Por José Herculano Pires
O ato mediúnico é o momento em que o espírito comunicante e o médium se fundem na unidade psico-afetiva da comunicação. O espírito aproxima-se do médium e o envolve nas suas vibrações espirituais. Essas vibrações irradiam-se do seu corpo espiritual atingindo o corpo espiritual do médium. A esse toque vibratório, semelhante ao de um brando choque elétrico, reage o perispírito do médium. Realiza-se a fusão fluídica. Há uma simultânea alteração no psiquismo de ambos. Cada um assimila um pouco do outro. Uma percepção visual desse momento comove o vidente que tem a ventura de captá-la. As irradiações perispirituais projetam sobre o rosto do médium a máscara transparente do espírito. Compreende-se então o sentido profundo da palavra intermúndio. Ali estão, fundidos e ao mesmo tempo distintos, o semblante radioso do espírito e o semblante humano do médium, iluminado pelo suave clarão da realidade espiritual. Essa superposição de planos dá aos videntes a impressão de que o espírito comunicante se incorpora no médium. Daí a errônea denominação de incorporação para as manifestações orais. O que se dá não é uma incorporação, mas uma interpenetração psíquica, como a da luz atravessando uma vidraça. Ligados os centros vitais de ambos, o espírito se manifesta emocionado, reintegrando-se nas sensações da vida terrena, sem sentir o peso da carne. O médium, por sua vez, experimenta a leveza do espírito, sem perder a consciência de sua natureza carnal, e fala ao sopro do espírito, como um intérprete que não se dá ao trabalho da tradução.
O ato mediúnico natural é esse momento de síntese afetiva em que os dois planos da vida revelam o segredo da morte: apenas um desvestir do pesado escafandro da matéria densa.
O ato mediúnico normal é uma segunda ressurreição, que se verifica precisamente no corpo espiritual que, segundo o Apóstolo Paulo, é o corpo da ressurreição. O espírito volta à carne, não a que deixou no túmulo, mas a do médium que lhe oferece, num gesto de amor, a oportunidade do retorno aos corações que deixou no mundo. A beleza do reencontro de um filho com a mãe, que estreita o médium nos braços ansiosos e o beija com toda a efusão da saudade materna, compensa de muito a impiedade dos que o acusam de praticar bruxarias. Nos casos de materialização, nada mais belo que Lombroso com sua mãe materializada através da mediunidade de Eusápia Paladino, na sessão a que fora levado pelo Prof. Chiaia, de Milão. Eusápia era uma camponesa analfabeta e mil vezes caluniada. Lombroso, o fundador da Antropologia Criminal, retratou-se na revista Luce e Ombra de seus violentos artigos contra o Espiritismo, e declarou comovido: "Nenhum gigante do pensamento e da força poderia me fazer o que me fez esta pequena mulher analfabeta: arrancar minha mãe do túmulo e devolvê-la aos meus braços!". Frederico Fígner, introdutor do fonógrafo no Brasil, levou sua esposa desolada a Belém do Pará, na esperança de um reencontro com a menina Rachel, sua filha, que haviam perdido, o que quase os levara à loucura, a ele e à esposa. Procuraram a médium Ana Prado, também mulher do campo, e numa sessão com ela a menina apareceu materializada, estimulando os pais a enfrentarem o caso com serenidade, pois ali estava viva, e falava e os beijava, e, sentava-se em seus colos, provando que não morrera. Fígner, ao voltar para o Rio de Janeiro, dedicou-se dali por diante ao Espiritismo, com a chama da fé acesa em seu coração e no coração da esposa, mas agora uma fé inabalável, assentada na razão e nos fatos.
Quando o ato mediúnico é assim perfeito e claro, iluminado por uma mediunidade esclarecida e devotada ao bem, não há gigante — como no caso de Lombroso — que não se curve reverente ante o mistério da vida imortal. O médium se torna o instrumento da ressurreição impossível, provando aos homens que a morte não é mais do que lapso no intermúndio que separa os vivos na carne dos vivos no espírito. Compreende-se então o fenômeno da Ressurreição de Jesus, que não foi o ato divino de um Deus, mas o ato mediúnico de um espírito que dominava, pelo saber e a pureza, os mistérios da imortalidade.
