sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Herculano Pires e Ramatis


Do blog "Pureza Doutrinária Espírita"

Postagem de Artur Felipe Azevedo

Começaremos com J. Herculano Pires(1914-1979), jornalista, filósofo, poeta, tradutor e pensador espírita paulista.

É considerado o maior pensador espírita do Brasil e um dos maiores intérpretes do pensamento kardeciano.

Chamado de “O Guarda Noturno do Espiritismo”, foi um dos grandes defensores do caráter cultural e filosófico do Espiritismo, tendo travado memoráveis polêmicas com detratores da Doutrina Espírita.

Fundador da União Social Espírita (atual USE), entusiasta da educação espírita, Herculano escreveu mais de 80 obras sobre inúmeros temas. Foi presidente do Sindicato Estadual dos Jornalistas de São Paulo.

Obras: O Reino; Espiritismo Dialético; O Mistério do Ser Ante a Dor e a Morte; O Espírito e o Tempo; Revisão do Cristianismo; Agonia das Religiões; O Centro Espírita; Curso Dinâmico de Espiritismo; Mediunidade; Ciência Espírita e suas Implicações Terapêuticas; Pesquisa Sobre o Amor.

Vamos, agora, aos seus comentários críticos sobre Ramatis e quejandos:

“Faz-se, em geral, muita confusão a propósito de Espiritismo. Há confusões intencionais, promovidas por elementos interessados em combater a propagação inevitável da Doutrina, e há confusões inocentes, feitas por pessoas de reduzido conhecimento doutrinário. As primeiras, as intencionais, não seriam funestas, porque facilmente identificáveis quanto ao seu objetivo, se não houvesse confusões inocentes, que preparam o terreno para aquelas explorações.

Os Centros Espíritas têm um grande papel a desempenhar na luta pelo esclarecimento do povo, devendo promover constantes programas de combate a todas as formas de confusão doutrinária. Por isso mesmo, devem ser dirigidos por pessoas que conheçam a Doutrina, que a estudem incessantemente e que não se deixem levar por sugestões estranhas. Quando os dirigentes de Centro não se sentirem bastante informados dos princípios doutrinários, devem revestir-se, pelo menos, da humildade suficiente para recorrerem aos conselhos de pessoas mais esclarecidas e à leitura de textos orientadores.

Há um pequeno livro de Kardec que muitos dirigentes desprezam, limitando-se a aconselhar a sua leitura aos leigos e principiantes: exatamente “O Principiante Espírita”. Esse livrinho é precioso orientador doutrinário, que os dirigentes devem ler sempre. Outro pequeno volume aconselhável é “O Que É o Espiritismo”, também de Kardec. Principalmente agora, nesta época de confusões que estamos atravessando, os dirigentes de Centros, Grupos Familiares e demais organizações doutrinárias, deviam ter esses livros como leitura diária, obrigatória.

Além das confusões habituais entre Umbanda e Espiritismo, Esoterismo, Teosofia, Ocultismo e Espiritismo, há outras formas de confusão que vêm sendo amplamente espalhadas no meio espírita. São as confusões de origem mediúnica, oriundas de comunicações de espíritos que se apresentam como grandes instrutores, dando sempre respostas e informações sobre todas as questões que lhes forem propostas. Um exemplo marcante é o de Ramatis, cujas mensagens vêm sendo fartamente distribuídas.

Qualquer estudioso da Doutrina percebe logo que se trata de um espírito pseudo-sábio, segundo a “escala espírita” de Kardec. Não obstante, suas mensagens estão assumindo o papel de sucedâneos das obras doutrinárias, levando até mesmo oradores espíritas a fazerem afirmações ridículas em suas palestras, com evidente prejuízo para o bom conceito do movimento espírita.

Não é de hoje que existem mensagens dessa espécie. Desde todos os tempos, espíritos mistificadores, os falsos profetas da erraticidade, como dizia Kardec, e espíritos pseudo-sábios, que se julgam grandes missionários, trabalham, consciente ou inconscientemente, na ingrata tarefa de ridicularizar o Espiritismo. Mas a responsabilidade dos que aceitam e divulgam essas mensagens não é menor do que a dos espíritos que as transmitem.

Por isso mesmo, é necessário que os confrades esclarecidos não cruzem os braços diante dessas ondas de perturbação, procurando abrir os olhos dos que facilmente se deixam levar por elas.

O Espiritismo é uma doutrina de bom senso, de equilíbrio, de esclarecimento positivo dos problemas espirituais, e não de hipóteses sem base ou de suposições imaginosas. As linhas seguras da Doutrina estão na Codificação Kardeciana.

Não devemos nos esquecer de que a Codificação representa o cumprimento da promessa evangélica do Consolador, que veio na hora precisa.

Deixar de lado a Codificação, para aceitar novidades confusas, é simples temeridade. Tanto mais quando essas novidades, como no caso de Ramatis, são mais velhas do que a própria Codificação.”

Herculano e as bases para um pleno entendimento doutrinário

“O estudo e os debates devem cingir-se às obras da Codificação. Substituir as obras fundamentais por outras, psicografadas ou não, é um inconveniente que se deve evitar. Seria o mesmo que, num curso de especialização em Pedagogia, passar-se a ler e discutir assuntos de Mecânica, a pretexto de variar os temas. O aprendizado doutrinário requer unidade e seqüência, para que se possa alcançar uma visão global da Doutrina. Todas as obras de Kardec devem constar desses trabalhos, desde os livros iniciáticos, passando pela Codificação propriamente dita, até os volumes da Revista Espírita.

Precisamos nos convencer desta realidade que nem todos alcançam: Espiritismo é Kardec. Porque foi ele o estruturador da Doutrina, permanentemente assistido pelo Espírito da Verdade. Todos os demais livros espíritas, mediúnicos ou não, são subsidiários. Estudar, por exemplo uma obra de Emmanuel ou André Luiz sem relacioná-la com as obras de Kardec, a pretexto de que esses autores espirituais superam o Mestre (cujas obras ainda não conhecemos suficientemente) é demostrar falta de compreensão do sentido e da natureza da Doutrina. Esses e outros autores respeitáveis dão sua contribuição para a nossa maior compreensão de Kardec, não podem substituí-lo. É bom lembrar a regra do “consenso Universal”, segundo o qual nenhum espírito ou criatura humana dispõem, sozinhos, por si mesmos, de recursos e conhecimentos para nos fazerem revelações pessoais. Esse tipo de revelações individuais pertence ao passado, aos tempos anteriores ao advento da Doutrina. Um novo ensinamento, a revelação de uma “verdade nova” depende das exigência doutrinária de:

a) Concordância universal de manifestações a respeito;

b) Concordância da questão com os princípios básicos da Doutrina:

c) Concordância com os princípios culturais do estágio de conhecimento atingido pelo nosso mundo;

d) Concordância com os princípios racionais, lógicos e logísticos do nosso tempo.

Fora desse quadro de concordâncias necessárias, que constituem o “consenso Universal”, nada pode ser aceito como válido. Opiniões pessoais, sejam de sábios terrenos ou do mundo espiritual, nada valem para a Doutrina. O mesmo ocorre nas Ciências e em todos os ramos do Conhecimento na Terra. Porque o Conhecimento é uma estrutura orgânica, derivada da estrutura exterior da realidade e nunca sujeita a caprichos individuais.

Por isso é temeridade aceitar-se e propagar-se princípios deste espírito ou daquele homem como se fossem elementos doutrinários. Quem se arrisca a isso revela falta de senso e falta absoluta de critério lógico, além de falta de convicção doutrinária. O Espiritismo não é uma doutrina fechada ou estática, mas aberta ao futuro. Não obstante, essa abertura está necessariamente condicionada as regras de equilíbrio e de ordem que sustentam a verdade e a eficácia da sua estrutura doutrinária.

Como a Química, a Física, a Biologia e as demais Ciências, o Espiritismo não é imutável, está sujeito às mudanças que devem ocorrer com o avanço do conhecimento espírita. Mas como em todas as Ciências, esse avanço está naturalmente subordinado às exigências do critério racional, da comprovação objetiva por métodos científicos e do respeito ao que podemos chamar de “natureza da doutrina”.

Introduzir na doutrina práticas provenientes de correntes espiritualistas anteriores a ela seria o mesmo que introduzir na Química as superadas práticas da Alquimia. As Ciências são organismos conceptuais da cultura humana, caracterizados pela sua estrutura própria e pelas leis naturais do seu crescimento, como ocorre com os organismo biológicos.

