostas concepções de homem esposadas por ambas as doutrinas: para o positivismo, o homem não passa de fruto da espécie animal. O seu materialismo grosseiro está mesmo ultrapassado pelos atuais avanços da física. Para o espiritismo, o homem é antes de tudo espírito e aí reside o seu valor e a sua dignidade de ser, candidato à angelitude, herdeiro de potencialidades divinas. 3) O positivismo quer reduzir toda a apreensão do mundo à ciência materialista. Desprezou a filosofia e fez da religião algo meramente social; ao passo que o espiritismo quer promover o diálogo e a concordância entre as diversas formas de captação do real. 4) O positivismo tem uma estrutura doutrinária sistemática, fechada e foi contaminado por um personalismo patológico, que se manifestou no culto hierárquico ao seu fundador, Auguste Comte. O espiritismo pretende ser uma doutrina assistemática, como várias vezes advertiu Kardec, aberta e sem nenhuma forma de idolatria hierárquica.

Associar, pois, o espiritismo ao positivismo revela falta de compreensão do verdadeiro sentido da doutrina codificada por Kardec, ou então pode se tratar de uma intenção não confessada de denegri-la. Não estou só nessa minha interpretação: Léon Denis criticou diversas vezes o materialismo positivista e, aqui no Brasil, Bezerra de Menezes se ergueu em polêmica com seus representantes.

Assim, fazer a história do espiritismo não é enquadrá-lo em alguma dessas teorias reducionistas da realidade, com as quais se trabalha atualmente nos redutos do academicismo mais radical. Trata-se, isso sim, de conceber a evolução das idéias filosóficas, religiosas e científicas e observar como essa evolução desemboca no espiritismo. Trata-se de fazer história das idéias e, se há alguma filosofia permeando a apreensão histórica, é a própria filosofia espírita que pode nos dar os elementos para a compreensão mais acurada do processo evolutivo. Essa apreensão é feita de maneira abrangente nas obras de J. Herculano Pires — o único até hoje a quem poderíamos chamar de filósofo espírita da história das idéias. Em seus livros, ele caminha de Platão a Sartre com a desenvoltura de alguém que se coloca do alto de uma montanha e vê as contribuições particulares de cada pensador, como tijolos, levados à construção do edifício da verdade.

As raízes mais evidentes e ainda pouco relacionadas com Kardec saltam aos olhos em seu mestre, Pestalozzi e no mestre de Pestalozzi, Rousseau. Em ambos, vamos encontrar subsídios para esse estudo. Entretanto, não haverá aqui uma referência mais específica ao tema da imortalidade da alma, pois trata-se de um conceito por demais obviamente enraizado na linha de pensamento aqui investigada. Desde a antiga filosofia grega, até um racionalista como Descartes, passando por toda a tradição cristã, sem contar as diversas doutrinas orientais, a imortalidade sempre foi o ponto de apoio de inúmeras formas de estruturação doutrinária.

Passemos, portanto, aos dois autores, que evidentemente aceitavam a imortalidade, mas que nem só por isso se ligam à corrente histórica do espiritismo. Em torno de Rousseau e em torno de Pestalozzi até hoje se acendem polêmicas para discutir uma questão mais nominal, que essencial: teriam sido eles iluministas ou românticos, racionalistas ou sentimentalistas? Ambos estão enraizados no século XVIII, berço, ou pelo menos palco da consolidação, de um racionalismo feroz, que atingiu o apogeu na ironia de um Voltaire ou no materialismo de um Helvetius e acabou entronizando a deusa Razão, durante a Revolução Francesa. Mas ambos se projetam igualmente no século XIX, influenciando o romantismo alemão e francês, abrindo as comportas de uma torrente de paixão, sentimento e religiosidade, nos tons literários de Victor Hugo ou nos delírios grandiloqüentes dos filósofos alemães… (O próprio século XIX, aliás, é o palco tanto do romantismo mais exarcebado, quanto das correntes cientificistas materialistas. Esse século foi tão fértil em idéias, movimentos e talentos, que pelo menos alguns volumes seriam necessários para situar o espiritismo nesse cenário, abarcando os aspectos estéticos, políticos, filosóficos, científicos, etc.)

