sábado, 31 de maio de 2014

Fenômeno de transfiguração

Por Allan Kardec

Revista Espírita, Março de 1859

O fato que se segue foi extraído de uma carta que em setembro de 1857 recebemos de um dos nossos correspondentes em Saint-Etienne. Depois de falar de várias comunicações de que foi testemunha, ele acrescenta:

“Fato dos mais admiráveis se passa numa das famílias de nossas relações. Das mesas girantes passaram à poltrona que fala; depois um lápis foi fixado ao pé da poltrona e ela indicou a psicografia; praticaram-na durante muito tempo, mais como distração do que como coisa séria. Por fim a escrita designou uma das moças da casa e ordenou que lhe passassem as mãos sobre a cabeça, depois de fazê-la deitar-se. Ela adormeceu quase imediatamente e depois de um certo número de experiências, transfigurou-se. A moça tomava os traços, a voz e os gestos de parentes mortos; dos avós que jamais havia visto e de um irmão falecido há alguns meses. As transfigurações ocorriam sucessivamente na mesma sessão. Ela falava um dialeto que não é o de nossa época, segundo me disseram, pois não conheço o atual nem o outro. O que posso afirmar é que numa sessão onde havia tomado a aparência de seu irmão, vigoroso, folgazão, me deu essa jovem de treze anos um rude aperto de mão.

Há aproximadamente 18 meses a dois anos o fenômeno se repete constantemente e da mesma maneira, com a única diferença que agora se produz natural e espontaneamente, sem imposição de mãos”.

Embora bastante raro, este fenômeno não é excepcional. Já nos falaram de diversos casos semelhantes e nós mesmo testemunhamos algo parecido em sonâmbulos no estado de êxtase, bem como nalguns estáticos que não se encontravam em estado sonambúlico. Por outro lado, é certo que as emoções violentas operam uma mudança na fisionomia, dando-lhe uma expressão completamente diferente daquela do estado normal. Não vemos, também, criaturas cujos traços móveis se prestam, de acordo com a vontade, a modificações que lhes dão a aparência de outras pessoas? Vemos por aí que a rigidez da face não é tal que não possa prestar-se a modificações passageiras mais ou menos profundas. Nada há, pois, de admirar que um fato semelhante possa ocorrer neste caso, quiçá por uma causa independente da vontade.

Eis as respostas que a respeito disto obtivemos de São Luís na sessão da Sociedade no dia 25 de fevereiro último.

1. ─ O caso de transfiguração de que acabamos de falar é verdadeiro?

─ Sim.

2. ─ Nesse fenômeno existe um efeito material?

─ O fenômeno de transfiguração pode dar-se de modo material, a tal ponto que as suas diversas fases poderiam ser reproduzidas em daguerreotipia.

3. ─ Como se produz esse efeito?

─ A transfiguração, como o entendeis, não passa de uma modificação da aparência, uma mudança ou uma alteração dos contornos, que pode ser produzida pela ação do próprio Espírito sobre o seu envoltório ou por uma influência exterior. O corpo nunca muda, mas, por força de uma contração nervosa, reveste aparências diversas.

4. ─ Podem os espectadores ser enganados por uma falsa aparência?

─ Pode também acontecer que o perispírito represente o papel que bem conheceis. No caso citado houve contração nervosa, muito ampliada pela imaginação. Aliás, esse fenômeno é muito raro.

5. ─ O papel do perispírito seria análogo ao que ocorre nos fenômenos de bicorporeidade?

─ Sim.

6. ─ Então nos casos de transfiguração é necessário que haja um desaparecimento do corpo real, de modo que os espectadores não vejam senão o perispírito sob forma diferente?

─ Não propriamente desaparecimento físico, mas oclusão. Entendei-vos sobre os vocábulos.

7. ─ Do que acabais de dizer parece podermos concluir que no fenômeno de transfiguração pode haver dois efeitos: I ─ alteração dos traços do corpo real, por força de uma contração nervosa; II ─ aparência variável do perispírito, tornado visível. É isso mesmo?

─ Certamente.

8. ─ Qual a causa primeira desse fenômeno?

─ A vontade do Espírito.

9. ─ Todos os Espíritos podem produzi-lo?

─ Não. Os Espíritos nem sempre podem fazer o que querem.

10. ─ Como explicar a força anormal dessa moça, transfigurada na pessoa de seu irmão?

─ Não possui o Espírito uma grande força? Aliás, é a do corpo em seu estado normal.

OBSERVAÇÃO: Este fato nada tem de surpreendente. Muitas vezes vemos pessoas muito fracas, dotadas momentaneamente de uma força prodigiosa, devida a uma superexcitação. 

11. ─ Desde que, no fenômeno de transfiguração, o olho do observador pode ter uma imagem diferente da realidade, dar-se-á o mesmo em certas manifestações físicas? Por exemplo: quando uma mesa se ergue sem contato das mãos e a vemos acima do solo, é realmente a mesa que se desloca?

─ Ainda perguntais?

12. ─ O que a levanta?

─ A força do Espírito. 

OBSERVAÇÃO: Este fenômeno já foi explicado por São Luís e dele tratamos de modo completo nos números de maio e junho de 1858, a propósito da teoria das manifestações físicas. Disseram-nos que neste caso a mesa ou qualquer outro objeto que se move está animado de uma vida factícia momentânea que lhe permite obedecer à vontade do Espírito.

Algumas pessoas quiseram ver no fato uma simples ilusão de óptica que, por uma espécie de miragem, as faria ver uma mesa no espaço, quando realmente ela estava no solo. Se assim fosse, a coisa não seria menos digna de atenção. É curioso como aqueles que querem contestar ou criticar os fenômenos espíritas expliquem-nos por causas que também seriam verdadeiros prodígios e igualmente difíceis de compreender. Mas por que tratar o assunto com tanto desdém? Se a causa que apontam é real, por que não aprofundá-la? O físico procura conhecer a causa do menor movimento da agulha magnética; o químico, da mais ligeira mudança na atração molecular[1]. Por que, então, ver com indiferença fenômenos tão estranhos como esses de que falamos, quer sejam eles consequência de simples desvio do raio visual, quer uma nova aplicação das leis conhecidas? Isto não é lógico.

Certamente não seria impossível que por um efeito de óptica análogo ao que nos faz ver um objeto na água mais alto do que realmente está, por causa da refração dos raios luminosos, uma mesa nos parecesse no espaço quando estivesse no solo. Há, porém, um fato que resolve definitivamente o problema. É quando a mesa cai ruidosamente no chão e se quebra. Isto não parece uma ilusão de óptica.

Voltemos à transfiguração.

Se uma contração muscular pode modificar os traços fisionômicos, não o será senão dentro de certos limites; mas certamente se uma mocinha toma a aparência de um velho, nenhum efeito fisiológico lhe faria criar barba. Então devemos procurar uma causa alhures. Recordando quanto dissemos anteriormente a respeito do papel do perispírito em todos os fenômenos de aparição, mesmo de pessoas vivas, compreender-se-á que aí está a chave do fenômeno de transfiguração. Com efeito, desde que o perispírito pode isolar-se do corpo; que pode tornar-se visível; que, por sua extrema sutileza, pode tomar diversas aparências, conforme a vontade do Espírito, concebe-se sem dificuldade que assim se passe com uma pessoa transfigurada: o corpo continua o mesmo; só o perispírito mudou de aspecto. Mas então, perguntareis, em que se torna o corpo? Por que motivo o observador não vê uma imagem dupla, isto é, de um lado o corpo real e do outro o perispírito transfigurado? Fatos estranhos, dos quais falaremos dentro em pouco, provam que por força da fascinação que, em tais circunstâncias, se opera no observador, o corpo real pode, de alguma sorte, ser oculto pelo perispírito.