Todos nós ainda trazemos a “herança empírica” do passado anterior ao desenvolvimento da cultura científica, e somos às vezes tentados a realizar façanhas cientificas para as quais não estamos aptos. E como todos somos naturalmente vaidosos, facilmente nos entusiasmamos com a suposta possibilidade de nos tornarmos renovadores doutrinários. Nascem daí as mistificações como a de Roustaing, tristemente ridícula, a que muitas pessoas se apegam emocionalmente, o que as torna fanáticas e incapazes de perceber os enormes absurdos nelas contidos. Até mesmo pessoas cultas, respeitáveis, deixam-se levar por essas mistificações, por falta de humildade intelectual e de critérios científicos. Espíritos opiniáticos ou sectários de religiões obscurantistas aproveitam-se disso para introduzir essas mistificações em organizações doutrinárias prestigiosas, com a finalidade de ridicularizar o Espiritismo e afastar dele as pessoas sensatas que sabem subordinar a emoção à razão e que muito poderiam contribuir para o verdadeiro desenvolvimento da doutrina.

Por tudo isso, as manifestações mediúnicas em sessões doutrinárias devem ser recebidas sempre com espírito crítico. Aceitá-las como verdades reveladas é abrir as portas à mistificação, à destruição da própria finalidade dessas sessões. Também por isso, o dirigente dessas sessões deve ser uma pessoa de espírito arejado, racional, objetivo, capaz de conduzir os trabalhos com segurança. Kardec é sempre a pedra de toque para verificação das supostas revelações que ocorrem. O pensamento espírita é sempre racional, avesso ao misticismo. Os espíritos comunicantes, em geral, são de nível cultural mais ou menos semelhantes ao das pessoas presentes. Não devem ser encarados como seres sobrenaturais pois não passam de criaturas humanas desencarnadas, na maioria apegadas aos seus preconceitos terrenos, a morte não promove ninguém a sábio nem confere aos espíritos autoridade alguma em matéria de doutrina. Por outro lado, os espíritos realmente superiores só se manifestam dentro das condições culturais do grupo, não tendo nenhum interesse em destacar-se como geniais antecipadores de descobertas cientificas que cabe aos encarnados e não a eles fazerem. A idéia do sobrenatural, nas relações mediúnicas, é a fonte principal das mistificações.

Homens e espíritos vaidosos se conjugam nas tentativas pretensiosas de superação doutrinária. Se não temos ainda, no mundo inteiro, instituições espíritas à altura da doutrina, isso se deve principalmente à vaidade e à invigilância dos homens e espíritos que se julgam mais do que são. Nesta hora de muitas novidades, é bom verificarmos que as maiores delas já foram antecipadas pelo Espiritismo. É ele, o Espiritismo, a maior novidade dos novos tempos. Se tomarmos consciência disso, evitaremos os absurdos que hoje infestam o meio doutrinário e facilitaremos o desenvolvimento real da doutrina em bases racionais.”

Atualidade das Recomendações de José Herculano Pires


Por Tadeu Saboia

Diante de tantas incoerências dentro do movimento espírita brasileiro com relação ao Espiritismo sério, José Herculano Pires, há mais de 30 anos, já nos advertia e previa essa bagunça doutrinária que infelizmente vemos hoje. E em sua visão de filósofo e estudioso do Espiritismo, dava-nos a solução para o problema: Estudar sistematicamente e compreender as obras de Allan Kardec abandonando esse Pseudo-Espiritismo fanático-mediúnico, adorador de médiuns, igrejeiro e católico que se instalou como uma praga no falido movimento Espírita Brasileiro.

Vejamos um trecho do Livro Curso Dinâmico de Espiritismo, em seu capítulo 17: Ação Espírita na Transformação do Mundo.

“As relações humanas se baseiam na afetividade humana. Não há afetos entre corações insensíveis. Por isso a dor campeia no mundo, pois só ela pode abalar os corações de pedra. Mas o Espiritismo nos mostra que o coração de pedra é duro por falta de compreensão da realidade, de tradições negativas que o homem desenvolveu em tempos selvagens e brutais. Essas relações se modificam quando oferecemos aos homens uma visão mais humana e mais lógica da Realidade universal. Essa visão não tem sido apresentada pelos espíritas que, na sua maioria, se deixam levar apenas pelo aspecto religioso da doutrina, assim mesmo deformado pela influência de formações religiosas anteriores. Precisamos restabelecer a visão espírita em sua inteireza, afastando os resíduos de um passado de ilusões e mentiras prejudiciais. Se compreenderem a necessidade urgente de se aprofundarem no conhecimento da doutrina, de maneira a fornecerem uma sólida e esclarecida doutrina espírita, poderão realmente contribuir para a modificação do mundo em que vivemos. Gerações e gerações de espíritas passaram pela Terra, de Kardec até hoje, sem terem obtido sequer um laivo de educação espírita, de formação doutrinária sistemática. Aprenderam apenas alguns hábitos espíritas, ouviram aulas inócuas de catecismo igrejeiro, tornaram-se, às vezes, ardorosos na adolescência e na juventude (porque o Espiritismo é oposição a tudo quanto de envelhecido e caduco existe no mundo), mas ao se defrontarem com a cultura universitária incluíram a doutrina no rol das coisas peremptas por não terem a menor visão da sua grandeza. Pais ignorantes e filhos ignorantes, na sucessão das encarnações inúteis, nada mais fizeram do que transformar a grande doutrina numa seita de papalvos (Parvo, pateta, boboca. Indivíduo que se deixa enganar facilmente.). Duras são e têm de ser as palavras, porque ineptas e criminosas foram as ações condenadas. A preguiça mental de ler e pensar, a pretensão de saber tudo por intuição, de receber dos guias a verdade feita, o brilhar inútil e vaidoso dos tribunos, as mistificações aceitas de mão beijada como bênçãos divinas e assim por diante, num rol infindável de tolices e burrices fizeram do movimento doutrinário um charco de crendices que impediu a volta prevista de Kardec para continuar seu trabalho. Em compensação, surgiram os reformadores e adulterados, as mistificações deslumbrantes e vazias e até mesmo as séries ridículas de reencarnações do mestre por contraditores incultos de suas mais valiosas afirmações doutrinárias.”  (José Herculano Pires) (cores e negritos meus)
                                                                                       
Quem tem olhos para ver, veja!  Meu Deus!  É um retrato trágico e verídico do que se observa nos dias de hoje!  Só um espírito superior da equipe de Kardec poderia escrever uma verdade tão simples, dura e necessária sobre o movimento espirita brasileiro. Espero que todos nós possamos ter a humildade de vestir a carapuça, se for o caso, e mudar de atitude perante o Espiritismo.

Fico feliz de saber que se Herculano Pires escrevesse esse artigo aqui, nesse site, seria alvo de muitos dos fanáticos-igrejeiros que diriam que ele está sendo incompreensível, obsidiado, sem caridade, que gosta de polemizar, que adora fazer confusão, que esse tipo de comentário não agrega valor, que o espiritismo não precisa disso, que essas questões são acessórias, que o que importa é o amor e não as críticas, que é muito duro, que esta sendo injusto com os santos médiuns e famosos palestrantes, que o espírita não pode ser tão crítico, que deveria aceitar as novas revelações e todo o “blábláblá” que vez por outra encontramos por ai.

Fiquem todos com Deus e até a próxima.

Publicado no site kardeconline.ning.com

Roustaing procura o Codificador


Por Nazareno Tourinho

Entre Jean-Baptiste Roustaing e Allan Kardec só existiu ligação de caráter meramente epistolar, e assim mesmo porque o primeiro se interessou em escrever para o segundo. Os dois nunca estiveram juntos, trocando um cumprimento face a face. Não há notícia de que Roustaing tenha alguma vez visitado a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde atuava o Codificador, nem registro de seu comparecimento às homenagens prestadas pelos espíritas de Bordeaux ao mestre de Lyon, quando ele lá esteve, inclusive ouvindo uma alocução do médico Bouché de Vitray na qual foi citado o nome do famoso bastonário, nascido e residente na cidade.

O contato inicial, via Correio, de Roustaing com Kardec, figura na edição de junho de 1861 da Revista Espírita.

A essa altura O Livro dos Espíritos já fazia sucesso há mais de quatro anos e o advogado da Corte Imperial de Bordeaux começara a se envolver com fenômenos mediúnicos há menos de seis meses.