Embora haja divergências entre Rousseau e Pestalozzi, pois esse último, como discípulo, ultrapassou o mestre, sobretudo na aplicação prática das idéias educacionais, pode-se falar de muitas afinidades entre ambos. A primeira delas, que é justamente a causa dessas polêmicas, é a seguinte: tanto um como o outro não podiam se desfazer dessa herança racionalista, iniciada por Descartes já um século antes. Nem mesmo pretendiam a apreensão irracional da vida, banindo as conquistas da humanidade nesse sentido. Uma prova disso é a rejeição dos dogmas irracionais das igrejas vigentes, a preocupação pedagógica do desenvolvimento racional do educando, para o que Pestalozzi, por exemplo, baseado em Rousseau, criou um método próprio, que sempre partia do mais simples ao mais complexo, da unidade ao composto, da observação à teoria, e assim por diante.

Entretanto, ambos são igualmente declarados como precursores ou mesmo fundadores do romantismo – o primeiro da estética e da filosofia românticas e o segundo, da pedagogia romântica. É que, tanto por temperamento, quanto provavelmente por suas respectivas missões, Rousseau e Pestalozzi se esforçaram por fugir de um racionalismo estéril, sufocante do espírito e apartado do sentimento moral. Tentam restabelecer os direitos do coração – nem de longe entendido aqui num sentido piegas ou mesmo romantiqueiro. Para eles, a moral – sua preocupação básica – não é mera questão racional, não pode ser apenas encarada do ponto de vista pragmático ou do puro dever social, ou ainda como dogma institucional. A moral é antes de tudo um despertar de sentimentos elevados. Para Rousseau, a própria consciência não se manifesta através de regras, mas pela voz do sentimento – a primeira reação a uma infração moral é o sentimento de remorso.

Para ambos, o próprio desenvolvimento da razão e sua capacidade de compreender e de pesquisar a verdade está relacionada com a elevação de sentimentos. Ou seja, a reta razão, de que fala Rousseau, só pode ser exercitada se aquecida pela luz do sentimento puro. Pestalozzi vai ainda mais longe. Em Rousseau, talvez possamos ainda falar de uma dicotomia, ou pelo menos de uma dualidade, de razão e sentimento, um influenciando o outro, mas ainda apreendidos em compartimentos estanques. Já em Pestalozzi, existe uma apreensão unitária do homem, onde razão, sentimento e ação, se integram e se entrelaçam. Pestalozzi propõe uma educação integral do homem, para desenvolver harmoniosamente todas as potências do espírito, simbolizadas na tríade: cabeça, mão, coração.

Erram, portanto, tanto os que reduzem Rousseau e Pestalozzi a meros iluministas, como aqueles que os incham como românticos acabados. Eles quiseram justamente promover o equilíbrio do homem, resgatando o sentimento, desprezado pelos iluministas mais radicais, mas sem abdicar da razão. Foram autores de transição entre duas épocas, e portanto, assimilaram o que havia de melhor no passado, mas semearam os germes do futuro. Estão, isso sim, acima da rotulagem das escolas de pensamento, porque os verdadeiros gênios transcendem sempre o mero paradigma vigente.

Isso tudo se torna ainda mais flagrante na religiosidade de Rousseau e de Pestalozzi. Antes de mais nada, não é demais lembrar que ambos nasceram no mesmo país protestante, a Suíça, e foram alimentados numa fé que, embora já cristalizada institucionalmente – ou seja, já cadaverizada em sua essência – pressupunha algum avanço em relação à Igreja de Roma. A Reforma de fato deu um grande impulso, dentro das limitações das circunstâncias históricas, ao processo de volta ao cristianismo primitivo e de dessacralização da Igreja Católica.