O fenômeno que é objeto deste artigo já nos foi comunicado há muito tempo. Se dele ainda não havíamos falado é que não nos propomos transformar a nossa Revista em simples catálogo de fatos destinados a alimentar a curiosidade; uma árida compilação sem apreciação e sem comentários. Nossa tarefa seria então muito fácil, mas nós a levamos mais a sério. Antes de mais nada, dirigimo-nos aos homens de raciocínio; àqueles que como nós querem compreender as coisas, tanto mais que isto é possível. Ora, ensinou-nos a experiência que os fatos, por mais estranhos e multiplicados que sejam, não são elementos de convicção. Quanto mais estranhos forem, menos convincentes serão. Quanto mais extraordinário é um fato, tanto mais anormal se nos afigura e menos dispostos estaremos a acreditar. Queremos ver, e tendo visto, ainda duvidamos; desconfiamos de ilusão e de conivência. Já isto não acontece quando para os fatos encontramos uma causa plausível. Vemos diariamente criaturas que atribuíam os fenômenos espíritas à imaginação e à credulidade cega e que hoje são adeptos fervorosos, precisamente porque agora tais fenômenos não lhes repugnam à razão: explicam-nos, compreendem a sua possibilidade e creem, mesmo sem ter visto.

Tendo que falar de certos fatos, deveríamos esperar que os princípios fundamentais estivessem suficientemente desenvolvidos, a fim de compreendermos as suas causas. Entre esses fatos está a transfiguração. Para nós, o Espiritismo é mais do que uma crença: é uma ciência, e nos sentimos felizes por ver que os nossos leitores nos compreenderam.
________________________

[1] No original lemos attraction musculaire, manifesto erro tipográfico, explicável pela reiteração, no texto, do vocábulo muscular, em relação à alteração da fisionomia. Deveria ser a expressão original attraction moléculaire. Trata-se, por outro lado, de um fenômeno de química geral e não de química orgânica, por isso traduzimos atração molecular. (Nota do tradutor)

Nota: Significado de Daguerreotipia - s.f. Processo fotográfico imaginado por Daguerre, e que consistia em fixar numa película de prata pura, aplicada ao cobre, a imagem obtida na câmara escura.

Fonte: IPEAK - http://www.ipeak.com.br/site/busca_janela_conteudo.php?sec=roteiro&id=2666&idioma=1

terça-feira, 13 de maio de 2014

domingo, 11 de maio de 2014

Sobre o uso de práticas exteriores de cultos nos grupos

Por Allan Kardec

Frequentes vezes me tem sido indagado se é útil começar as sessões com preces e atos exte­riores de culto religioso. A resposta não é apenas minha, mas também dos Espíritos que trataram des­se assunto.

É, sem dúvida, não apenas útil, porém neces­sário rogar, através de uma invocação especial, por uma espécie de prece, o concurso dos bons Espíritos. Essa prática predispõe ao recolhimento, condição especial a toda reunião séria. O mesmo não se dá quanto às práticas exteriores de culto, através das quais certos grupos creem dever abrir suas sessões e que têm mais de um inconveniente, apesar da boa intenção com que são sugeridas.

Tudo nas reuniões espíritas deve se passar re­ligiosamente, isto é, com gravidade, respeito e re­colhimento. Mas é preciso não esquecer que o Espiritismo se dirige a todos os cultos. Por conseguinte ele não deve adotar as formalidades de nenhum em particular. Seus inimigos já foram muito longe, tentando apresentá-lo como uma seita nova, buscando um pretexto para combatê-lo. É preciso, pois, não fortalecer essa opinião pelo emprego de rituais dos quais não deixariam de tirar partido, para dizer que as assembleias espíritas são reuniões de protestantes, de cismáticos, etc. Seria uma leviandade supor que essas fórmulas são de natureza a acomodar certos antagonistas. O Espiritismo, chamando a si os homens de todas as crenças, para uni-Ios sob a bandeira da caridade e da fraternidade, habituando-os a se olharem como irmãos, qualquer que seja sua maneira de adorar a Deus, não deve melindrar as convicções de ninguém pe­lo emprego de sinais exteriores de qualquer culto.

São poucas as reuniões espíritas, por menores que sejam os grupos, que, sobretudo na França, não tenham membros ou assistentes pertencentes a diferentes religiões. Se o Espiritismo se colocasse abertamente na área de uma delas, afastaria as outras. Ora, como há espíritas em todas, assistiríamos à formação de grupos católicos, judeus, ou protestantes, assim perpetuando o antagonismo religioso que o Espiritismo tende a abolir.

Esta é, também, a razão pela qual deve-se abster, nas reuniões, de discutir dogmas particulares, o que, necessariamente, melindraria certas consciências. As questões morais, entretanto, são de todas as religiões e de todos os países. O Espiritismo é um terreno neutro sobre o qual todas as opiniões religiosas se podem encontrar e dar-se as mãos. Ora, a desunião poderia nascer da controvérsia. Não esqueçais de que a desunião é um dos meios através dos quais os inimigos do Espiritismo buscam atacá-lo. É com esse fim que eles induzem certos grupos a se ocuparem de questões irritantes ou comprometedoras, sob o pretexto astucioso de que não se deve colocar a luz sob o al­queire. Não vos deixeis prender nessa armadilha! Sejam os dirigentes de grupos firmes na recusa de todas as sugestões deste gênero, se não quiserem passar por cúmplices dessas maquinações.

O emprego dos aparatos exteriores do culto teria idêntico resultado: uma cisão entre os adep­tos. Uns terminariam por achar que não são devidamente empregados, outros, pelo contrário, que o são em excesso. Para evitar esse inconveniente, tão grave, aconselhamos a abstenção de qualquer prece litúrgica, sem exceção mesmo da Oração Dominical por mais bela que seja. Como, para fazer parte de um grupo espírita, não se exige que ninguém abjure sua religião, permita-se que cada um faça a seu bel prazer e mentalmente, a prece que julgar a propósito. O importante é que não haja nada de ostensivo e, sobretudo, nada de oficial. O mesmo se pode dizer com relação ao sinal da cruz, ao hábito de se colocar de joelhos, etc... Sem esta linha de conduta neutra, não se pode impedir, por exemplo, que um muçulmano, integrante de um grupo espírita, se prosterne e coloque a face contra a terra, recitando em voz alta sua fórmula sacramental: "Só há um Deus e Máomé é o seu profeta!"

O inconveniente não existe quando as preces feitas em intenção de qualquer pessoa, são independentes de todo e qualquer culto particular. Di­to tudo isso, creio supérfluo salientar o quanto haveria de ridículo em fazer-se toda uma assistência repetir em coro uma prece ou fórmula qualquer, como alguém me afirmou já ter visto ser praticado.

Deve ficar bem entendido que o que acaba de ser dito não se aplica senão aos grupos e sociedades, constituídos de pessoas estranhas umas às outras, porém nunca às reuniões íntimas de família, nas quais, naturalmente, cada pessoa é livre de agir como bem entender, uma vez que, em tal ambiente, não se corre o risco de melindrar a ninguém.