Estava deslumbrado com a Doutrina.

Trata o seu codificador respeitosamente, chamando-o de “muito honrado chefe espírita”.

Pelo teor da missiva constata-se que se dirigira ao honrado chefe antes e fora orientado no sentido de se aproximar do Sr. Sabô, um destacado espírita em sua terra natal.

Na longa carta, que toma quatro páginas da Revista Espírita, Roustaing se refere “a reencarnação como único meio de ver o reino de Deus”. Depois, consoante não ignora mais o leitor, subscreveria a tese de que a encarnação, e consequentemente a reencarnação, jamais foram necessários (único meio) para a conquista do “reino de Deus”, não passando de um castigo para punir este ou aquele Espírito rebelde, espécie de anjo decaído na versão da teologia católica.

Termina Roustaing declarando que somente não vai a Paris ao encontro de Kardec porque a isso se opõe a sua saúde.

Diante de tão efusivo testemunho de apreço individual e solidariedade ideológica, o Codificador do Espiritismo, em termos amáveis, manifesta simpatia pelo futuro desertor da causa em que se empenhava devotadamente.

Cinco meses depois, relatando na Revista Espírita de novembro de 1861 uma visita recente feita a Bordeaux, Kardec informa ter o movimento espírita local homens de “eminente posição”, e “muitos bons médiuns”, contudo não menciona o nome de Roustaing nem o da sua psicografa, Emilie Collignon, que também residia na cidade.

Conforme se vê, Roustaing não privou da intimidade de Kardec, não conviveu com ele, não desfrutou sequer de sua atenção, salvo quando o incomodou com escritos suspeitosos. É falso, pois, o companheirismo entre ambos, insinuado por alguns rustenistas. Quanto à Emilie Collignon, o que a Coleção da Revista Espírita nos sugere é a preferência do mestre de Lyon por outro médium de Bordeaux, a Sra. Cazemajoux. Em maio de 1861 o Codificador divulga duas mensagens recebidas por esta médium. Em agosto do mesmo ano, mais uma, com assinatura espiritual de Byron. Em fevereiro do ano seguinte, 1862, novas mensagens da Sra. Cazemajoux. Só então é que um escrito de Emilie Collignon, aliás não mediúnico, aparece pela primeira vez na Revista Espírita, publicada por Allan Kardec. E aparece de um modo que, sob o aspecto doutrinário, não a recomenda bem.

Veremos esta particularidade no próximo texto.

Fonte:
TOURINHO, Nazareno.  As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing – Nazareno Tourinho; ensaio crítico-doutrinário; 1ª edição, Edições Correio Fraterno, São Bernardo do Campo, SP, 1999.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Paradoxo Espírita: a causa primária


Por Leonardo Montes


Quando se lê em O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, sobre Deus, muita gente nem suspeita que várias respostas dos espíritos somam-se a diversos argumentos cosmológicos do passado.

Quando se diz, por exemplo, na questão 1 que Deus é a  “Inteligência Suprema”, faz-se referência aos pensamentos ontológicos de Anselmo de Cantuária(1):
“Portanto, Senhor, tu és não somente aquilo de que não se pode pensar nada de maior, mas tu és muito maior de quanto possa ser pensado”.
Quando se diz “causa primária de todas as coisas”, faz-se referência ao argumento cosmológico Kalam:
“Todo ser que começa a existir tem uma causa para seu início; o mundo é um ser que começou a existir; portanto, ele possui uma causa para seu início”(2).
Em diversas outras questões esse processo se repete, de modo que a visão “teológica espírita” termina por herdar uma série de argumentos cosmológicos construídos ao longo do tempo.

Contudo, para a maioria dos espíritas, o argumento da causalidade (Kalam) é o mais forte. Os próprios espíritos tocaram nele, quando Kardec questionou o surgimento “da formação primária da matéria” pelo acaso:
“Outro absurdo! Que homem de bom-senso pode considerar o acaso um ser inteligente? E, demais, que é o acaso? Nada.” (O.L.E, questão 08).
Como ilustração do dito acima, vou citar um pequeno trecho de um texto escrito por Gerson Simões para o jornal “Extra”:
“Com relação ser Ele a causa de tudo o que há no Universo, o melhor argumento é o da própria ciência, ou seja, a de que “não há efeito sem causa”. Ora procurando a causa de tudo o que existe no Universo, e que não é obra do homem, concluiremos logicamente de que se trata de uma obra de Deus. Vale aqui lembrar que Voltaire, um vulto notável do pensamento francês, afirmou com seu raciocínio prático sobre a existência do Criador: “O Universo me espanta e não posso imaginar que este relógio exista e não tenha um relojoeiro”(3).
Sem dúvida podemos nos admirar com a complexidade do Universo e da Vida. É espantoso quando, às vezes, tomando banho, simplesmente paro e observo a água escorrendo pelos meus dedos; a forma, tamanho, cor e toda a complexidade envolvente em atos tão simples como o de abrir e fechar a mão.

Contudo, tal argumentação possui uma fraqueza: Se a causa do Universo é Deus, qual é a causa de Deus? – Lembre-se: o princípio cosmológico da causalidade (Kalam) pressupõe que “Tudo que começa a existir tem uma causa”.

Kardec tocou neste assunto na questão 14 de O Livro dos Espíritos, mas a resposta foi ríspida e pouco satisfatória:
“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades além.Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseqüentemente, de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável.”
Se nos contentamos com a explicação de que a existência do Universo se deve a Deus, porque não aplicamos o mesmo conceito quando nos referimos a Deus? Isto é, se o argumento cosmológico é válido em sua primeira premissa (tudo que começa a existir tem uma causa), porque nos contentamos em pensar que Deus é a única “causa” do universo que não precisa de uma causa anterior?

Este assunto é de muito interesse aos novatos no Espiritismo. Quase sempre surge como uma das primeiras dúvidas, nessa forma: Quem criou Deus?

Contudo, já doutrinados, e preparando-se para doutrinar, os espíritas mais velhos quase sempre riem desse questionamento citando a resposta à questão 14 ou alguma passagem de Chico Xavier, como a que diz:

“Vamos nos contentar em chegar até o filho (Jesus), porque o Pai (Deus) está muito distante”. Frase freqüentemente repetida nos centros espíritas quando o assunto é a origem de Deus.

Vi diversas vezes pessoas serem fraternalmente ridicularizadas e desestimuladas a fazer este simples questionamento que fez e faz muitos pensadores antigos e novos perder noites de sono tentando desvendar esse mistério.

O ponto principal, a não perder de vista, é que parece haver um peso e duas medidas na análise espírita desta questão:

- Julgamos válidos os argumentos cosmológicos para explicar a “origem das coisas”; mas, não, para explicar Deus. O que me soa como um paradoxo causal.

Contudo, o meu objetivo ao escrever esse texto não é resolver esta questão, mas a de perguntar:

Deus é a explicação para o Universo; qual é a explicação para Deus? – Por que o argumento da causalidade vale para o Universo e, por conseqüência, para “todas as coisas”, mas não vale para Deus?

Não são duas medidas para um mesmo peso?

Referências:

1 – Disponível, em: http://www.filosofante.com.br/?p=693 acesso: 09/07/12
2 – Disponível, em: http://materialismofilosofia.blogspot.com.br/2012/04/giuliano-thomazini-casagrande-o.html. Acesso: 09/07/12
3 – Disponível, em: http://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/gerson-monteiro/o-que-deus-na-visao-espirita-366326.html. Acesso: 09/07/12

Clique aqui para ler o debate no Fórum Espírita: http://www.forumespirita.net/fe/artigos-espiritas/paradoxo-espirita-a-causa-primeira/#ixzz20GBI2639

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O que o Espiritismo ensina


Por Allan Kardec

Há pessoas que perguntam quais são as conquistas novas que devemos ao Espiritismo. Do fato de que não dotou o mundo de uma nova indústria produtiva, como o vapor, concluem que nada produziu. A maioria daqueles que fazem esta pergunta não se dando ao trabalho de estudá-lo, não conhece senão o Espiritismo de fantasia, criado pelas necessidades da crítica, e que nada tem de comum com o Espiritismo sério; não é, pois, espantoso que se pergunte o que pode dele ser o lado útil e prático. Teriam-no aprendido se tivessem ido procurá-lo em sua fonte, e não nas caricaturas que dele fizeram aqueles que têm interesse em denegri-lo. 