No caso de Pestalozzi, a influência foi ainda mais benéfica. Pois se Rousseau nasceu em Genebra, onde o temível e árido Calvino havia pontificado, Pestalozzi nasceu em Zurique, onde através da língua e, portanto, da cultura alemã e pelas mãos de seu avô pastor, lhe chegaram os ventos mais amenos do pietismo alemão. O pietismo foi um movimento dentro da Reforma, que pretendia justamente fugir da aridez teológica para reacender a prática e a devoção cristãs. Seu fundador, Philipp Jacob Spener (1635-1705), pretendia revitalizar a presença de Jesus no coração dos fiéis e pregava que o verdadeiro cristianismo se dá antes pela prática da caridade do que pelas especulações teológicas, e antes realizado por leigos, do que monopolizado pelo clero… É supérfluo dizer da afinidade de algumas idéias pietistas com a proposta espírita. Aliás, segundo os livros de história das religiões, num sentido mais vasto, são chamados de pietistas, quaisquer grupos cristãos – e não apenas o fundado por Spener – cujo núcleo doutrinário seja a prática individual da devoção e da moral de Cristo, em oposição às formas institucionais das igrejas.

Eis um ponto-chave, tanto em Rousseau como em Pestalozzi: ambos baseiam a religiosidade no indivíduo. E esse indivíduo é concebido de forma integral, guiado pela razão e iluminado pelo sentimento. A religião não emana de uma fonte artificial, implantada e mantida pelos homens, de alguma igreja, hierarquia ou instituição qualquer. A religião emana do homem, porque ele é animado pelo Espírito Divino e a natureza à sua volta também o é. A religião é essa forma de sintonia com a própria essência divina, com a essência divina da natureza, e com o Criador, que a tudo transcende; uma sintonia, sem a necessidade de intermediários, sem a obrigação de se obtê-la ou mesmo manifestá-la através de qualquer tipo de ritualística.

A única conseqüência óbvia e desejável dessa conexão consigo mesmo, com o cosmos e com o Ser Supremo é a prática da fraternidade, da justiça e do amor na sociedade. Portanto, a religião individual se traduz naturalmente em prática moral. Assim diz Pestalozzi:

E a fonte da justiça e de toda a felicidade no mundo, a fonte do amor e do sentido de fraternidade humana, repousa no grande pensamento da religião: de que somos filhos de Deus, e de que a fé nessa verdade é a base segura para toda a felicidade do mundo. (…) toda força interior da moralidade, do esclarecimento e da sabedoria repousa nessa base: na fé da humanidade em Deus. (PESTALOZZI, Johann Heinrich: Abendstunde eines Einsiedlers. in Kleine Schriften zur Volkserziehung und Menschenbildung. Bad Heilbrunn: Ed. Julius Klinkhardt, 1983, p. 17)

Digno de nota é que se Rousseau é muitas vezes erroneamente interpretado como mero deísta, com uma noção ainda bastante iluminista de Deus, em que a Divindade teria sido causa do mundo, mas não estaria mais presente no universo, ao contrário, Pestalozzi é, algumas vezes, interpretado erroneamente num sentido oposto, o de uma concepção totalmente panteísta de Deus. Nenhuma das duas posições é verdadeira. Rousseau evoluiu do iluminismo deísta para uma concepção mais abrangente de Deus, em que ele é causa primeira, mas também imanência na consciência humana e presença viva em todas as coisas. E Pestalozzi, apesar de se referir constantemente à imanência de Deus, ainda o considera como Ser transcendente e dirige-se a Ele em prece.

A idéia mais evidente, nesse devir evolutivo, que aqui se esboça e que vem desde o Renascimento, atingindo sua culminância nos séculos XVIII e XIX, é a restituição aos homens de sua autonomia individual, é a tentativa progressiva de romper as tutelas, para reconhecer a infinita capacidade humana de pensar, procurar a verdade e encontrar a si mesmo e a Deus. Nesse movimento de libertação, contudo, muitos se perderam na rebeldia completa, endureceram seus corações na luta e caíram no materialismo grosseiro ou em outras formas de tutela, que não as religiosas, como as tutelas de Estados totalitários. E no entanto, entre os que mais permaneceram em equilíbrio, procurando reconhecer a autonomia humana, mas promovendo ao mesmo tempo o homem em sua totalidade, e acenando-lhe sobretudo a tutela de Deus – de cujas leis não podemos escapar, pois estamos inseridos num universo, por Ele sustentado – estão justamente Rousseau e Pestalozzi.