Quando o ato mediúnico não tem a pureza e a beleza de uma comunicação amorosa, tem o calor da solidariedade humana e é iluminado pela caridade cristã. Numa sessão comum de socorro espiritual, os médiuns sentados ao redor da mesa, os doutrinadores a postos, espíritos sofredores e espíritos maldosos e vingativos, sob controle dos orientadores espirituais, são aproximados de médiuns que desejam servi-los. O quadro é bem diferente dos que apresentamos acima. Não há beleza nem serenidade nos espíritos comunicantes, nem resplendor ou transparência em suas faces. Há desespero, dor, expressões de rebeldia ou ímpetos de vingança. Os médiuns sentem-se inquietos, não raro temerosos. A aproximação dos comunicantes é incômoda, desagradável. As vibrações perispirituais são ásperas e sombrias. O vidente se aturde com aquelas figuras pesadas e escuras que transtornam a fisionomia dos médiuns. Mas, na proporção em que os doutrinadores encarnados dão o socorro de suas vibrações e de seus argumentos fraternos aos necessitados, o quadro se modifica com as luzes vacilantes que se acendem nas mentes conturbadas. Os guias espirituais manifestam-se em socorro dos doutrinadores e suas vibrações acalmam a inquietação do ambiente. O trabalho é penoso. Criaturas recalcitrantes no mal recusam-se a compreender a realidade negativa em que se encontram. Espíritos vencidos pelas dores de encarnações penosas mostram-se revoltados. Os que trazem o coração esmagado por injustiças e traições exigem vingança e fazem ameaças terríveis. Mas a palavra fraterna, carregada de bondade e amor, iluminada pelas citações evangélicas, vai aos poucos amortecendo as explosões de ódio. Às vezes a autoridade do dirigente ou de um espírito elevado se faz sentir, para que os mais rebeldes compreendam que estão sob um poder persuasivo, mas enérgico. Uma pessoa que desconheça o problema dirá que se encontra numa sala de hospício sem controle ou assiste a um psicodrama de histéricos em desespero. Psicólogos sistemáticos ririam com desdém. O dirigente dos trabalhos parece um leigo a brincar com explosivos perigosos. Fanáticos de seitas dogmáticas julgam assistir a uma cena de possessão diabólica. Mas a sessão chega ao fim com a tranqüilização total do ambiente. Um espírito amigo comunica-se com palavras de agradecimento. Em silêncio, todos ouvem a prece final de gratidão aos espíritos bondosos que ajudaram a socorrer as sombras sofredoras. É estranho que todos estejam bem e satisfeitos com o resultado dos trabalhos. As pessoas beneficiadas comentam suas melhoras. O ambiente é de paz, amor e satisfação pelo dever cumprido.
Numa sessão de desobsessão para casos graves, com poucos elementos, sem a assistência numerosa do socorro geral, as comunicações são violentas os médiuns sofrem, gemem, gritam e choram. O dirigente e os doutrinadores permanecem tranqüilos, aparentemente impassíveis, e os doutrinadores usam de palavras persuasivas, de atitudes benignas. Nada de ameaças e exprobações violentas, como nas práticas antiquadas do exorcismo arcaico, vindo das profundezas do Egito, da Mesopotâmia, da Palestina. Nada de velas acesas, de símbolos sacramentais, de expulsão de entidades diabólicas. A técnica é de persuasão, de esclarecimento racional. Uma menina de quinze anos chega carregada pelos pais. Há uma semana dormia em estado cataléptico. As primeiras tentativas de despertá-la agitam-se e levanta-se furiosa, aos gritos. Quatro ou cinco homens não conseguem contê-la, parece dotada de força indomável. Mas pouco a pouco se acalma, chora baixinho e volta ao seu estado natural de menina graciosa e frágil. Retira-se da reunião como se nada demais tivesse acontecido. Despede-se alegre. Corre para a rua e toma o automóvel que a trouxe como se voltasse de um passeio. O ato mediúnico foi violento, assustador'. Mas o resultado da prece, dos passes, das doutrinações amorosas foi surpreendente. Poucos perceberam que, naquele corpinho de menina as garras da vingança estavam cravadas, tentando rasgar a cortina piedosa que vela os ódios do passado.