Numa outra ordem de idéias, alguns acham, ao contrário, a marcha do Espiritismo muito lenta para o gosto de sua impaciência; espantam-se de que não haja ainda sondado todos os mistérios da Natureza, nem abordado todas as questões que parecem ser de sua alçada; gostariam de vê-lo todos os dias ensinar novidade, ou se enriquecer de uma nova descoberta; e, do fato de que ainda não resolveu a questão da origem dos seres, do princípio e do fim de todas as coisas, da essência divina, e algumas outras da mesma importância, concluem que não saiu do alfabeto, e que não entrou no verdadeiro caminho filosófico, e que se arrasta nos lugares comuns, porque prega sem cessar a humildade e a caridade. "Até este dia, dizem eles, não nos ensinou nada de novo, porque a reencarnação, a negação das penas eternas, a imortalidade da alma, a gradação através dos períodos da vitalidade intelectual, o perispírito, não são descobertas espíritas propriamente ditas; é preciso, pois, caminhar para descobertas mais verdadeiras e mais sólidas." 

Cremos dever, a este respeito, apresentar algumas observações, que não serão nada de novo, mas há coisas que é útil repetir sob diversas formas. 

O Espiritismo, é verdade, nada inventou de tudo isto, porque não há de verdades verdadeiras senão aquelas que são eternas, e que, por isto mesmo, deveram germinar em todas as épocas; mas não é nada de tê-las tirado, senão do nada, ao menos do esquecimento; de um germe haver feito uma planta vivaz; de uma idéia individual, perdida na noite dos tempos, ou abafada sob os preconceitos, haver feito uma crença geral; de ter provado o que estava no estado de hipótese; de ter demonstrado a existência de uma lei naquilo que parecia excepcional e fortuito; de uma teoria vaga ter feito uma coisa prática; de uma idéia improdutiva haver tirado aplicações úteis? Nada é mais verdadeiro do que o provérbio: "Não há nada de novo sob o sol," e esta própria verdade não é nova; também não é uma descoberta das quais não se encontrem os vestígios e o princípio em algum lugar. Nessa conta Copérnico não teria o mérito de seu sistema, porque o movimento da Terra havia sido suspeitado antes da era cristã. Se fosse coisa tão simples, seria preciso, pois, encontrá-la. A história do ovo de Colombo será sempre uma eterna verdade. 

Além disso, é incontestável que o Espiritismo tem muito a nos ensinar; é o que nunca cessamos de repetir, porque jamais pretendemos que ele tenha dito sua última palavra. Mas do fato de que resta ainda a fazer segue-se que não tenha saído do alfabeto? Seu alfabeto foram as mesas girantes, e desde então deu, isto nos parece, alguns passos; parece-nos mesmo que tem a fazer bastante grandes em alguns anos, se o compararmos às outras ciências que aportaram séculos para chegar ao ponto onde estão. Nenhuma chegou ao seu apogeu do primeiro salto; elas avançam, não pela vontade dos homens, mas à medida que as circunstâncias colocam sob o caminho de novas descobertas; ora, não está no poder de ninguém comandar essas circunstâncias, e a prova disto é que, todas as vezes que uma idéia é prematura, ela aborta, para aparecer mais tarde em tempo oportuno. 

Mas, à falta de novas descobertas, os homens de ciência nada têm a fazer? A química não é mais a química se ela não descobre todos os dias novos corpos? Os astrônomos estão condenados a cruzar os braços por falta de encontrar novos planetas? E assim em todos os outros ramos da ciência e da indústria. Antes de procurar novamente não é de se fazer a aplicação daquilo que se sabe? É precisamente para dar aos homens o tempo de assimilar, de aplicar e de vulgarizar o que sabem, que a Providência põe um tempo de parada na marcha para a frente. A história aí está para nos mostrar que as ciências não seguem marcha ascendente contínua, pelo menos ostensivamente; os grandes movimentos que fazem revolução numa idéia não se operam senão em intervalos mais ou menos afastados. Não há estagnação por isto, mas elaboração, aplicação, e frutificação daquilo que se sabe, o que é sempre do progresso. O Espírito humano poderia absorver sem cessar idéias novas? A própria Terra não tem necessidade de tempo de repouso antes de reproduzir? Que se diria de um professor que ensinasse todos os dias novas regras aos seus alunos, sem lhes dar o tempo de se aplicar sobre aquelas que aprenderam, de se identificar com elas e de aplicá-las? Deus seria, pois, menos previdente e menos hábil do que um professor? Em todas as idéias novas devem se encaixar nas idéias adquiridas; se estas não estão suficientemente elaboradas e consolidadas no cérebro; se o espírito não as assimilou, as que se quer nele implantar não tomam raiz; semeia-se no vazio. 

Ocorre o mesmo com relação ao Espiritismo. Os adeptos aproveitaram de tal modo o que ele ensinou até este dia, que nada tenham mais a fazer? São de tal modo caridosos, desprovidos de orgulho, desinteressados, benevolentes para os seus semelhantes; de tal modo moderaram suas paixões, abjuraram o ódio, a inveja e o ciúme; enfim, são de tal modo perfeitos que seja doravante supérfluo pregar-lhes a caridade, a humildade, a abnegação, em uma palavra, a moral? Só esta pretensão provaria a ela o quanto têm ainda necessidade dessas lições elementares, que alguns acham fastidiosas e pueris; no entanto, é somente com ajuda dessas instruções, se as colocam em proveito, que podem se elevar bastante alto para serem dignos de receber um ensinamento superior. 

O Espiritismo tende para a regeneração da Humanidade; este é um fato adquirido; ora, esta regeneração não podendo se operar senão pelo progresso moral, disto resulta que seu objetivo essencial, providencial, é a melhoria de cada um; os mistérios que pode nos revelar são o acessório, porque nos abre o santuário de todos os conhecimentos, não seríamos mais avançados para o nosso estado futuro, se não fôssemos melhores. Para admitir ao banquete da suprema felicidade, Deus não pede o que se sabe nem o que se possui, mas o que se vale e o que se terá feito de bem. É, pois, à sua melhoria individual que todo espírita sincero deve trabalhar antes de tudo. Só aquele que domou seus maus pendores, realmente tem aproveitado do Espiritismo e disso reserva a recompensa; é por isto que os bons Espíritos, por ordem de Deus, multiplicam suas instruções e as repetem à saciedade; só um orgulho insensato pode dizer: delas não tenho mais necessidade. Só Deus sabe quando serão inúteis, e só a ele pertence dirigir o ensino de seus mensageiros, e de proporcioná-lo ao nosso adiantamento. 

Vejamos, no entanto, se fora do ensino puramente moral, os resultados do Espiritismo são tão estéreis quanto alguns o pretendem. 

1- Ele dá primeiro, como todos o sabem, a prova patente da existência e da imortalidade da alma. Isto não é uma descoberta, é verdade, mas é por falta de provas sobre este ponto que há tantos incrédulos ou indiferentes quanto ao futuro; é provando o que não era senão uma teoria que ele triunfa do materialismo, e que lhe previne as conseqüência funestas para a sociedade. A dúvida sobre o futuro tendo se transformado em certeza, é toda uma revolução nas idéias, e cujas conseqüências são incalculáveis. Se lá se limitassem exclusivamente os resultados das manifestações: quanto esse resultado seria imenso. 

2- Pela firme crença que ele desenvolve, exerce uma poderosa ação sobre o moral do homem; leva-o ao bem, consola-o em suas aflições, dá-lhe a força e a coragem nas  provas da vida, e o afasta do pensamento do suicídio. 

3- Retifica todas as idéias falsas que se havia feito sobre o futuro da alma, sobre o céu, o inferno, as penas e as recompensas; ele destrói radicalmente, pela irresistível lógica dos fatos, os dogmas das penas eternas e dos demônios; em uma palavra, ele nos descobre a vida futura, e no-la mostra natural e conforme a justiça de Deus. É ainda uma coisa que tem muito seu valor. 

4- Ele faz conhecer o que se passa no momento da morte; este fenômeno, até este dia insondável, não tem mais mistérios; as menores particularidades dessa passagem tão temida são hoje conhecidas; ora, como todo o mundo morre, este conhecimento interessa a todo o mundo. 