O traço original e comum a ambos os autores, que apenas é encontrado tão fortemente num dos maiores filósofos de todos os tempos – Platão – e no antecessor de ambos – Comenius – é o desaguar de todas as idéias na idéia magna da educação. O maior e talvez único meio de reintegrar o homem em si mesmo, entregando-lhe a tutela de si próprio, cultivando-lhe a reta razão e o sentimento elevado, é dado pelo ato pedagógico.

A diferença entre os dois educadores, e que indica a superioridade de Pestalozzi, é que Rousseau, apesar de sua aguda consciência da moral e da religião em seu sentido mais elevado, não foi capaz de traduzi-la em atos e há sempre a contradição do pensador Rousseau, proclamando a beleza de uma educação revolucionária em Emílio, com o pai Rousseau, abandonando os próprios filhos. (É preciso que se diga do seu intenso arrependimento, ainda em vida, por tal feito, que também teve algumas atenuantes, dentro das circunstâncias de sua posição familiar.) Ao invés, Pestalozzi projetou suas idéias em ação de amor e socorreu crianças órfãs, educou pobres e ricos, ajudou a erguer um novo conceito de educação, teorizando e praticando uma pedagogia do amor. Ele precedeu o espiritismo não apenas em idéias, mas foi um fiel representante da máxima "Fora da Caridade não há Salvação".

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um drama íntimo - Apreciação Moral

Por Allan Kardec


O Monde Illustré de 7 de fevereiro de 1863 conta o drama de família seguinte, que comoveu, a justo título, a sociedade de Florença. O autor assim começa a sua narração:

“Eis a história. Ele era um velho de setenta e dois anos; ela, uma jovem de vinte. Ele a havia esposado há três anos... Não vos revolteis! O velho conde, originário de Viterbo, era absolutamente sem família, o que é muito estranho para um milionário! Amália não era sem família, mas era sem milhões! Para compensar as coisas, quase a tendo visto nascer, sabendo-a de bom coração e de um espírito encantador, ele tinha dito à mãe: ‘Deixa-me paternalmente casar com Amália. Durante alguns anos ela cuidará de mim e depois...’

“Fez-se o casamento. Amália compreende os seus deveres; cerca o velho dos mais assíduos cuidados e lhe sacrifica todos os prazeres de sua idade. Tendo o conde ficado cego e semipa­ralítico, ela passava as mais longas horas do dia a lhe fazer companhia, a fazer leitura, a lhe contar tudo o que podia distraí-lo e encantá-lo. ‘Como sois boa, minha cara filha!’ exclamava ele muitas vezes, tomando-lhe as mãos e atraindo-a para depor sobre sua fronte o casto e doce beijo do enternecimento e do reconhecimento.

“Um dia, entretanto, ele percebe que Amália se afasta de sua pessoa; que, posto sempre assídua e cheia de solicitude, ela parece temer sentar-se a seus pés. Uma suspeita atravessa seu espírito. Uma noite, quando ela fazia leitura, ele lhe toma o braço, a atrai, enlaça-lhe a cintura e então, soltando um grito terrível, cai esgotado de emoção e de cólera aos pés da jovem! Amália perde a cabeça; lança-se para a escada, atinge o andar superior, precipita-se pela janela e cai estatelada. O velho sobreviveu apenas seis horas a essa catástrofe!” 