Fonte: Viagem Espírita em 1862 » Instruções particulares dadas aos grupos em resposta a algumas das questões propostas » XI

Retirado do site IPEAK - http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6367&idioma=1

domingo, 4 de maio de 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Exame das comunicações medianímicas que nos são dirigidas

Por Allan Kardec 

Muitas  das  comunicações  nos  foram  dirigidas  de  diferentes  grupos,  seja  para  nos pedir a nossa opinião e nos colocar no estado de julgar suas tendências, seja, da parte de alguns, com esperança de vê-las aparecer na Revista; todas nos foram remetidas com a faculdade de dispormos delas como entendêssemos, para o bem da coisa. Delas fizemos o exame a classificação, e não se admirará da impossibilidade que temos de inseri-las to- das, quando souber-se que além daquelas que publicamos, há mais de três mil e seiscentas que, somente elas, teriam absorvido cinco anos completos da Revista, sem contar um certo número de manuscritos, mais ou menos volumosos, dos quais falaremos dentro em pouco. O relatório desse exame nos fornecerá o assunto de algumas reflexões das quais cada um poderá tirar seu proveito.

Entre elas, encontramos as notoriamente más pelo fundo e pela forma, produtos evidentes de Espíritos ignorantes, obsessores ou mistificadores, e que juram com os nomes mais  ou  menos  pomposos  com  os  quais  se  revestem;  publicá-las,  teria  sido  dar  armas fundadas à crítica. Uma circunstância digna de nota é que a totalidade das comunicações dessa categoria emana de indivíduos isolados e não de grupos. Soa fascinação poderia fazê-los tomar a sério e impedi-los de ver nelas o lado ridículo. O isolamento, como se sabe, favorece a fascinação, ao passo que as reuniões encontram um controle na pluralidade das opiniões.

No  entanto,  reconhecemos  com  prazer  que  as  comunicações  dessa  natureza  formam, na massa, uma pequena minoria; a maioria das outras encerram bons pensamentos e excelentes conselhos, mas não se segue que sejam todas boas para serem publicadas, e isto pelos motivos que vamos expor.

Os bons Espíritos ensinam quase a mesma coisa por toda a parte, porque por toda parte há os mesmos vícios a reformar e as mesmas virtudes a pregar; está aí um dos caracteres distintivos do Espiritismo; freqüentemente, a diferença não está senão na maior ou menor correção e elegância do estilo. Para apreciar as comunicações, com relação à publicidade, não é preciso vê-las de seu ponto de vista, mas no do público. Concebemos a satisfação que se sente em obter alguma coisa de bom, sobretudo em começando, mas, além de que certas pessoas possam se iludir sobre o mérito intrínseco, não se pensa que em cem outros lugares obtém-se coisas semelhantes, e o que é de um grande interesse individual pode ser a banalidade para a massa.

É preciso considerar, além disso, que há algum tempo as comunicações adquiriram, sob todos os aspectos, proporções e qualidades que deixam bem longe para trás aquelas que se obtinham há alguns anos; o que se admirava então parece pálido e mesquinho junto do que se obtém hoje. Na maioria dos centros verdadeiramente sérios, o ensino dos Espíritos aumentou com a compreensão do Espiritismo. Uma vez que por toda parte recebem-se  instruções  quase  idênticas,  sua  publicação  não  pode  interessar  senão  com  a condição de apresentar qualidades salientes, como forma ou como importância instrutiva, seria, pois, iludir-se crendo que toda coletânea deve achar leitores numerosos e entusiastas. Outrora, a menor conversa espírita era uma novidade que atraía a atenção; hoje, que os Espíritas e os médiuns não se contam mais, o que era uma raridade é um fato quase banal tornado hábito e que ficou distanciado pela amplitude e importância das comunicações atuais, como os deveres do escolar o são para o trabalho do adulto.

Temos sob os olhos a coleção de um jornal publicado no princípio das manifestações, sob o título de a Mesa falante, título característico da época; esse jornal teve, diz-se, de quinze a dezoito centenas de assinantes, cifra enorme para a época; ele continha uma multidão de pequenas conversas familiares e de fatos medianímicos que eram então um poderoso atrativo de curiosidade. Nele inutilmente procuramos alguma coisa para reproduzir em nossa Revista; tudo o que ali teríamos haurido seria hoje pueril e sem interesse. Se esse jornal não tivesse cessado de aparecer, por circunstâncias independentes do assunto, não teria podido viver senão com a condição de se colocar no nível do progresso  da  ciência,  e,  se  ele  reaparecesse agora  nas  mesmas  condições,  não  teria  cinqüenta assinantes. Os Espíritas são imensamente mais numerosos do que então, é verdade; mas são mais esclarecidos e querem um ensinamento mais substancial.

Se as comunicações não emanassem senão de um único centro, ninguém duvida de que os leitores se multiplicariam em razão do número de adeptos; mas não é preciso perder de vista que os focos que os produzem se contam por milhares, e que por toda a parte onde se obtêm coisas superiores, não se pode se interessar por aquilo que é fraco ou medíocre.

O que dizemos não é para desencorajar de fazer publicações, longe disso, mas para mostrar a necessidade de uma escolha rigorosa, condição sine qua non de sucesso; os Espíritos, elevando os seus ensinos, tornaram-nos difíceis e mesmo exigentes. As publicações locais podem ter uma imensa utilidade sob um duplo aspecto, o de difundir nas massas o ensino dado na intimidade, depois o de mostrar a concordância que existe nesse  ensinamento  sobre  diferentes  pontos;  as  aplaudiremos  sempre  e  as  encorajaremos todas as vezes que sejam feitas em boas condições.

Convém de início descartar tudo o que, sendo de um interesse privado, não interessa senão àquele que lhe concerne; depois, tudo o que é vulgar pelo estilo e pelos pensamentos, ou pueril pelo assunto; uma coisa pode ser excelente em si mesma, muito boa para dela fazer sua instrução pessoal, mas o que deve ser entregue ao público exige condições especiais; infelizmente o homem está inclinado a pensar que tudo o que lhe apraz deve aprazer aos outros; o mais hábil pode  se enganar, e tudo é se enganar o menos possível. Há Espíritos que se divertem em entreter essa ilusão em alguns médiuns; é porque não saberíamos muito recomendar a estes últimos de não relacioná-las ao seu próprio julgamento, e é nisso que os grupos são úteis, pela multiplicidade das opiniões que permitem recolher; aquele que, nesse caso, recusasse a opinião da maioria, se crendo mais iluminado que todos, provaria super abundantemente a má influência sob a qual se acha.

Fazendo aplicação destes princípios de ecletismo às comunicações que nos são dirigidas, diremos que, sobre três mil e seiscentas, há mais de três mil de uma moralidade irrepreensível e excelentes como fundo, mas que sobre esse número não há senão trezentas para a publicidade, e apenas cem de um mérito sem paralelo. Essas comunicações nos tendo vindo de um grande numero de pontos diferentes, disso inferimos que essa proporção deve ser quase real. Pode-se julgar por aí da necessidade de não publicar inconsideradamente tudo o que vem dos Espíritos, querendo-se atingir o objetivo que se propõe, tanto sob o aspecto material quanto o do efeito moral e "da opinião que os indiferentes podem se fazer do Espiritismo.