5- Pela lei da pluralidade das existências, abre um novo campo à filosofia; o homem sabe de onde vem, para onde vai, para que fim está sobre a Terra. Ele explica a causa de todas as misérias humanas, de todas as desigualdades sociais; dá as próprias leis da Natureza por base aos princípios de solidariedade universal, de igualdade e de liberdade, que não estavam assentados senão sobre a teoria. Enfim, lança a luz sobre as questões mais difíceis da metafísica, da psicologia e da moral. 

6- Pela teoria dos fluidos perispirituais, faz conhecer o mecanismo das sensações e das percepções da alma; explica os fenômenos da dupla vista, da visão à distância, do sonambulismo, do êxtase, dos sonhos, das visões, das aparições, etc.; abre um novo campo à fisiologia e à patologia. 

7- Provando as relações que existem entre o mundo corpóreo e o mundo espiritual, mostra, neste último, uma das forças ativas da Natureza, uma força inteligente, e dá a razão de uma multidão de efeitos atribuídos à causas sobrenaturais e que alimentaram a maioria das idéias supersticiosas. 

8- Revelando o fato das obsessões, fez conhecer a causa, desconhecida até aqui, de numerosas afecções sobre as quais a ciência estava equivocada em prejuízo dos doentes, e que dá os meios de curar. 

9- Em nos fazendo conhecer as verdadeiras condições da prece e seu modo de ação; nos revelando a influência recíproca dos Espíritos encarnados e desencarnados, nos ensina o poder do homem sobre os Espíritos imperfeitos para moralizá-los e arrancá- los aos sofrimento inerentes à sua inferioridade. 

10- Fazendo conhecer a magnetização espiritual, que não se conhecia, abre um novo caminho ao magnetismo, e lhe traz um novo e poderoso elemento de cura. 

O mérito de uma invenção não está na descoberta de um princípio, quase sempre conhecido anteriormente, mas na aplicação desse princípio. A reencarnação não é uma idéia nova, sem contradita, não mais que o perispírito, descrito por São Paulo sob o nome de corpo espiritual, nem mesmo a comunicação com os Espíritos. O Espiritismo, que não se gaba de ter descoberto a Natureza, procura com cuidado todos os traços que pode encontrar da anterioridade de suas idéias, e, quando os encontra, se apressa em proclamá-lo, como prova ao apoio daquilo que adianta. Aqueles, pois, que invocam essa anterioridade, tendo em vista depreciar o que fez, vão contra o seu objetivo, e agem desastradamente, porque isto poderia fazer supor um preconceito. 

A descoberta da reencarnação e do perispírito não pertencem, pois, ao Espiritismo, é coisa convencionada; mas, até ele, que proveito a ciência, a moral, a religião tinham retirado desses dois princípios, ignorados das massas, e permanecidos no estado de letras mortas? Não só os clareou, os provou e fez reconhecer como leis da Natureza, mas as desenvolveu e fez frutificar; deles já fez sair inumeráveis e fecundos resultados, sem os quais estariam ainda para se compreender uma infinidade de coisas; cada dia nos fazem compreender coisas novas, e se está longe de ter esgotado essa mina. Uma vez que esses dois princípios eram conhecidos, por que ficaram por tanto tempo improdutivos? Por que, durante tantos séculos, todas as filosofias se chocaram contra tantos problemas insolúveis? É que eram diamantes brutos que seria preciso colocar em obra: foi o que o Espiritismo fez. Ele abriu um novo caminho à filosofia, ou, dizendo melhor, criou uma nova filosofia que toma cada dia seu lugar no mundo. Estão, pois, aí resultados de tal modo nulos que é preciso se apressar em caminhar para descobertas mais verdadeiras e mais sólidas? 

Em resumo, de um certo número de verdades fundamentais, esboçadas por alguns cérebros de elite, e permanecidas na maioria num estado por assim dizer latente, uma vez que elas foram estudadas, elaboradas e provadas, de estéreis que eram, se tornaram uma mina fecunda de onde saiu uma multidão de princípios secundários e aplicações, e abriram um vasto campo à exploração, novos horizontes às ciências, à filosofia, à moral, à religião e à economia social. 

Tais são, até este dia, as principais conquistas devidas ao Espiritismo, e não fizemos senão indicar os pontos culminantes. Supondo que devessem se limitar a isso, poder-se- ia já dar-se por satisfeito, e dizer que uma ciência nova que dá tais resultados em menos de dez anos, não pode ser maculada de nulidade, porque toca a todas as questões vitais da Humanidade, e traz aos conhecimentos humanos um contingente que não é de se desdenhar. Até que esses únicos pontos tenham recebido todas as aplicações das quais são suscetíveis, e que os homens deles tenham tirado proveito, se passará ainda por muito tempo, e os espíritas que quiserem pô-los em prática por si mesmos e para o bem de todos, não deixarão de ter ocupação. 

Esses pontos são tantos focos de onde se irradiam inumeráveis verdades secundárias que se trata de desenvolver e de aplicar, o que se faz cada dia; porque a cada dia se revelam fatos que levantam um novo canto do véu. O Espiritismo deu sucessivamente e em alguns anos todas as bases fundamentais do novo edifício; aos seus adeptos agora cabe colocar esses materiais em obra, antes de pedir outros novos; Deus saberá bem lhos fornecer quando tiverem rematado sua tarefa. 

Os espíritas, diz-se, não sabem senão o alfabeto do Espiritismo; seja; aprendamos, pois, primeiro a soletrar esse alfabeto, o que não é um negócio de um dia, porque, mesmo reduzido às suas únicas proporções, escoará tempo antes de lhe ter esgotado todas as combinações e recolhido todos os frutos. Não restam mais fatos a explicar? Os espíritas não têm, aliás, a ensinar esse alfabeto àqueles que não o sabem? lançaram a semente por toda a parte onde poderiam fazê-lo? não resta mais incrédulos a converter, obsidiados a curar, consolações a dar, lágrimas a secar? É fundado dizer-se que não se tem nada mais a fazer quando não se acabou a sua necessidade, quando resta ainda tantas feridas a fechar? Aí estão nobres ocupações que valem muito a vã satisfação de dele saber um pouco mais e um pouco mais cedo que os outros. 

Saibamos, pois, soletrar nosso alfabeto antes de querer ler correntemente no grande livro da Natureza; Deus saberá bem nos abri-lo à medida em que avançarmos, mas não depende de nenhum mortal forçar a sua vontade antecipando o tempo para cada coisa. Se a árvore da ciência é muito alta para que não possamos alcançá-la, esperemos para ali voar, que nossas asas estejam crescidas e solidamente presas, de medo de ter a sorte de ícaro. 

Fonte: Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos - Oitavo ano, número 08. Agosto 1865. Tradução: Salvador Gentile. Revisão: Elias Barbosa.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Atitude Enérgica


Herculano Pires
Por Sérgio Aleixo

Chega de pieguice religiosa, de palestras sem fim sobre a fraternidade impossível no meio de lobos vestidos de ovelhas. Chega de caridade interesseira, de imprensa condicionada à crença simplória, de falações emotivas que não passam de formas de chantagem emocional. [...] Não façamos do Espiritismo uma ciência de gigantes em mãos de pigmeus. [...] Remontemos o nosso pensamento às lições viris do Cristo, restabelecendo na Terra as dimensões perdidas do seu Evangelho. Essa é a nossa tarefa. (Herculano Pires. Jornal Mensagem. Set/1975.)

Estudo, prática e divulgação fiéis a Kardec, qualificados intelectual e, sobretudo, moralmente, é o de que necessita nosso movimento espírita. Reitero meu respeito às instituições; às pessoas, mais ainda. Nunca, todavia, aos erros em que podem incidir eventualmente. É dever de todo espírita sincero a advertência; fraterna, mas firme.

Em meio a esta inglória batalha política entre extremos opostos nas ideias (ainda que aliados em minarem a obra de Jesus), entrincheirado se encontra, na mente dos verdadeiros adeptos do Espiritismo, o bom-senso kardeciano. E ele aguarda o quê? Que o nosso amor ao Espírito de Verdade promova às futuras gerações de espíritas o socorro de uma militância independente e aberta, como foi a de Herculano Pires.

Certamente que as futuras gerações de espíritas não estão destinadas a suportar o peso do óbolo maligno que foi depositado no gazofilácio dos melhores esforços da geração atual, por lideranças intoxicadas pelos devaneios da egolatria institucionalizada.

Não deixemos que o instinto gregário de nossa espécie continue nos levando ao que ela tem de pior: a imitação e a repetição dos papagaios. Fora! Fora! com os discursos catequéticos, como aqueles desenvolvidos ao influxo da mística de Brasil: Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, obra que traduz equivocadamente as favoráveis condições socioculturais brasileiras para a assimilação dos conceitos e práticas afins com a transcendência humana...