No ato mediúnico a criatura humana recupera os tempos esquecidos e se revê na tela das experiências mortas. E mais uma vez a morte lhe aparece como pura ilusão sensorial, pois tudo quanto havia desaparecido numa cova renasce de repente nas águas amargas da provação. A mediunidade funciona como um radar sensibilíssimo voltado para os caminhos perdidos. Nem sempre a tela da memória consegue reproduzir as imagens distantes, mas nas profundezas do inconsciente recalques antifreudianos esperam a catarse piedosa da comunicação absurda, em que os diálogos da caridade parecem brotar de terríveis mal-entendidos. Uma mulher não entendia porque o espírito comunicante a acusava de atrocidades que jamais praticara e a chamava de Condessa. Achou que tudo aquilo não passava de uma farsa ou de um momento de loucura. Mas quando, aconselhada pelo doutrinador, pediu perdão ao espírito algoz e chorou sem querer e sem saber por qual motivo o fazia, sentiu profundo alívio e nos dias seguintes os seus males desapareceram. As lágrimas de uma criatura que a amnésia tornou inocente podem comover um coração embrutecido no desejo de vingança. Mas quem fará o encontro necessário para o ajuste dos velhos erros e crimes, se o médium não se oferecer na imolação voluntária de si mesmo para apaziguar com a palavra do Mestre?
A responsabilidade espiritual do médium reflete-se no espelho de cada um dos seus atos de caridade mediúnica. O mediunato não é uma sagração ritual inventada pelos homens. Nasce das leis naturais que regem consciências no fluir do tempo, no suceder das gerações e das reencarnações. Um ato mediúnico é o cumprimento de um dever assumido perante o Tribunal de Deus instalado na consciência de cada um. Quando o médium se esquiva a esse cumprimento engana a si mesmo, pensando enganar a Deus. Sua própria consciência se incumbirá de condená-lo quando soar a hora do veredicto irrecorrível. Nada justifica a fuga a uni compromisso forjado à custa do sacrifício alheio. As leis morais da consciência têm a mesma inflexibilidade das leis materiais da Natureza. Nossa consciência de relação capta apenas a realidade imediata em que nos encontramos. Mas a consciência profunda guarda o registro indelével de todos os compromissos assumidos no passado e de todas as dívidas morais que pensamos apagar nas águas do Letes, o rio do esquecimento das velhas mitologias. O rio Letes secou nas encostas áridas do Olimpo, o cenáculo vazio dos antigos deuses. Hoje só temos um Deus, que não precisa vigiar-nos do alto de um monte nem ditar-nos suas leis para serem inscritas em tábuas de pedras. Essas leis estão gravadas a fogo em nossa própria carne. Nossos atos determinam no tempo as situações em que nos encontraremos em cada existência. E o mediunato é o passaporte que Deus nos concede para a liberação do passado através de um só ato, o mais belo e mais honroso de todos, que é o ato mediúnico.
A responsabilidade mediúnica não nos foi imposta como castigo. Nós mesmos a assumimos na esperança da redenção, que não virá do Céu, mas da Terra, da maneira pela qual fizermos as nossas travessias existenciais no planeta, num mar de lágrimas ou por estradas floridas pelas obras de sacrifício e abnegação que soubermos semear. Temos o futuro em nossas mãos, o futuro imediato do dia-a-dia e o futuro remoto que nos espera nas translações da Terra em torno do Sol. Chegamos assim à conclusão inevitável de que o presente passa depressa, mas o passado reponta em cada esquina do presente e do futuro.