Resta-nos a dizer algumas palavras dos manuscritos ou trabalhos de grande fôlego que nos são dirigidos, entre os quais, sobre trinta deles não encontramos senão cinco ou seis tendo um valor real. No mundo invisível, como sobre a Terra, os escritores não faltam, mas os bons escritores são raros; tal Espírito está apto a ditar uma boa comunicação isolada, a dar um excelente conselho particular, que é incapaz de produzir um trabalho de conjunto completo podendo suportar o exame, quaisquer que sejam, aliás, as suas pretensões e o nome do qual lhe apraz se vestir, não é uma garantia; quanto mais esse nome é elevado, mais obriga; ora, é mais fácil tomar um nome do que justificá-lo; por isso, ao lado de alguns bons pensamentos, freqüentemente, encontram-se idéias as mais excêntricas e os traços, os menos equivocados, da mais profunda ignorância. Foram nessas espécies  de  trabalhos  medianímicos  que  notamos  o  mais  de  sinais  de  obsessão,  dos quais um dos mais freqüentes é a injunção da  parte do Espírito de fazê-los imprimir. E alguns pensam erradamente que tal recomendação basta para encontrar um editor interessado no negócio.

É  sobretudo  em  semelhante  caso  que  um  exame  escrupuloso  é  necessário,  não querendo se expor a fazer escola às suas custas; além disso, é o melhor meio de afastar os  Espíritos  presunçosos  e  pseudo-sábios  que  se  retiram  forçosamente  quando  não  acham instrumentos dóceis que possam fazer suas palavras serem aceitas como artigos de fé. A intromissão desses Espíritos nas comunicações é, fato conhecido, o maior escolho do Espiritismo. Não se saberia, pois, cercar-se muito de precauções para evitar as publicações lamentáveis; mais vale, em semelhante caso, pecar por excesso de prudência, no interesse da causa.

Em resumo, publicando-se as comunicações dignas de interesse, faz-se uma coisa útil; publicando aquelas que são fracas, insignificantes ou más, faz-se mais mal do que bem. Uma consideração não menos importante é a da oportunidade; umas há das quais a publicação seria intempestiva, e por isso mesmo nociva: cada coisa deve vir a seu tempo; várias daquelas que nos são dirigidas estão neste caso, e embora muito boas, devem ser adiadas; quanto às outras, acharão seu lugar segundo as circunstâncias e seu objeto.

Fonte: Revista Espírita - Sexto Ano - Maio 1863

Estude a Doutrina Espírita online

Por O Blog dos Espíritas

Convidamos aos interessados a participarem do estudo online que se iniciará amanhã, 02 de Maio de 2014, às 22 horas, do livro O que é o Espiritismo? de Allan Kardec, na sala virtual "Espiritismo com Kardec" do programa Paltalk.

O Paltalk, para quem não o conhece, é um programa online para ser usado na internet em formato de bate-papo no qual o usuário tem recursos de áudio, vídeo e texto, tudo ao mesmo tempo. Suas salas de estudo são semelhantes às do antigo mIRC, o que deve facilitar seu uso para quem usou a extinta plataforma. Mais informações sobre o Paltalk estão neste link.

Após criar um apelido (nickname) no Paltalk, entre na pasta South America, e depois na pasta Brazil. Na relação de salas que aparecerá, dê um duplo clique na sala "Espiritismo com Kardec", no dia e horário anteriormente mencionados.

A sala "Espiritismo com Kardec" visa estudar as obras de Allan Kardec e outros autores espíritas, a exemplo de Herculano Pires, Nazareno Tourinho, Gélio Lacerda e Léon Denis. Os encontros são realizados semanalmente, às sextas-feiras, às 22 horas.

Mais informações acerca da proposta da sala "Espiritismo com Kardec" na figura abaixo:


Bons estudos!

quarta-feira, 30 de abril de 2014

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Intervenção da ciência no Espiritismo

Por Allan Kardec

Revista Espírita, Junho,1859.

A oposição das corporações científicas é um dos argumentos incessantemente invocados pelos adversários do Espiritismo. Por que não trataram elas dos fenômenos das mesas girantes? Se tivessem visto neles algo de sério, alegam, não se poriam em guarda contra fatos tão extraordinários, nem os tratariam com desdém. No entanto, hoje são todas contra vós. Não são os cientistas a luz das nações, e o seu dever não é espalhar a luz? Por que quereríeis que eles a abafassem, quando se apresentava tão bela ocasião de revelarem ao mundo uma força nova?

Para começar, grave erro é pensar que todos os cientistas são contra nós, pois o Espiritismo se propaga precisamente na classe esclarecida. Não há sábios apenas na ciência oficial e nos corpos constituídos. Pode prejulgar-se a questão pelo fato de não desfrutar o Espiritismo foros de cidadania? É conhecida a circunspecção da ciência oficial em relação às ideias novas. Se ela jamais se houvesse enganado, então sua opinião poderia pesar na balança. Infelizmente, a experiência prova o contrário. Não repeliu ela como quimeras uma porção de descobertas que, mais tarde, ilustraram a memória de seus autores? Deve dizer-se que os sábios são ignorantes? Isso justifica os epítetos triviais que algumas pessoas de mau gosto gostam de aplicar-lhes? Certamente que não. Não há ninguém de bom-senso que não faça justiça aos sábios, reconhecendo, entretanto, que não são infalíveis e que, por isso mesmo, seu julgamento não é a última instância. Seu erro é resolver certas questões um pouco levianamente, confiando demasiado em suas luzes, antes que o tempo se tenha pronunciado, assim se expondo a receber o desmentido da experiência.

Ninguém é bom juiz senão em assuntos de sua competência. Se quisermos construir uma casa, chamaremos um músico? Se estivermos doentes, preferiremos ser tratados por um arquiteto? Se tivermos um processo, aconselhar-nos-emos com um dançarino? Enfim, se se tratar de uma questão de teologia, pediremos a sua solução a um químico ou a um astrônomo? Não. Cada qual no seu ofício. As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que podemos manejar à vontade. Os fenômenos por ela produzidos têm como agentes forças materiais. Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem sua independência, seu livre-arbítrio, e de modo algum se submetem aos nossos caprichos. Escapam destarte aos nossos processos anatômicos ou de laboratório, bem como aos nossos cálculos e, por consequência, não são mais de alçada da ciência propriamente dita. A ciência errou, pois, ao querer experimentar os Espíritos como uma pilha de Volta. Ela partiu de uma ideia fixa, preconcebida, à qual se aferra e quer forçosamente ligar à ideia nova. Fracassou, e assim devia ser, porque agiu a partir de uma analogia que não existe. Depois, sem ir mais longe, concluiu pela negativa: julgamento temerário, que o tempo diariamente se encarrega de reformar, como reformou tantos outros, e aqueles que o pronunciarem, serão por sua vez sentenciados pela vergonha de haverem levianamente assumido uma posição falsa contra o infinito poder do Criador. Assim, pois, as corporações científicas não devem, nem deverão jamais pronunciar-se sobre o assunto, pois ele não é mais de sua alçada do que o direito de decretar que Deus existe. É, pois, um erro tomá-las como juiz. Mas quem será o juiz? Arrogam-se os espíritas o direito de impor as próprias ideias? Não. O grande juiz, o juiz soberano é a opinião pública, e quando essa opinião se formar pelo assentimento das massas e dos homens esclarecidos, os cientistas oficiais a aceitarão como indivíduos e se submeterão à força das circunstâncias. Deixemos passar uma geração e com ela os preconceitos do amor próprio que se obstina, e veremos acontecer com o Espiritismo o mesmo que aconteceu com tantas outras verdades combatidas e que atualmente seria ridículo pôr em dúvida. Hoje os crentes são chamados de loucos, amanhã assim serão chamados aqueles que não creem, exatamente como outrora eram considerados loucos os que acreditavam que a Terra gira, o que não a impediu de girar.