Perguntarão que relação pode ter esta história com o Espiritismo? Vê-se aí a intervenção de alguns espíritos brincalhões? - Essas relações estão nas deduções que o Espiritismo ensina a tirar das coisas aparentemente mais vulgares da vida. Quando o céptico ou o indiferente não vê num fato senão um motivo para a ironia, ou passa ao lado sem notar, o espírita o observa e dele tira uma instrução, remontando às causas providenciais, sondando-lhes as consequências para a vida porvindoura, conforme os exemplos que as relações de além-túmulo lhe oferecem, da justiça de Deus.

No fato acima relatado, em vez de simples e agradável anedota entre ele, o velho, e ela, a jovem, o Espiritismo vê duas vítimas. Ora, como o interesse pelos infelizes não termina no sólio da vida presente, mas os segue na vida futura, na qual acredita, ele pergunta se aí não há um duplo castigo para uma dupla falta, e se ambos não foram punidos por onde pecaram. Ele vê um suicídio, e como sabe que esse crime é sempre punido, ele se pergunta qual o grau de responsabilidade em que incorre o que o cometeu.

Vós que pensais que o Espiritismo só se ocupa de duendes, de aparições fantásticas, de mesas girantes e de Espíritos batedores, se vos désseis ao trabalho de estudá-lo, saberíeis que ele toca em todas as questões morais. Esses Espíritos que vos parecem tão risíveis, e que, entretanto, não passam de almas dos homens, dão a quem observa as suas manifestações a prova de que ele próprio é Espírito, momentaneamente ligado a um corpo. Ele vê na morte não o fim da vida, mas a porta da prisão que se abre ao prisioneiro para restituí-lo à liberdade. Aprende que as vicissitudes da vida corpórea são as consequências de suas próprias imperfeições, isto é, das expiações pelo passado e pelo presente, e provações para o futuro. Daí ele é naturalmente conduzido a não ver o cego acaso nos acontecimentos, mas a mão da Providência. Para ele a justa sentença: A cada um segundo as suas obras não só acha a sua aplicação apenas no além-túmulo, mas também na Terra. Eis por que tudo o que se passa em redor de si tem seu valor, sua razão de ser. Ele tudo estuda para disso tirar proveito e regular sua conduta com vistas ao futuro, que para ele é uma realidade demonstrada. Remontando às causas das desgraças que o afligem, aprende a não mais acusar a sorte ou a fatalidade, mas a si mesmo.

Não tendo esta digressão outro objetivo senão mostrar que o Espiritismo se ocupa de algo mais que de Espíritos batedores, voltemos ao nosso assunto. Considerando-se que o fato foi tornado público, é permitido apreciá-lo, tanto mais quanto não designamos ninguém nominalmente.

Se se examinar a coisa do ponto de vista puramente mundano, a maior parte das pessoas não verá nele senão a consequência muito natural de uma união desproporcional, e atirarão no velho a pedra do ridículo como oração fúnebre. Outros acusarão de ingratidão a jovem senhora que traiu a confiança do homem generoso que queria enriquecê-la. No entanto, ela tem para o espírita um lado mais sério, porque o espírita aí busca um ensinamento.

Perguntar-nos-emos, então, se na ação do velho não havia mais egoísmo que generosidade ao vincular uma moça quase criança à sua caducidade, pelos laços indissolúveis que podiam conduzi-la à idade em que se deve antes pensar no descanso do que em gozar do mundo; se impondo-lhe esse duro sacrifício, não era fazê-la pagar bem caro a fortuna que lhe prometera. Não há verdadeira generosidade sem desinteresse. Quanto à jovem, ela não podia aceitar esses laços senão com a perspectiva de vê-los quebrados em breve, pois nenhum motivo de afeição a ligava ao velho. Havia, pois, cálculo de ambos os lados, e esse cálculo foi frustrado. Deus não permitiu que nem um nem o outro o aproveitassem. A um infringiu a desilusão, ao outro a vergonha, que os mataram a ambos.