A marcha evolutiva do Espiritismo dispensa que sejam estatutários na F.E.B. aquele Jesus necessitado de aulas de geografia e cuja amargura divina empolga toda uma formosa assembleia de querubins e arcanjos (ob. cit., I), ou um dissidente declarado, como J.-B. Roustaing, do mais rasteiro solo de intrigas erguido à condição de cooperador de Kardec para o trabalho da fé, pari passu com os digníssimos missionários Léon Denis e Gabriel Delanne (ob. cit., XXII. Cf. ainda http://oprimadodekardec.blogspot.com).

Não devemos esperar os tapinhas nas costas de uma aclamação ilusória, promovida pelos inimigos da capacidade crítica renovadora, da fé verdadeiramente raciocinada. Esta não é a vereda em que andaram nossos ilustres tutelares, chefiados pelo próprio Jesus, que, afinal, não morreu por falência múltipla dos órgãos vitais.

Desagrademos, sim, se preciso for, tanto a gregos quanto a troianos. Cultivemos desdém pelo interesse pessoal e imediato, trabalhando com coragem por um futuro que não faça a nós mesmos — reencarnacionistas que somos — o desfavor de reproduzir ainda um sem-número de vezes as mesmas estruturas do passado decrépito.

A doutrina, a verdade mesma, está acima de qualquer instituição que a pretenda representar no organismo viciado das sociedades humanas. A eterna doutrina espírita é a instituição por excelência. Às suas razões é que devemos estar vinculados, independentemente desta ou daquela casa, deste ou daquele guia ou dirigente, porque acima de todos está aquele que supervisiona este globo, que preside a regeneração: O Espírito de Verdade, isto é, Jesus Cristo.[1]

O que torna legitima a representatividade de qualquer órgão que se qualifique espírita é sua fidelidade incondicional à obra kardeciana, em cujo programa constam, mais que claros, explícitos, os preceitos e caminhos do Espiritismo.

Os dissidentes, portanto, não são os que discordam destas ou daquelas instituições, bem como, principalmente, das ideias de que se fazem campeãs. Os dissidentes são os que não respeitam a doutrina e, não satisfeitos em vampirizá-la, acusam de inferioridade e desequilíbrio os que, denunciando esse deteriorado estado de coisas, seguem o exemplo de João Batista e de seu divino primo.

De norma, aqueles tais se defendem cultivando uma indiferença que fantasiam de virtude introspectiva. Querem aparentar uma superioridade e uma sabedoria que as menores coisas são capazes de desmascarar aos que com eles tiverem oportunidade de privar algum tempo.

Trata-se de um anticristianismo supor que podemos atingir a perfeição nos preocupando somente com o que ocorre em nós, entrincheirados numa caridade mercenária que, acreditamos ingenuamente, abrir-nos-á as portas do reino do céu, mas que apenas oculta o nosso egoísmo comodista e a nossa carência oportunista.

O fato é que toda casa não edificada sobre a rocha desabará, e toda planta que o Pai não plantou será arrancada. Acima do institucionalismo humano das casas está a instituição divina da causa. Muito acima de quaisquer instituições está a instituição por excelência: a doutrina em sua integridade, consignada nas letras de fogo da codificação kardeciana. Pena que possamos divisar ainda oportuna a antiga palavra bíblica:
Desde o menor deles até o maior, cada um se dá à ganância, e tanto os profetas, como os sacerdotes usam de falsidade. Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados porque cometem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa é envergonhar-se... Assim diz o Senhor: Ponde-vos à margem no caminho e vede, perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho; andai por ele e achareis descanso para vossa alma; mas eles dizem: Não andaremos... Portanto, ouvi, ó nações, e informa-te, ó congregação, do que se fará entre eles. (Jeremias, VI, vv. 13 a 16 e v. 18.)
Poderiam os dissidentes pensar o que quer que fosse se espiritualistas se dissessem. Como insistem, no entanto, em se apresentarem como retificadores e reelaboradores da obra de Kardec, identificando-se indebitamente como espíritas, temos de assumir uma atitude enérgica.

A nosso bem e das futuras gerações de espíritas, necessitamos de um Espiritismo que se apresente como de fato é, ressaltando, cristalino, sem ambiguidades, das obras do mestre de Lyon, isento das manipulações de toda ordem a que vem sendo submetida.

Temos de ressuscitar o slogan do lendário Clube de Jornalistas Espíritas de São Paulo, fundado por Herculano Pires aos 23 de janeiro de 1948, assim definido por J. Rizzini: “A doutrina espírita acima de tudo! Acima dos homens e das instituições, porque em nosso planeta nada é mais importante do que o Espiritismo!”.

Dizia o filósofo de Avaré:
Precisamos de estudar Kardec intensamente, de assimilar os ensinos das obras básicas, de mergulhar nas páginas de ouro da Revista Espírita, não apenas lendo-as, mas meditando-as, aprofundando-as, redescobrindo nelas todo o tesouro de experiências, exemplos, ensinos e moralidade que Kardec nos deixou. Mas antes de mais nada precisamos de humildade para entrar no Templo da Verdade sem a fátua arrogância de pigmeus que se julgam gigantes. Precisamos de respeito pelo trabalho de um homem que viveu na Terra atento à cultura humana, assenhoreando-se dela para depois se entregar à pesada missão de nos livrar da ignorância vaidosa e das trevas das falsas doutrinas de homens ignorantes e orgulhosos. (Herculano Pires. Na Hora do Testemunho. Antes do cantar do galo. Vaidade das vaidades.)
Os que temem pecar por falar e pecam por se calar devem compreender que estão afastados da obra de Kardec e do Evangelho de Jesus, sempre amigos do debate sincero, da análise e do estudo sérios, muito distantes dos dogmas ancestrais formulados pelo obscurantismo, aos quais servem com seu silêncio comprometedor. Por outra, se é verdade que o Espiritismo quer ser estudado e refletido, não o é menos que dispensa a presunção daqueles que o querem retificar e reestruturar a pretexto de atualizá-lo, afrontando sua lógica intrínseca e sua fonte reveladora. Ora! Não há nada mais vitorioso em face das atuais formulações do conhecimento e da cultura do que o trabalho de Allan Kardec.

Dinamizar o Espiritismo, e nunca atualizá-lo, é tarefa de quem, por princípio, o conhece muito a fundo; de quem o ama e tem competência intelecto-moral; de quem, por isto, sabe submeter as conquistas das diversas áreas do saber ao prévio esquema — aliás, insuperável — da eterna doutrina. Esse esquema, pela sua delicada natureza de refletida totalidade, permite uma criteriosa e abrangente articulação cultural, expressando possibilidades jamais identificadas em qualquer sistema de pensamento organizado.

Logo se vê que essa tarefa não pode caber a pseudossábios, os quais, ao contrário do que seria correto, pretendem submeter a doutrina aos acanhados esquemas do agnosticismo e do ceticismo materialista, ou do superado misticismo espiritualista. O resultado, lembrando o mestre do Espiritismo por excelência, será sempre o vinho novo do paradigma espírita posto no odre velho das infantis inquietações de um homem só terrenal. Mais que da ciência ou da religião, precisamos da codificação kardeciana, perfeita síntese de ambas no sapiente exercício da consciência filosófica do Espiritismo.
_____________________
[1] Cf. O Livro dos Médiuns. Parte 1, cap. IV, n. 48. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Cap. I, n. 7. A Gênese, cap. I, n. 42.  Revista Espírita. Jun/1861. Correspondência. Out/1861. Epístola aos Espíritas Lioneses. Nov/1861. Primeira Epístola aos Espíritas de Bordéus. Fev/1868. Instruções dos Espíritos. Futuro do Espiritismo. Jan/1864. Um Caso de Possessão. Senhorita Júlia. Nov/1862. Dissertações Espíritas. O Duelo. Fev/1867. Dissertações Espíritas. A Clareza.

Fonte: O Metro que melhor mediu Kardec - http://ometroquemelhormediukardec.blogspot.com.br/2010/06/capitulo-6.html

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Roustaing e sua médium perante Allan Kardec


Por Nazareno Tourinho

Depois de mostrar as tolices e as pieguices da obra de Roustaing (apenas as maiores, é claro, as mais evidentes, porque diante delas as outras perdem significação), parece-nos interessante discorrer sobre o relacionamento desse malfadado autor, e sua médium, Emile Collignon, com Allan Kardec.