Fonte: Livro "Mediunidade"
O ato mediúnico é o momento em que o espírito comunicante e o médium se fundem na unidade psico-afetiva da comunicação. O espírito aproxima-se do médium e o envolve nas suas vibrações espirituais. Essas vibrações irradiam-se do seu corpo espiritual atingindo o corpo espiritual do médium. A esse toque vibratório, semelhante ao de um brando choque elétrico, reage o perispírito do médium. Realiza-se a fusão fluídica. Há uma simultânea alteração no psiquismo de ambos. Cada um assimila um pouco do outro. Uma percepção visual desse momento comove o vidente que tem a ventura de captá-la. As irradiações perispirituais projetam sobre o rosto do médium a máscara transparente do espírito. Compreende-se então o sentido profundo da palavra intermúndio. Ali estão, fundidos e ao mesmo tempo distintos, o semblante radioso do espírito e o semblante humano do médium, iluminado pelo suave clarão da realidade espiritual. Essa superposição de planos dá aos videntes a impressão de que o espírito comunicante se incorpora no médium. Daí a errônea denominação de incorporação para as manifestações orais. O que se dá não é uma incorporação, mas uma interpenetração psíquica, como a da luz atravessando uma vidraça. Ligados os centros vitais de ambos, o espírito se manifesta emocionado, reintegrando-se nas sensações da vida terrena, sem sentir o peso da carne. O médium, por sua vez, experimenta a leveza do espírito, sem perder a consciência de sua natureza carnal, e fala ao sopro do espírito, como um intérprete que não se dá ao trabalho da tradução.
O ato mediúnico natural é esse momento de síntese afetiva em que os dois planos da vida revelam o segredo da morte: apenas um desvestir do pesado escafandro da matéria densa.
O ato mediúnico normal é uma segunda ressurreição, que se verifica precisamente no corpo espiritual que, segundo o Apóstolo Paulo, é o corpo da ressurreição. O espírito volta à carne, não a que deixou no túmulo, mas a do médium que lhe oferece, num gesto de amor, a oportunidade do retorno aos corações que deixou no mundo. A beleza do reencontro de um filho com a mãe, que estreita o médium nos braços ansiosos e o beija com toda a efusão da saudade materna, compensa de muito a impiedade dos que o acusam de praticar bruxarias. Nos casos de materialização, nada mais belo que Lombroso com sua mãe materializada através da mediunidade de Eusápia Paladino, na sessão a que fora levado pelo Prof. Chiaia, de Milão. Eusápia era uma camponesa analfabeta e mil vezes caluniada. Lombroso, o fundador da Antropologia Criminal, retratou-se na revista Luce e Ombra de seus violentos artigos contra o Espiritismo, e declarou comovido: "Nenhum gigante do pensamento e da força poderia me fazer o que me fez esta pequena mulher analfabeta: arrancar minha mãe do túmulo e devolvê-la aos meus braços!". Frederico Fígner, introdutor do fonógrafo no Brasil, levou sua esposa desolada a Belém do Pará, na esperança de um reencontro com a menina Rachel, sua filha, que haviam perdido, o que quase os levara à loucura, a ele e à esposa. Procuraram a médium Ana Prado, também mulher do campo, e numa sessão com ela a menina apareceu materializada, estimulando os pais a enfrentarem o caso com serenidade, pois ali estava viva, e falava e os beijava, e, sentava-se em seus colos, provando que não morrera. Fígner, ao voltar para o Rio de Janeiro, dedicou-se dali por diante ao Espiritismo, com a chama da fé acesa em seu coração e no coração da esposa, mas agora uma fé inabalável, assentada na razão e nos fatos.
Quando o ato mediúnico é assim perfeito e claro, iluminado por uma mediunidade esclarecida e devotada ao bem, não há gigante — como no caso de Lombroso — que não se curve reverente ante o mistério da vida imortal. O médium se torna o instrumento da ressurreição impossível, provando aos homens que a morte não é mais do que lapso no intermúndio que separa os vivos na carne dos vivos no espírito. Compreende-se então o fenômeno da Ressurreição de Jesus, que não foi o ato divino de um Deus, mas o ato mediúnico de um espírito que dominava, pelo saber e a pureza, os mistérios da imortalidade.