Mas nem todos os sábios julgaram do mesmo modo. Alguns fizeram o seguinte raciocínio:

Não há efeito sem causa, e os mais vulgares efeitos podem ensejar a descoberta dos maiores problemas. Se Newton não tivesse prestado atenção à queda da maçã; se Galvani tivesse repelido a sua empregada, tratando-a de louca e de visionária, quando ela lhe falou das rãs que dançavam no prato, talvez ainda não tivéssemos descoberto a admirável lei da gravitação e as fecundas propriedades da pilha. O fenômeno designado sob o nome burlesco de dança das mesas não é mais ridículo que o da dança das rãs, e talvez encerre alguns dos segredos da Natureza que revolucionarão a Humanidade, quando possuirmos a sua chave.

Além disso, eles disseram: Desde que tanta gente se ocupa de tais fatos; desde que homens sisudos os estudaram, é que algo deve existir. Uma ilusão, uma maluquice, se quiserem, não pode ter esse caráter de generalidade. Poderá seduzir um círculo, um grupo, mas não dará a volta ao mundo.

Eis, particularmente, o que nos dizia ilustrado doutor em Medicina, então incrédulo e hoje fervoroso adepto:

“Dizem que os seres invisíveis se comunicam. Por que não? Antes da invenção do microscópio suspeitávamos da existência desses milhares de animálculos que causavam tanta devastação em nossa economia? Onde a impossibilidade material da existência, no espaço, de seres que escapam aos nossos sentidos? Acaso teríamos a ridícula pretensão de saber tudo e dizer a Deus que ele não nos pode ensinar mais nada? Se esses invisíveis que nos cercam são inteligentes, por que não se comunicariam conosco? Se estão em relação com os homens, devem representar um papel no destino e nos acontecimentos. Quem sabe se não serão uma das potências da Natureza, uma dessas forças ocultas que não suspeitamos? Que novo horizonte isto abre ao pensamento! Que vasto campo de observação! A descoberta do mundo invisível seria muito diversa da descoberta dos infinitamente pequenos. Seria mais que uma descoberta: seria toda uma revolução nas ideias. Que luz daí pode surgir! Quantas coisas misteriosas seriam explicadas! Os que nisto acreditam são levados ao ridículo, mas o que isto prova? Não aconteceu o mesmo com todas as grandes descobertas? Cristóvão Colombo não foi repelido, coberto de desgostos e considerado um insensato? Essas ideias, disseram, são tão estranhas que a razão as recusa. Teríamos rido na cara de quem, há somente meio século, tivesse dito que em apenas alguns minutos nos corresponderíamos de um a outro extremo do mundo; que em algumas horas atravessaríamos a França; que com o vapor de um pouco de água fervente um navio navegaria contra o vento; que da água seriam tirados os meios de iluminar e de aquecer? Se um homem se tivesse proposto iluminar toda Paris em um minuto, com uma única fonte de uma substância invisível, teria sido enviado ao hospício. Seria acaso mais prodigioso que o espaço fosse povoado de seres pensantes que, depois de haverem vivido na Terra, deixaram o se envoltório material? Não encontramos no fato a explicação de uma porção de crenças que remontam à mais alta Antiguidade? Não é a confirmação da existência da alma, de sua individualidade depois da morte? Não é a prova da própria base da religião? Mas a religião só vagamente nos diz o que se tornam as almas. O Espiritismo o define. Que podem objetar os materialistas e os ateus? Vale a pena aprofundar semelhantes coisas”.

Eis as reflexões de um cientista, mas de um cientista despretensioso. São também as de uma porção de homens esclarecidos, que refletiram, estudaram seriamente, sem ideias preconcebidas e tiveram a modéstia de não dizer: Não compreendo, portanto não existe. Sua convicção formou-se pela observação e pelo recolhimento. Se essas ideias fossem quimeras, seria possível que tanta gente de escol as tivesse adotado? Que durante tanto tempo tivessem sido vítimas de uma ilusão? Não existe, pois, a impossibilidade material da existência de seres para nós invisíveis e que povoam o espaço. Esta simples consideração deveria ensejar um pouco mais de circunspecção. Ainda há pouco, quem teria pensado que uma gota de água límpida pudesse conter milhares de seres vivos, de uma pequenez que confunde a nossa imaginação? Ora, era mais difícil à razão conceber seres tão minúsculos, providos de todos os nossos órgãos e funcionando como nós, do que admitir os que chamamos Espíritos.

Perguntam os adversários por que motivo os Espíritos, que devem ter a preocupação de fazer prosélitos, não se prestam melhor ao trabalho de convencer certas pessoas cuja opinião teria grande influência. Acrescentam que os acusamos de falta de fé, e a isto respondem com razão que não podem ter fé por antecipação.

É um erro pensar que seja necessária a fé, mas a boa-fé é outra coisa. Há céticos que negam até a evidência e aos quais nem milagres convenceriam. Há mesmo os que ficariam muito aborrecidos se fossem obrigados a crer, pois o seu amor-próprio sofreria ao confessar que se enganaram. Que responder a criaturas que por toda parte não enxergam senão ilusão e charlatanismo? Nada. É preciso deixá-las tranquilas e dizerem, enquanto quiserem, que nada viram e, até, que nada lhes pudemos fazer ver. Ao lado desses céticos endurecidos, há os que querem ver a seu modo. Formada uma opinião, a esta tudo querem submeter, não compreendendo que haja fenômenos que não se submetam à sua vontade. Ou não sabem, ou não se querem curvar às condições necessárias. Se os Espíritos não se mostram tão interessados em convencê-los por meio de prodígios, é que no momento aparentemente pouco interesse têm em convencer certas pessoas, cuja importância não medem do mesmo modo pelo qual elas o fazem. É realmente pouco lisonjeiro, mas nós não governamos a sua opinião. Os Espíritos têm um modo de julgar as coisas nem sempre concordante com o nosso. Veem, pensam e agem de acordo com outros elementos. Enquanto nossa vista é circunscrita pela matéria, limitada pelo estreito círculo em cujo meio nos achamos, eles abarcam o conjunto. O tempo, que nos parece tão longo, é para eles um instante, e a distância, apenas um passo. Certos detalhes que nos parecem de importância extrema, a seus olhos não passam de infantilidades. Por outro lado, julgam importantes certas coisas cujo alcance não apreendemos. Para compreendê-los é necessário elevarmo-nos pelo pensamento acima do nosso horizonte material e moral e nos colocarmos em seu ponto de vista. A eles não cabe descer até nós. Nós é que devemos subir até eles, o que conseguimos pelo estudo e pela observação. Os Espíritos gostam dos observadores assíduos e conscienciosos. Para esses, multiplicam as fontes de luz.

Não é a dúvida originária da ignorância que os afasta. É a fatuidade dos pretensos observadores que nada observam e que querem pô-los na berlinda e manobrá-los como bonecos; são sobretudo os sentimentos de hostilidade e de crítica que trazem na mente, quando não nas palavras, a despeito dos protestos em contrário. Para esses nada fazem os Espíritos e se preocupam muito pouco com o que possam dizer ou pensar, porque sua hora chegará. Eis por que dissemos que não é a fé que se torna necessária, mas a boa-fé.