Resta a responsabilidade do suicídio, que jamais fica impune, mas que muitas vezes encontra circunstâncias atenuantes. A mãe da jovem, para encorajá-la a aceitá-lo, havia dito: “Com esta grande fortuna farás a felicidade do homem pobre que amares. Enquanto esperas, honra e respeita, durante o que lhe resta de vida, esse grande coração que quis fazer-te sua herdeira.” Era tomá-la pelo lado sensível, mas, para gozar dos benefícios desse grande coração, que teria sido muito maior se a tivesse dotado sem interesse, seria preciso especular sobre a duração de sua vida. A moça errou ao ceder, mas a mãe errou mais em excitá-la, e é ela que incorrerá na maior parte da responsabilidade do suicídio da filha.

É assim que aquele que se mata para escapar à miséria é culpado pela falta de coragem e de resignação, mas muito mais culpado ainda é aquele que é a causa primeira desse ato de desespero. Eis o que o Espiritismo ensina, pelos exemplos que põe sob os olhos daqueles que estudam o mundo invisível.

Quanto à mãe, sua punição começa nesta vida, a princípio pela morte horrível da filha, cuja imagem talvez venha persegui-la e enchê-la de remorsos, depois pela inutilidade, para ela, do sacrifício que ela provocou, porque tendo falecido o marido seis horas depois de sua mulher, toda a sua fortuna vai para os colaterais afastados, e ela nenhum proveito terá.

Os jornais estão cheios de casos de todo gênero, louváveis ou censuráveis, que podem oferecer, como este que acabamos de relatar, assunto para estudos morais sérios. É para os espíritas uma mina inesgotável de observações e instruções. O Espiritismo lhes dá os meios de aí descobrirem o que se passa desapercebido para os indiferentes e ainda mais para o céptico, que geralmente aí não vê senão o fato mais ou menos picante, sem lhe procurar nem as causas nem as consequências. Para os grupos, é um elemento fecundo de trabalho, no qual os Espíritos protetores não deixarão de ajudar, dando a sua apreciação.

Fonte: Revista Espírita, fevereiro de 1864 - Um drama íntimo

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

[Download] - Fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) uma análise dos discursos dos terapeutas

Disponível para download a dissertação de Mestrado “Fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) uma análise dos discursos dos terapeutas” defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB pelo Psicólogo João Arnaldo Nunes.

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RESUMO

Sendo  o  discurso  uma  prática  social,  seu  funcionamento  é  regulado  por  normas  que controlam todo acervo de saberes, o presente trabalho buscou seu suporte nos princípios teóricos  do  filósofo  Michel  Foucault  e  tem  como  objeto  o  estudo  dos  fenômenos mediúnicos na terapia de vida(s) passada(s) -  TVP.  Os fenômenos mediúnicos surgiram nos  consultórios  de  terapeutas  de  linha  ortodoxa  forçando-os,  de  certa  forma,  a compreender  esse  novo  campo  de  estudos  que  se  desdobrava.  Os  resultados  deste processo  fizeram  surgir  uma  nova  abordagem  terapêutica  que  se  distanciava  das abordagens tradicionais. A partir disso, num primeiro momento, iremos apresentar um breve  contexto  histórico  a  respeito  do  percurso  de  como  esses  fenômenos  foram compreendidos e interpretados. Selecionamos três olhares que consideramos a base para uma compreensão dessa trajetória na qual os fenômenos foram ganhando interpretações: a  visão  da  Metapsiquica,  da  Parapsicologia  e  finalmente  do  Kardecismo.  Percebemos que  em  alguns  pontos  estes  se  complementam  e  em  outros  momentos  se  distanciam.

Com base no trabalho de campo realizado, buscamos compreender através dos discursos dos  terapeutas  que  trabalham  com  a  TVP,  como  estes  profissionais  lidam  com  o surgimento  dos  fenômenos  mediúnicos  no  setting  terapêutico.  Como  aporte teóricometodológico,  além  de  Foucault,  utilizamos  a  perspectiva  antropológica  nos valendo tanto  de  autores  que  trabalham  com  o  Kardecismo  quanto  daqueles  que estudam  o universo New Age, com foco nas práticas terapêuticas.

Palavras-Chaves: Terapia de vida passada; Mediunidade; Kardecismo; New Age.