Quando o ato mediúnico não tem a pureza e a beleza de uma comunicação amorosa, tem o calor da solidariedade humana e é iluminado pela caridade cristã. Numa sessão comum de socorro espiritual, os médiuns sentados ao redor da mesa, os doutrinadores a postos, espíritos sofredores e espíritos maldosos e vingativos, sob controle dos orientadores espirituais, são aproximados de médiuns que desejam servi-los. O quadro é bem diferente dos que apresentamos acima. Não há beleza nem serenidade nos espíritos comunicantes, nem resplendor ou transparência em suas faces. Há desespero, dor, expressões de rebeldia ou ímpetos de vingança. Os médiuns sentem-se inquietos, não raro temerosos. A aproximação dos comunicantes é incômoda, desagradável. As vibrações perispirituais são ásperas e sombrias. O vidente se aturde com aquelas figuras pesadas e escuras que transtornam a fisionomia dos médiuns. Mas, na proporção em que os doutrinadores encarnados dão o socorro de suas vibrações e de seus argumentos fraternos aos necessitados, o quadro se modifica com as luzes vacilantes que se acendem nas mentes conturbadas. Os guias espirituais manifestam-se em socorro dos doutrinadores e suas vibrações acalmam a inquietação do ambiente. O trabalho é penoso. Criaturas recalcitrantes no mal recusam-se a compreender a realidade negativa em que se encontram. Espíritos vencidos pelas dores de encarnações penosas mostram-se revoltados. Os que trazem o coração esmagado por injustiças e traições exigem vingança e fazem ameaças terríveis. Mas a palavra fraterna, carregada de bondade e amor, iluminada pelas citações evangélicas, vai aos poucos amortecendo as explosões de ódio. Às vezes a autoridade do dirigente ou de um espírito elevado se faz sentir, para que os mais rebeldes compreendam que estão sob um poder persuasivo, mas enérgico. Uma pessoa que desconheça o problema dirá que se encontra numa sala de hospício sem controle ou assiste a um psicodrama de histéricos em desespero. Psicólogos sistemáticos ririam com desdém. O dirigente dos trabalhos parece um leigo a brincar com explosivos perigosos. Fanáticos de seitas dogmáticas julgam assistir a uma cena de possessão diabólica. Mas a sessão chega ao fim com a tranqüilização total do ambiente. Um espírito amigo comunica-se com palavras de agradecimento. Em silêncio, todos ouvem a prece final de gratidão aos espíritos bondosos que ajudaram a socorrer as sombras sofredoras. É estranho que todos estejam bem e satisfeitos com o resultado dos trabalhos. As pessoas beneficiadas comentam suas melhoras. O ambiente é de paz, amor e satisfação pelo dever cumprido.
Numa sessão de desobsessão para casos graves, com poucos elementos, sem a assistência numerosa do socorro geral, as comunicações são violentas os médiuns sofrem, gemem, gritam e choram. O dirigente e os doutrinadores permanecem tranqüilos, aparentemente impassíveis, e os doutrinadores usam de palavras persuasivas, de atitudes benignas. Nada de ameaças e exprobações violentas, como nas práticas antiquadas do exorcismo arcaico, vindo das profundezas do Egito, da Mesopotâmia, da Palestina. Nada de velas acesas, de símbolos sacramentais, de expulsão de entidades diabólicas. A técnica é de persuasão, de esclarecimento racional. Uma menina de quinze anos chega carregada pelos pais. Há uma semana dormia em estado cataléptico. As primeiras tentativas de despertá-la agitam-se e levanta-se furiosa, aos gritos. Quatro ou cinco homens não conseguem contê-la, parece dotada de força indomável. Mas pouco a pouco se acalma, chora baixinho e volta ao seu estado natural de menina graciosa e frágil. Retira-se da reunião como se nada demais tivesse acontecido. Despede-se alegre. Corre para a rua e toma o automóvel que a trouxe como se voltasse de um passeio. O ato mediúnico foi violento, assustador'. Mas o resultado da prece, dos passes, das doutrinações amorosas foi surpreendente. Poucos perceberam que, naquele corpinho de menina as garras da vingança estavam cravadas, tentando rasgar a cortina piedosa que vela os ódios do passado.