Ora, perguntamos se os nossos sábios adversários estão sempre em tais condições. Eles querem os fenômenos sob seu controle, mas os Espíritos não obedecem ao seu comando. É necessário esperar a boa vontade deles. Não basta dizer: mostre-me tal fato e eu acreditarei. É preciso ter a vontade perseverante; deixar que os fatos se produzam espontaneamente, sem querer forçá-los ou dirigi-los. Aquilo que desejais é exatamente o que não obtereis, mas outros se apresentarão, e aquilo que quereis virá talvez no momento em que menos esperais.

Aos olhos do observador atento e assíduo multiplicaram-se os fenômenos, confirmando-se reciprocamente, mas aquele que pensa que basta virar a manivela para movimentar a máquina, engana-se redondamente. Que faz o naturalista que deseja estudar os costumes de um animal? Acaso lhe ordena que faça isto ou aquilo, a fim de ter a oportunidade de observá-lo à vontade e conforme as suas conveniências? Não. Ele sabe perfeitamente que não será obedecido. Mas espia as manifestações espontâneas de seu instinto; espera-as e as observa de passagem.

O simples bom-senso nos mostra que, com mais forte razão, assim deve ser com os Espíritos, que são inteligências muito mais independentes que a dos animais.

Fonte: IPEAK - http://www.ipeak.com.br/site/busca_janela_conteudo.php?sec=roteiro&id=2698&idioma=1

quinta-feira, 24 de abril de 2014

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Apometria e Espiritismo

Por Carmem Paiva de Barros

A apometria, considerada por seus praticantes como "um revolucionário método desobsessivo", foi criada pelo conceituado pesquisador e médico espírita carioca José Lacerda, na década dos anos 50, na cidade de Porto Alegre (RS).

O movimento em favor da apometria passou pela região Centro-Oeste do Brasil, desaguando em Goiás e no Distrito Federal, com a perspectiva de realizar tratamentos espirituais muito mais eficazes que a conhecida desobsessão, indicada pelo espírito André Luiz.

A novidade conquistou a simpatia de conhecidos e respeitáveis médiuns e médicos espíritas.

A CONCAFRAS, movimento religioso de exaltação a poetisa potiguar Auta de Souza, se incumbiu de levar para outros Estados a apometria, sempre com a proposta de "revolucionar a metodologia de tratamento desobsessivo nos Centros Espíritas".

A exemplo do que ocorreu em tantos outros Estados brasileitos, a apometria encontrou compo fértil na Paraíba. Alguns Centros Espíritas facilmente assimilaram as práticas do novo método desobsessivo, apontado como "eficiente" no tratamento de espíritos intransigentes aos ensinamentos morais de Jesus.

Segundo opinião do médium e tribuno baiano Divaldo Pereira Franco (ver jornal DESPERTADOR, edição de julho/agosto de 2008, de São Paulo), "(...) as práticas da apometria estão em total desacordo com as recomendações de O Livro dos Espíritos e ainda tem a pretensão de ser apresentada como um passo avançado do movimento espírita, no qual Allan Kardec estaria ultrapassado".

Na Paraíba, a apometria ficou conhecida como "a desobsessão do passa-passa".

Certa feita, assisti uma reunião onde pude observar a forma grosseira, desrespeitosa e anticristã de como eram tratados os espíritos (aos milhares, na ótica dos médiuns videntes presentes).

A "manada" de espíritos recebia tratamento de "choque", com ameaça de serem levados ao magma (substância ainda ebulição) da Terra, sem nenhum resquício de misericórdia da parte dos doutrinadores e do coordenador do trabalho.

Em determinado trecho do seu comentário sobre a absurda prática, Divaldo Franco diz textualmente que "aqueles que adotam esses métodos novos, primeiro não conhecem as bases kardequianas; e se alguém prefere a apometria, divorcie-se do Espiritismo. É um direito! Mas não misture para não confundir".

O médium baiano tem razão.

A Doutrina Espírita centraliza-se no amor, na compaixão, na misericórdia, na indulgência e no respeito incondicional à condição moral em que se encontram os espíritos rebeldes, que passaram pela vida terrena sem qualquer preocupação com o processo reeducativo que a reencarnação lhes determinava.

Aqueles médiuns e trabalhadores que subestimam os métodos convencionais da desobsessão feita com Jesus no coração, precisam estudar as obras kardequianas para o seu próprio benefício e proteção espiritual.

A apometria é um método pseudocientífico. Não faz parte da proposta espírita e cristã da "amar ao próximo como a si mesmo"

>>> Artigo publicado no jornal TRIBUNA ESPÍRITA, edição de março/abril de 2013,
de João Pessoa, PB.

Retirado do blog Kardec Ponto Com: http://kardecpontocom.blogspot.com.br/p/carlos-meus-artigo.html

terça-feira, 25 de março de 2014

O Materialismo e o Direito

Por Allan Kardec

O materialismo, vangloriando-se como não o tinha feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo regulador dos destinos morais da Humanidade, teve por efeito apavorar as massas pelas consequências inevitáveis de suas doutrinas para a ordem social. Por isto mesmo provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma enérgica reação que lhe deve provar que está longe de merecer simpatias tão gerais quanto supõe, e que labora em estranha ilusão se espera um dia impor suas leis ao mundo.

Seguramente as crenças espiritualistas dos tempos passados são insuficientes para o século atual; elas não estão mais no nível intelectual de nossa geração; sobre muitos pontos elas estão em contradição com os dados concretos da Ciência; deixam no espírito um vago incompatível com a necessidade do positivo que domina na Sociedade moderna; além disso, cometem o imenso erro de se imporem pela fé cega e proscrever o livre exame. Daí resulta, sem dúvida nenhuma, o desenvolvimento da incredulidade na maioria das pessoas. É muito evidente que se os homens não fossem alimentados, desde a infância, senão por ideias de natureza a serem mais tarde confirmadas pela razão, não haveria incrédulos. Quantas pessoas reconduzidas à crença pelo Espiritismo nos disseram: Se nos tivessem sempre apresentado Deus, a alma e a vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!

Pelo fato de um princípio receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que seja preciso rejeitá-lo? Assim acontece com coisas espirituais, como com a legislação e todas as instituições sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbirem. Mas, em vez de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o materialismo preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia mais cômodo àqueles a quem importuna a ideia de Deus e do futuro. Que pensariam de um médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante substancial para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente nada?

O que nos espanta encontrar na maioria dos materialistas da escola moderna é o espírito de intolerância levado aos seus últimos limites, eles que reivindicam sem cessar o direito de liberdade de consciência. Seus próprios correligionários políticos não encontram condescendência diante deles, desde que façam profissão de espiritualismo, testemunha o Sr. Jules Favre, a propósito de seu discurso na Academia (Fígaro de 8 de maio de 1868); e como o Sr. Camille Flammarion, ultrajantemente ridicularizado e denegrido, num outro jornal cujo nome esquecemos, porque ousou provar Deus pela Ciência. Segundo o autor dessa diatribe, não se pode ser sábio senão com a condição de não crer em Deus; Chateaubriand não passa de um escritor medíocre e insensato. Se homens de tão incontestável mérito são tratados com tão pouca consideração, os espíritas não se devem lamentar de serem um tanto ridicularizados a propósito de suas crenças.