Um breve ensaio a tal respeito será extremamente útil para premunir o leitor contra o discurso dos docetistas da atualidade, que tentam, de todos os modos, fazer acreditar em uma parceria do tristemente célebre advogado de Bordéus com o codificador do Espiritismo*.

Executemos um atencioso passeio pelas páginas da Coleção da Revista Espírita, lançada no Brasil a partir de 1964 pela Editora EDICEL (tradução de Júlio Abreu Filho). Ela abrange sem lacunas o tempo que o mestre de Lyon permaneceu no corpo físico após o surgimento do primeiro livro da nossa doutrina: são doze volumes anuais correspondentes ao período de 1858 a 1869, cobrindo os fatos importantes da vida de Kardec e espelhando suas ideias.

Antes de darmos a partida a essa viagem pela história do Espiritismo nascente é bom situarmos Roustaing e sua única médium, já nominada, no universo existencial do codificador do Espiritismo. Com isso facilitaremos ao leitor a compreensão dos eventos.

Nossos três personagens tiveram a mesma nacionalidade, foram contemporâneos, porém não amigos ou vizinhos. Não há sequer notícias de que hajam um dia se encontrado pessoalmente. Kardec morava na Capital francesa, onde dirigia a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada, e os outros dois residiam na cidade de Bordeaux.

Roustaing era quase da mesma idade de Kardec (dois anos mais novo). Emilie Collignon não se sabe ao certo, mas é fora de dúvida que já havia casado com um capitalista quando psicografou Os Quatro Evangelhos (assinou publicamente com o esposo um documento publicado na Revista Espírita de março de 1862).

Roustaing sobreviveu a Kardec, desencarnando somente em janeiro de 1879, com 73 anos, mas não produziu outras obras supostamente espíritas.

Emilie Collignon, que apenas em dezembro de 1902 deixou este mundo, deu a lume mais alguns livros, desconhecidos entre nós.

Fonte:
TOURINHO, Nazareno.  As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing – Nazareno Tourinho; ensaio crítico-doutrinário; 1ª edição, Edições Correio Fraterno, São Bernardo do Campo, SP, 1999.

*O autor se refere a uma passagem do livro “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, onde o Espírito de Humberto de Campos, autor espiritual da obra, designa Jean Baptiste Roustaing como integrante de “uma plêiade de auxiliares” que cooperaram com a obra kardequiana, sendo responsável pela organização do “trabalho da fé”. A obra em questão, psicografia de Chico Xavier, faz parte do processo de legitimação espiritual do programa Kardec-Roustaing implantado por Bezerra de Menezes em sua gestão de presidente da FEB. (Nota de O Blog dos Espíritas).

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A Vida Futura

Por Allan Kardec

A vida futura não é mais um problema; é um fato adquirido pela razão e pela demonstração para a quase unanimidade dos homens, porque os seus negadores não formam senão uma ínfima minoria, apesar do ruído que se esforçam por fazer. Não é, pois, a sua realidade que nos propusemos demonstrar aqui; isso seria repetir sem nada acrescentar à convicção geral. Estando o princípio admitido, como premissa, o que nos propusemos foi examinar a sua influência sobre a ordem social e a moralização, segundo a maneira pela qual é encarado.

As conseqüências sobre o princípio contrário, quer dizer, o niilismo, são igualmente muito bem conhecidas e muito bem compreendidas para que seja necessário desenvolvê-las pela segunda vez. Diremos simplesmente que, se fora demonstrado que a vida futura não existe, a vida presente não teria outro objetivo senão a manutenção de um corpo que, amanhã, em uma hora, poderia deixar de existir e tudo, neste caso, estaria acabado sem retorno. A conseqüência lógica de uma tal condição da Humanidade, seria a concentração de todos os pensamentos sobre o crescimento dos gozos materiais, sem cuidado com o prejuízo de outrem, por que então se privar, se impor sacrifícios? Que necessidade de se constranger para se melhorar, se corrigir de suas faltas? Seria, ainda, a perfeita inutilidade do remorso, do arrependimento, uma vez que não se teria nada a esperar; seria, enfim, a consagração do egoísmo e da máxima: O mundo é dos mais fortes e dos mais espertos. Sem a vida futura, a moral não é senão um embaraço, um código de convenção imposto arbitrariamente, mas não tem nenhuma raiz no coração. Uma sociedade fundada sobre tal crença não teria outro laço senão a força, e cairia logo em dissolução.

Que se objete que, entre os negadores da vida futura, há pessoas honestas, incapazes de fazerem conscientemente uma injustiça a outrem, e suscetíveis dos maiores devotamentos! Diremos primeiro que, entre muitos incrédulos, a negação do futuro é antes uma fanfarronice, uma jactância, o orgulho de passar por espíritos fortes, do que o resultado de uma convicção absoluta. No foro íntimo de sua consciência, há uma dúvida que os importuna, é porque procuram se atordoar; mas não é sem uma secreta dissimulação que eles pronunciam o terrível nada que os priva do fruto de todos os trabalhos da inteligência, e destrói para sempre as mais caras afeições. Mais de um daqueles que gritam mais alto, são os primeiros a tremer à idéia do desconhecido; também, quando se aproxima o momento fatal de entrar nesse desconhecido, bem poucos dormem o último sono com a firme convicção de que não despertarão em alguma parte, porque a Natureza jamais perde os seus direitos.

Dizemos, pois, que, entre a maioria, a incredulidade não é senão relativa; quer dizer, que a sua razão não estando satisfeita nem com os dogmas, nem com as crenças religiosas, e não tendo encontrado nenhuma parte com que encher o vazio que se fizera neles, concluíram que nada havia e construíram sistemas para justificar a negação; não são incrédulos senão por falta de melhor. Os incrédulos absolutos são muito raros, se é que existem.

Uma intuição latente e inconsciente do futuro pode, pois, reter um certo número deles sobre a encosta do mal, e poder-se-ia citar uma multidão de atos, mesmo entre os mais endurecidos, que testemunham esse sentimento secreto que os domina, à sua revelia.

É necessário dizer, também, que, qualquer que seja o grau de incredulidade, as pessoas de uma certa condição social são retidas pelo respeito humano; sua posição as obriga a manter-se numa linha de conduta muito reservada; o que temem, acima de tudo, é a infâmia e o desprezo, que, fazendo-lhes perder, pela queda da posição que ocupam, a consideração do mundo, privariam-nas dos gozos que proporcionam a si mesmas; se não têm sempre o fundo da virtude, têm ao menos o verniz. Mas, para aqueles que não têm nenhuma razão para se prender à opinião, que zombam do que dirão, e não se deixará de convir que não seja a maioria, que freio pode ser imposto ao transbordamento das paixões brutais e aos apetites grosseiros? Sobre qual base se apóia a teoria do bem e do mal, a necessidade de reformar seus maus pendores, o dever de respeitar o que os outros possuem, quando eles mesmos não possuem nada? Qual pode ser o estimulante do ponto de honra para as pessoas a quem se persuade de que não são mais do que animais? A lei, diz-se, está lá para mantê-los; mas a lei não é um código de moral que toca o coração; é uma força que sofrem, e que iludem se o podem; se tombam ao primeiro de seus golpes, é para eles uma chance má, ou uma falta de jeito, que tratam de reparar na primeira ocasião.

Aqueles que pretendem que há mais mérito, para os incrédulos, em fazer o bem sem a esperança de uma remuneração na vida futura, na qual não crêem, se apóiam sobre um sofisma tão pouco fundado. Os crentes dizem também que o bem realizado tendo em vista vantagens que se pretende recolher, é menos meritório; vão mesmo mais longe, porque estão persuadidos de que, segundo o móvel que os faz agir, o mérito pode ser completamente anulado. A perspectiva da vida futura não exclui o desinteresse nas boas ações, porque a felicidade da qual ali se goza está, antes de tudo, subordinada ao grau de adiantamento moral; ora, os orgulhosos e os ambiciosos aí estão entre os menos bem favorecidos. Mas os incrédulos que fazem o bem são tão desinteressados como o pretendem? Se nada esperam do outro mundo, nada esperam deste? O amor-próprio nisso não é levado em conta? São insensíveis à aprovação dos homens? Estaria aí um grau de perfeição raro, e não cremos que haja muitos que a isso sejam levados unicamente pelo culto da matéria.