No ato mediúnico a criatura humana recupera os tempos esquecidos e se revê na tela das experiências mortas. E mais uma vez a morte lhe aparece como pura ilusão sensorial, pois tudo quanto havia desaparecido numa cova renasce de repente nas águas amargas da provação. A mediunidade funciona como um radar sensibilíssimo voltado para os caminhos perdidos. Nem sempre a tela da memória consegue reproduzir as imagens distantes, mas nas profundezas do inconsciente recalques antifreudianos esperam a catarse piedosa da comunicação absurda, em que os diálogos da caridade parecem brotar de terríveis mal-entendidos. Uma mulher não entendia porque o espírito comunicante a acusava de atrocidades que jamais praticara e a chamava de Condessa. Achou que tudo aquilo não passava de uma farsa ou de um momento de loucura. Mas quando, aconselhada pelo doutrinador, pediu perdão ao espírito algoz e chorou sem querer e sem saber por qual motivo o fazia, sentiu profundo alívio e nos dias seguintes os seus males desapareceram. As lágrimas de uma criatura que a amnésia tornou inocente podem comover um coração embrutecido no desejo de vingança. Mas quem fará o encontro necessário para o ajuste dos velhos erros e crimes, se o médium não se oferecer na imolação voluntária de si mesmo para apaziguar com a palavra do Mestre?
A responsabilidade espiritual do médium reflete-se no espelho de cada um dos seus atos de caridade mediúnica. O mediunato não é uma sagração ritual inventada pelos homens. Nasce das leis naturais que regem consciências no fluir do tempo, no suceder das gerações e das reencarnações. Um ato mediúnico é o cumprimento de um dever assumido perante o Tribunal de Deus instalado na consciência de cada um. Quando o médium se esquiva a esse cumprimento engana a si mesmo, pensando enganar a Deus. Sua própria consciência se incumbirá de condená-lo quando soar a hora do veredicto irrecorrível. Nada justifica a fuga a uni compromisso forjado à custa do sacrifício alheio. As leis morais da consciência têm a mesma inflexibilidade das leis materiais da Natureza. Nossa consciência de relação capta apenas a realidade imediata em que nos encontramos. Mas a consciência profunda guarda o registro indelével de todos os compromissos assumidos no passado e de todas as dívidas morais que pensamos apagar nas águas do Letes, o rio do esquecimento das velhas mitologias. O rio Letes secou nas encostas áridas do Olimpo, o cenáculo vazio dos antigos deuses. Hoje só temos um Deus, que não precisa vigiar-nos do alto de um monte nem ditar-nos suas leis para serem inscritas em tábuas de pedras. Essas leis estão gravadas a fogo em nossa própria carne. Nossos atos determinam no tempo as situações em que nos encontraremos em cada existência. E o mediunato é o passaporte que Deus nos concede para a liberação do passado através de um só ato, o mais belo e mais honroso de todos, que é o ato mediúnico.
A responsabilidade mediúnica não nos foi imposta como castigo. Nós mesmos a assumimos na esperança da redenção, que não virá do Céu, mas da Terra, da maneira pela qual fizermos as nossas travessias existenciais no planeta, num mar de lágrimas ou por estradas floridas pelas obras de sacrifício e abnegação que soubermos semear. Temos o futuro em nossas mãos, o futuro imediato do dia-a-dia e o futuro remoto que nos espera nas translações da Terra em torno do Sol. Chegamos assim à conclusão inevitável de que o presente passa depressa, mas o passado reponta em cada esquina do presente e do futuro.
Fonte: Livro "Mediunidade"
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