Há neste momento, da parte de um certo partido, um levante de armas contra as ideias espiritualistas em geral, entre as quais se acha incluído o Espiritismo. O que ele busca não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos aborrecido, porque não é preciso prestar-lhe contas. Ninguém contesta a esse partido o direito de ter as suas opiniões, de discutir as opiniões contrárias, mas o que não se lhe poderia conceder é a pretensão, ao menos singular para homens que se apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à sua maneira e que discutam as doutrinas que eles não partilham. Intolerância por intolerância, uma não vale mais que a outra.

Um dos melhores protestos que temos lido contra as tendências materialistas foi publicado no jornal le Droit, sob o título: O materialismo e o direito. A questão aí é tratada com notável profundidade e uma perfeita lógica, no duplo ponto de vista da ordem social e da jurisprudência. Sendo a causa do espiritualismo a do Espiritismo, aplaudimos toda enérgica defesa da primeira, mesmo quando aí é feita abstração da segunda. Eis por que pensamos que os leitores da Revista verão com prazer a reprodução desse artigo. 

(Extrato do jornal le Droit, de 14  de maio de 1868) 

A geração presente atravessa uma crise intelectual com a qual não se deve inquietar além da medida, mas cujo desenlace seria imprudência deixar ao acaso. Desde quando a Humanidade passou a pensar, o homem acreditava na alma, princípio imaterial distinto dos órgãos que o servem; faziam-na até imortal. Acreditavam numa Providência, criadora e senhora dos seres e das coisas, no bem, no justo, na liberdade do arbítrio humano, numa vida futura que, por valer mais do que o mundo em que estamos, não necessita, como diz o poeta, senão existir.

Modernos doutores, que começam a tornar-se barulhentos, mudaram tudo isto. O homem é por eles reconduzido à dignidade do animal, e o animal reduzido a um agregado material. A matéria e as propriedades da matéria, tais seriam os únicos objetos possíveis da ciência humana; o pensamento não seria senão um produto do órgão que é sua sede, e o homem, quando as moléculas orgânicas que constituem a sua pessoa se desagregam e voltam aos elementos, pereceria inteiramente.

Se as doutrinas materialistas jamais devessem ter a sua hora de triunfo, os jurisconsultos filósofos ─ há que dizer para a sua honra ─ seriam os primeiros vencidos. O que teriam a fazer as suas regras e as suas leis num mundo no qual a lei da matéria fosse toda a lei? As ações humanas não podem ser senão fatos automáticos, se o homem for todo matéria. Mas então, onde estará a liberdade? E se a liberdade não existir, onde estará a lei moral? A que título uma autoridade qualquer poderia pretender dominar a expansão fatal de uma força toda física e necessariamente legítima se ela é fatal? O materialismo arruína a lei moral, e com a lei moral o direito, a ordem civil toda inteira, isto é, as condições de existência da Humanidade. Tais consequências imediatas, inevitáveis, certamente merecem que nelas pensemos. Vejamos, pois, como se reproduz esta velha doutrina materialista, que não vimos surgir, até o presente, senão nos piores dias.

Quase sempre houve materialistas, teóricos ou práticos, quer por desvio do senso comum, quer para justificar baixos hábitos de viver. A primeira razão de ser do materialismo está na imperfeição da inteligência humana. Disse Cícero, em termos muito crus, que não há tolice que não tenha encontrado algum filósofo para defendê-la: Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum. Sua segunda razão de ser está nas más inclinações do coração humano. O materialismo prático, que se reduz a algumas máximas vergonhosas, sempre apareceu nas épocas de decomposição moral ou social, como as da Regência e do Diretório. O mais das vezes, quando houve visadas mais altas, o materialismo filosófico foi uma reação contra as exigências exageradas das doutrinas ultraespiritualistas ou religiosas. Mas em nossos dias ele se produz com um caráter novo; ele se diz científico. A história natural seria toda a ciência do homem; nada existiria do que ela não tem por objeto, e como ela não tem por objeto o espírito, o espírito não existe.

Para quem queira pensar no caso, com efeito o materialismo é mesmo um perigo, não da ciência verdadeira, mas da ciência incompleta e presunçosa; é uma planta má que cresce em seu solo. De onde vêm as tendências materialistas, mais ou menos marcantes, de tantos cientistas? De sua constante ocupação em estudar e manipular a matéria? Talvez um pouco. Mas elas vêm sobretudo de seus hábitos de espírito, da prática exclusiva de seu método experimental. O método científico pode reduzir-se a estes termos: Não reconhecer senão os fatos; induzir muito prudentemente a lei desses fatos; banir absolutamente todas as pesquisas das causas. Não é de admirar que, depois disto, inteligências de vistas curtas, débeis nalgum sentido, deformadas, como nos tornamos todos, por um mesmo trabalho intelectual ou físico muito contínuo, desconheçam a existência dos fatos morais, aos quais não convém a aplicação do seu instrumento lógico, e, por uma transmissão insensível, passem da ignorância metódica à negação.

Entretanto, se esse método exclusivamente experimental pode achar-se em erro, o erro está no estudo do homem, ser duplo, espírito e matéria, cujo próprio organismo não pode ser senão o produto e o instrumento da força oculta, mas essencialmente una que o anima. Não se quer ver no organismo humano senão um agregado material! Por que cindir o homem e querer metodicamente nele considerar apenas um princípio, se há dois? É possível gabar-se, ao menos, de assim explicar todos os fenômenos da vida? O materialismo fisiológico, que prepara o materialismo filosófico, mas que a ele não conduz necessariamente, é ferido de impotência a cada passo. A vida, digam o que disserem, é um movimento, o movimento da alma formando o corpo; e a alma é, assim, a mola que move e transporta, por uma ação desconhecida e inconsciente, os elementos dos corpos vivos. Trazendo sistematicamente o estudo do homem físico às condições do estudo dos corpos não organizados; não vendo nas forças vivas de cada parte do organismo senão propriedades da matéria; localizando essas forças em cada uma dessas partes; não considerando a vida senão como uma manifestação física, um resultado, quando ela talvez seja um princípio; afastando a unidade do princípio de vida como uma hipótese, quando ela pode ser uma realidade, cai-se, sem dúvida, no materialismo fisiológico, para depois escorregar rapidamente no materialismo filosófico; mas se conclui por uma enumeração e um exame incompleto dos fatos; acreditou-se marchar apenas apoiado na observação, e afastou-se o fato capital que domina e determina todos os fatos particulares.

O materialismo da nova escola não é, pois, um resultado demonstrado do estudo; é uma opinião preconcebida. O fisiologista não admite o espírito; mas que há de admirável? É uma causa, e ele se pôs a estudar com um método que lhe interdita precisamente a pesquisa das causas. Não queremos submeter a causa do espiritualismo a uma ques­tão de fisiologia controvertida, e sobre a qual poderiam refutar-nos com razão. O senso íntimo me revela a existência da alma com uma autoridade muito diferente. Quando o materialista fisiológico for tão verdadeiro quanto é discutível, nossas convicções espiritualistas ficarão menos inteiras. Fortalecido pelo testemunho do senso íntimo, confirmado pelo assentimento de mil gerações que se sucederam na Terra, repetiríamos o velho adágio: “A verdade não destrói a verdade”, e nós esperaríamos que a conciliação se fizesse com o tempo. Mas de que peso não nos sentimos aliviados quando vemos que, para negar a alma e dar essa declaração como um resultado da ciência, o sábio, por confissão própria, partiu metodicamente da ideia que a alma não existe!