Uma objeção mais severa é esta: Se a crença na vida futura é um elemento moralizador, por que os homens que a pregaram, desde que estão sobre a Terra, são igualmente tão maus?

Primeiro, quem disse que não seriam piores sem isso? Não se poderia disso duvidar, considerando-se os resultados inevitáveis do niilismo popularizado. Não se vê, ao contrário, observando-se os diferentes escalões da Humanidade, desde a selvageria até a civilização, caminhar à frente do progresso intelectual e moral, o abrandamento dos costumes, e a idéia mais racional da vida futura? Mas esta idéia, ainda muito imperfeita, não pôde exercer a influência que ela terá, necessariamente, à medida que será melhor compreendida, e que se adquira noções mais justas sobre o futuro que nos está reservado.

Qualquer que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa muito com a sua alma, senão do ponto de vista místico. A vida futura, muito pouco claramente definida, não o impressiona senão vagamente; isso não é senão um objetivo que se perde ao longe, e não um meio, porque a sorte aí está irremediavelmente fixada, e nenhuma parte lhe foi apresentada como progressiva; de onde se conclui que ele o será pela eternidade o que foi ao sair daqui. Aliás, o quadro que dela se faz, as condições determinantes da felicidade ou da infelicidade que aí se experimentam, estão longe, sobretudo num século de exame como o nosso, de satisfazer completamente à razão. Depois, ela não se liga bastante diretamente à vida terrestre; entre as duas, não há nenhuma solidariedade, mas um abismo, de sorte que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas, perde quase sempre a outra de vista.

Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastara às inspirações dos homens; então, se deixavam conduzir; hoje, sob o reinado do livre exame, querem se conduzir eles mesmos, ver pelos seus próprios olhos, e compreender; as vagas noções da vida futura não estão à alturas das idéias novas, e não respondem mais às necessidades criadas pelo progresso. Com o desenvolvimento das idéias, tudo deve progredir ao redor do homem, porque tudo se liga, tudo é solidário na Natureza: ciências, crenças, cultos, legislações, meios de ação; o movimento para a frente é irresistivel, porque é a lei da existência dos seres; o que quer que seja que permaneça atrasado, abaixo do nível social, é posto de lado, como as vestes que não servem mais, e, finalmente, é levado pela onda que cresce.

Assim o foi com as idéias pueris sobre a vida futura com as quais se contentavam os nossos pais; persistir em impô-las hoje, seria levar à incredulidade. Para ser aceita pela opinião, e para exercer a sua influência moralizadora, a vida futura deve se apresentar sob o aspecto de uma coisa positiva, tangível de alguma sorte, capaz de suportar o exame; satisfatória para a razão, sem nada deixar na sombra. Foi no momento em que a insuficiência das noções do futuro abria a porta à duvida e à incredulidade, que novos meios de investigação foram dados ao homem para penetrar esse mistério, e fazê-lo compreender a vida futura, em sua realidade, em seu positivismo, em suas relações íntimas com a vida corpórea.

Por que se toma, em geral, tão pouco cuidado com a vida futura? Entretanto, trata-se de uma atualidade, uma vez que se vêem, cada dia, milhares de homens partirem para essa destinação desconhecida? Como cada um de nós deverá partir ao seu turno, e porque a hora da partida pode soar a qualquer minuto, parece natural inquietar-se com o que disso advirá. Por que isso não é feito? Precisamente porque a destinação é desconhecida, e que não se teve, até o presente, nenhum meio para conhecê-la. A ciência inexorável veio desalojá-la dos lugares onde estava circunscrita. Ela está perto? Está longe? Está perdida no infinito? As filosofias dos tempos passados não respondiam nada, porque elas mesmas nada sabiam disso; então, diz-se: "Será o que for"; daí a indiferença.

Ensinam-nos bem que nela se é feliz ou infeliz segundo se tenha bem ou mal vivido; mas isso é tão vago! Em que consiste essa felicidade e essa infelicidade? O quadro que dela se faz está de tal modo em desacordo com a idéia que fazemos da justiça de Deus, semeado de tantas contradições, de inconseqüências, de impossibilidades radicais, que, involuntariamente, se é tomado pela dúvida, se não for pela incredulidade absoluta, e depois se diz que aqueles que se enganaram sobre os lugares assinalados para as moradas futuras puderam, do mesmo modo, ser induzidos em erro sobre as condições que marcam para a felicidade e para o sofrimento. Aliás, como estaremos naquele mundo? Ali seremos seres concretos ou abstratos? Teremos uma forma, uma aparência? Se não temos nada de material, como se pode ali sentir sofrimentos materiais? Se os felizes nada têm a fazer, a ociosidade perpétua, em lugar de uma recompensa, torna-se um suplício, a menos que se admita o Nirvana do Budismo, que não é muito invejável.

O homem não se preocupará com a vida futura senão quando nela ver um objetivo limpo e claramente definido, uma situação lógica, respondendo a todas as suas aspirações, resolvendo todas as dificuldades do presente, e nela não encontre nada que a razão não possa admitir. Se se preocupa com o dia de amanhã, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida da véspera: elas são solidárias, uma com a outra; sabe-se que, do que se faz hoje, depende a posição de amanhã, e do que se fizer amanhã dependerá a posição do depois-de-amanhã, a assim por diante.

Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente: quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas idéias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma conseqüência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização.

Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura.

Fonte: Obras Póstumas

Um absurdo a mais

Por Nazareno Tourinho

Está na hora de pormos um ponto final nesta dúzia de breves escritos analisando os dislates e disparates da obra de Roustaing, que após retumbante fracasso editorial na época de seu lançamento, em terras francesas, foi ressuscitada no Brasil por alguns companheiros místicos, em briga com outros chamados de “científicos”, nos primórdios de nosso movimento doutrinário, sendo ainda hoje lida graças aos esforços e manobras dos dirigentes da FEB.

Poderíamos ir adiante no presente ensaio crítico, útil e necessário, oportuno em face de acontecimentos lamentáveis, pois, em se tratando dos quatro volumes da 6ª edição febeana da obra rustenista, até nas derradeiras folhas do Volume 4 existem tolices e pieguices dignas de reprovação. Padecendo de explicacite aguda (doença que consiste em querer explicar tudo), o célebre advogado de Bordéus, na página 527 do referido Volume 4, resolve justificar um massacre ordenado por Moisés, e para tanto assegura que “Espíritos protetores, prepostos a vigiar as provas e expiações de cada um, para que elas se cumprissem, impelindo os culpados ou dirigindo as espadas dos que acutilavam,faziam que aqueles recebessem o golpe que os prostaria”. Uma obra que apresenta tais explicações de fatos bíblicos, situando os Espíritos Superiores como capazes de produzir assassinato em massa para cumprimento das leis de DEUS, mereceria talvez mais considerações sobre o seu caráter mistificatório. Não convém, todavia, estendermos estas linhas, porque os leitores terminam se fatigando com a insistência de um articulista no mesmo assunto, e, de resto, o tema em foco sempre foi pouco simpático a muitos espíritas brasileiros, pouco afeitos a cogitações de maior profundidade filosófica, à luz da Codificação kardequiana (infelizmente o que a maioria gosta é de ler romances e textos psicografados de conteúdo sentimental, às vezes líricos e até delirantes). Impõe-se-nos compreender e aceitar a realidade de nosso movimento ideológico, sem mágoas ou ressentimentos, nadando contra a maré da imaturidade desses companheiros de crença tão só até determinado ponto.

Necessitando encerrar aqui, avisamos, contudo, aos confrades estudiosos da matéria, que ampliaremos estes comentários sobre a deletéria obra de J.B. Roustaing com a abordagem das relações pessoais que ele, e sua única médium, Emilie Collignon, tiveram com Allan Kardec, a fim de que o leitor fique ciente de como foi tramado o primeiro cisma do Espiritismo.

A Revista Espírita, editada mensalmente pelo Codificador durante mais de dez anos, forneceu-nos interessantes subsídios a esse respeito, fazendo-nos entender inclusive porque até hoje as diversas Diretorias da FEB nunca se interessaram em traduzi-la e divulgá-la, o que, aliás, historicamente, representa um crime perante a cultura doutrinária do nosso povo.

Fonte:
TOURINHO, Nazareno.  As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing – Nazareno Tourinho; ensaio crítico-doutrinário; 1ª edição, Edições Correio Fraterno, São Bernardo do Campo, SP, 1999.