Lemos muitos livros de Fisiologia, em geral muito mal escritos; o que nos chamou a atenção foi o vício constante dos raciocínios do fisiologista organicista quando ele sai da sua área para se fazer filósofo. Vemo-lo constantemente tomar um efeito por uma causa, uma faculdade por uma substância, um atributo por um ser, confundir as existências e as forças, etc., e raciocinar como lhe convém. Dir-se-ia uma aposta. Algumas vezes ele transpõe distâncias incríveis sem se dar conta do caminho que faz. Que espírito exato e claro, por exemplo, jamais pôde compreender o pensamento tão conhecido de Cabanis e de Broussais, que “o cérebro produz, secreta o pensamento?” Outras vezes, o homem positivo, o homem da ciência, o homem da observação e dos fatos, nos dirá seriamente que o cérebro “armazena as ideias.” Ainda um pouco, ele as desenhará. É metáfora ou aranzel?

Jamais será pedido à ciência natural que tome partido pró ou contra a alma humana; mas por que ela não se resolve a ignorar o que não é objeto de suas investigações? Com que direito ousa ela jurar que nada há depois dela, depois de ter constituído a lei de não ver? Por que não guarda ela um pouco dessa reserva que vai bem a todos nós, sobretudo aos que têm a pretensão de não avançar senão com a certeza? A que título o anatomista tomará para si a responsabilidade de declarar que a alma não existe, porque não a encontrou com seu escalpelo? Pelo menos começou ele a demonstrar rigorosamente, cientificamente, por experiências e por fatos, segundo o método que preconiza, que o seu escalpelo a tudo pode atingir, até mesmo um princípio imaterial?

Aconteça o que acontecer com todas estas questões, o materialismo, dizendo-se científico, sem por isto adquirir mais valor, instala-se à luz do dia, e é preciso que vejamos o que seria o direito materialista. Ai de nós! O estado social materialista oferecer-nos-ia um tristíssimo e vergonhoso espetáculo. Para começar, uma coisa é certa, é que, se o homem não existe senão por seu organismo, essa massa material e automática que será daqui por diante todo o homem, provido de um encéfalo para secretar ideias, não será responsável por todos os movimentos que ela produzirá[1]. Com ela não será preciso que o encéfalo de uma outra massa material se lembre de secretar ideias de justiça ou de injustiça, porque essas ideias de justiça ou de injustiça não são aplicáveis senão a uma força livre que existe por si mesma, capaz de querer e de se abster. Não se convence a torrente ou a avalanche.

Então a liberdade, isto é, a vontade de agir ou não agir, não existirá aqui em baixo, como também não existirá o direito. Nesse estado, todas as forças terão um pleno e absoluto poder de expansão. Tudo será legítimo, lícito, permitido, digamos mesmo, ordenado, porque é claro que todo fato que não seja o ato de uma vontade livre, que não se produz como um ato moralmente obrigatório ou moralmente proibido, é um fato inevitável, que bem pode vir chocar-se com um fato contrário do mesmo caráter, mas que, como todos os fatos físicos, cai no império inelutável das leis naturais.

Basta expor tais ideias para lhes fazer justiça. É o sistema de Spinoza, que muito resolutamente estabeleceu o princípio do direito da força. Os fortes, diz Spinoza, são feitos para dominar os fracos, da mesma forma que os peixes para nadar e os maiores para comer os menores. No sistema materialista, o que seria chamado direito não poderia ter um princípio diferente. Mas qual homem dotado de senso ousaria professar tal sistema, que bastaria, por si só, para refutar o materialismo, porquanto necessariamente dele decorre? Querem, entretanto, que esse princípio da força se ache, de fato, limitado por si mesmo? Nada será ganho, ou quase nada, com esse flagrante desmentido do princípio. Admitamos, se quiserem, que a substância pensante (continuamos a falar a linguagem dos materialistas) se concerte nos indivíduos para regularizar essa expansão da força: a que chegará ela? No máximo a um conjunto de regras que terão por base o interesse, e mais, como não há outras leis senão as leis da matéria, essa legislação não terá qualquer caráter obrigatório; cada um poderá infringi-la se sua matéria pensante o aconselhar e se sua força permitir. Assim, nesta singular doutrina, não haverá nem mesmo um estado social construído sobre o plano da triste sociedade de Hobbes.

Não falamos ainda senão das condições primeiras de todo estado social. Mas, em toda sociedade civil consagra-se a propriedade individual; contrata-se, vende-se, aluga-se, associa-se, etc. O casamento funda a família; daí nasce toda uma ordem nova de relações. Pela educação no lar e pela educação pública, perpetuam-se as tradições. Assim se forma um espírito nacional e se desenvolve a civilização. Nossa sociedade materialista terá o seu direito civil? Impossível supô-lo, porque o direito civil, em seu conjunto, tem por princípio a justiça, e a justiça não pode ser senão uma palavra, ou uma contradição, numa doutrina que não conhece senão a matéria e as propriedades da matéria. Chega-se assim, inevitavelmente, a concluir (a menos que desarrazoando a propósito), que o estado civil da sociedade materialista é o estado de bestialidade.

Nada dizemos demais ao afirmarmos que o materialismo é destrutivo, não de tal moral, mas de toda moral; não de tal estado civil, mas de todo estado civil, de toda a Sociedade. É preciso recuar com ele além das regiões da barbárie, além da selvageria. Há que proscrevê-lo por isto? Deus não o permita. Assim reconhecido o seu caráter, não pediríamos, entretanto, que o seu ensino fosse interditado; nós o defenderíamos, se necessário, contra toda compressão pela força, desde que o professor não falasse senão em seu próprio nome. A liberdade nos é tão cara ─ sabem-nos os leitores deste jornal ─ ela leva consigo tais benefícios; temos uma tal confiança no bom-senso público, que não conceberíamos nenhuma inquietude por ver toda cátedra, toda tribuna aberta a todas as ideias.

Mas a questão não mais se apresentaria nos mesmos termos se acontecesse que o professor falasse numa cátedra do Estado, sustentada pelo orçamento. Certo ou errado, o Estado ensina. Pode ele ensinar doutrinas cujas consequências mais próximas sejam destrutivas do Estado? Ficará ao arbítrio de todo professor fazer o Estado endossar todas as doutrinas que puder conceber?

A questão não é simples. Os professores do Estado são funcionários públicos; seu ensino não pode ser e não é senão um ensino oficial. O Estado é responsável pelo que eles dizem; ele responde por isso perante a juventude e as famílias. Se por causa das grandes palavras de independência do professorado, recusassem o seu controle, eles se fariam opressores do Estado, pela mais hipócrita das opressões, porque assumiriam a responsabilidade pelas doutrinas que ele desaprova.

Sem dúvida a autoridade superior deve aos seus professores, muitas vezes encanecidos pelo estudo, cuidados, consideração, uma grande confiança, como aos seus generais, aos seus administradores e aos seus magistrados. Mas ela não lhes deve o sacrifício do mandato do país, que se presume que lhe pertença. O professor não é mais independente do Estado do que o general que tomasse o comando de uma insurreição. 

H. THIERCELIN.

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[1] Assim como o fígado não é responsável pela bile que secreta.

Revista Espírita - Agosto 1868

Fonte: IPEAK - http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6198&idioma=1